Crimes econômicos (VI)
Nos últimos artigos aqui publicados, eu tenho tentado explicar como
se dá o combate institucional à criminalidade econômica e à corrupção
no Brasil. No texto da semana passada, especificamente, tratei (embora
superficialmente, reconheço) dos “novos” instrumentos de investigação e
produção de prova – bem mais eficientes no combate a esse tipo de
criminalidade do que àqueles previstos no Código de Processo Penal –,
hoje detalhadamente regulados na Lei nº 12.850/2013 (art. 3º e
seguintes), diploma legal que, entre outras coisas, define o que é
organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal e os meios
de obtenção da prova em infrações penais relacionadas a esse tipo de
associação.
Entretanto, embora tenha rasgado elogios a esses novos instrumentos
de investigação e prova, também reconheci a existência de problemas,
tanto no que toca ao mau uso desses novos instrumentos, como no que
atine ao combate à criminalidade econômica e à corrupção como um todo,
que muitas vezes, entre nós, se dá ao arrepio da legislação, da
Constituição e do próprio estado democrático de direito.
Posso dar alguns exemplos, começando pela espetacularização das
grandes operações. Nos últimos tempos, assistimos a uma grande
visibilidade da atuação da Polícia Federal na imprensa nacional,
sobretudo cumprindo os tão badalados mandados de condução coercitiva
(agora proibida), de prisão e de buscas e apreensões. Teve um tempo em
que, quase toda semana, era uma fase – cuja numeração tínhamos já
perdido a conta – da operação X ou Y. Depois vêm as entrevistas
coletivas. O Ministério Público Federal, claro, frequentemente, surfa na
mesma onda. Preocupa-me demais esse “estilo” de trabalho. Com essa
exposição na mídia, que a Ministra Cármen Lúcia chegou a chamar esses
dias de “circo”, a investigação já vira pena. As consequências não são
boas. Às vezes são até trágicas: vide o caso do Reitor da Universidade
Federal de Santa Catarina.
Há também inúmeros problemas no que toca ao (mau) uso das
interceptações telefônicas. E não estou aqui apenas falando de
interceptações feitas ao arrepio das normas constitucionais ou legais.
Estas são provas ilícitas, devendo, por inadmissíveis, ser simplesmente
desentranhadas dos autos do processo. Falo sobretudo do corriqueiro
vazamento do conteúdo dessas interceptações. Aliás, estamos vivendo uma
era de frequentes vazamentos nas investigações. Todo tipo de informação é
vazada. Seletiva e direcionadamente, claro, em meio a um relacionamento
pernicioso de algumas autoridades (encarregadas da persecução penal)
com a imprensa. Acho isso péssimo. Não se combatem ilícitos cometendo
outros ilícitos. Para mim, isso deveria também ser apurado e punido, na
forma da lei, inclusive criminalmente.
Curiosamente, em contraste com o relacionamento pernicioso com a
imprensa, que tem acesso a tudo, muitas vezes as autoridades
encarregadas da investigação negam acesso aos autos ao investigado e aos
seus defensores. Não falo aqui de procedimentos que demandam sigilo.
Ninguém vai informar ao investigado que ele está sendo interceptado
(telefonicamente). Isso é óbvio. Falo do simples cumprimento do
Enunciado 14 da Súmula Vinculante do Supremo Tribunal Federal: “É
direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos
elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório
realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam
respeito ao exercício do direito de defesa”.
E o que falar das longas prisões preventivas, somadas ao
sufocamento das famílias dos investigados, às vezes para apenas forçar
uma colaboração premiada? A prisão preventiva, entre nós, está quase
virando cumprimento da pena. Isso pode até satisfazer ao desejo de
justiça – rectius, de justiçamento – das redes sociais. Mas é isso o que
queremos? Uma “justiça” sem condenação definitiva? Uma “justiça”
populista?
Aliás, sobre as colaborações premiadas, instrumento fundamental no
combate à criminalidade econômica e à corrupção, algumas delas têm sido
pessimamente negociadas, para dizer o mínimo. O colaborador diz o que
quer – ou o que querem os "persecutores" – para se ver livre. Mas não
traz o mínimo de prova. Às vezes até mente. E a coisa, ao final, quando o
processo penal tem fim, dá em nada. Restam todos soltos. Com bastante
dinheiro. E uns vão para bem longe.
Outro problema, que reputo gravíssimo, é a criminalização da
própria advocacia. Não falo aqui do advogado criminoso. Este deve se
tratado como tal (criminoso). Falo de uma sutil onda para “acovardar” a
profissão. Intencionalmente ou não, o fato é que a própria advocacia tem
sido criminalizada perante a tal “opinião pública” (que hoje se
confunde muito com as tais “redes sociais”) e a própria ideia de defesa
criminal tem sido encarada, por alguns operadores do direito, como se
fosse um estorno indesejável, que deve ser anulado, para a concretização
de uma suposta justiça, identificada, apenas, com a punição do
investigado. Alerto a todos: os efeitos disso podem ser dramáticos. Hoje
e, sobretudo, no futuro. Se queremos viver num estado democrático de
direito, nada menos civilizatório.
E talvez mais grave ainda seja a atual criminalização da política.
Os políticos corruptos devem ser exemplarmente punidos, na forma da lei e
de acordo com a nossa Constituição. Isso é crucial. Mas simplesmente
dizer que todos não prestam é, antes de tudo, uma inverdade. Vilipendiar
a atividade em si também não é correto. E desmoralizar as instituições
do país – a Presidência da República, o Congresso Nacional, o Supremo
Tribunal Federal e por aí vai – é um absurdo maior ainda. Temos de ter
cuidado para não sermos inocentes úteis em outro projeto de poder.
Projetos corporativos (entenderam?) ou de aventureiros populistas. Sem a
política, a boa política, não vamos a lugar algum. Nenhum país foi.
Bom, e depois deste artigo tão desanimador – confesso isso, mas
procurei ser honesto também aqui –, que balanço podemos fazer sobre o
combate institucional à criminalidade econômica e à corrupção no Brasil?
É hoje positivo ou negativo? Isso eu farei e direi no artigo da semana
que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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