A Biblioteca da Big Apple (I)
Faz já um bocado de anos – acho que foi em 2006 –, eu resolvi passar
um carnaval em Nova York. Até aí tudo bem. Embora não fosse uma Olinda
ou uma Salvador, era uma decisão razoável. O problema é que eu também
decidi – e agora, retrospectivamente, vejo a insensatez dessa minha
segunda decisão – passar boa parte desses meus dias na “Big Apple”
realizando estudos para um projeto de doutorado que eu estava à época
preparando.
Bom, de toda sorte, foi aí que eu conheci – no que toca aos seus
recursos e à sua funcionalidade – a famosa “New York Public Library”,
que, para nossa sorte, tem seu edifício principal muitíssimo bem
localizado, sob o ponto de vista do turista novaiorquino, no número 476
da famosa 5ª Avenue (metrô 5ª Avenue ou 42ª Street/Bryant Park).
Para quem não sabe, a complexa história da “New York Public
Library”, como explicam Guillaume de Laubier e Jacques Bosser, em
“Bibliothèeques du monde” (Éditions de La Martinière, 2014), tem “início
em 1848 com uma doação – considerável para a época – de 400 mil dólares
por John Jacob Astor [1763-1848], o americano mais rico do seu tempo,
que visava criar uma biblioteca de referência aberta ao público
[novaiorquino]”. Lembremos que o desenvolvimento das instituições
culturais de Nova York ainda não havia acompanhado o crescimento
econômico daquela que se tornou a mais populosa e importante cidade
norte-americana. Já em 1870, segundo os mesmos autores, “um rico
negociante e empreendedor imobiliário, James Lenox [1800-1880], decidiu
criar uma biblioteca a partir da sua rica considerável coleção de obras
raras, manuscritos e documentos da história dos Estados Unidos da
América”.
Entretanto, essas duas bibliotecas, além de elitistas, sofriam com a
falta de financiamento permanente. E foi nesse contexto que, por volta
de 1892, surge uma terceira personagem, Samuel J. Tilden (1814-1886).
Ex-governador do estado de Nova York, candidato democrata vencedor no
voto popular à presidência do país em 1876 (mas que não levou o “prêmio”
por espúrias manobras da época), ela havia destinado sua considerável
fortuna a uma fundação encarregada de criar uma grande biblioteca
pública e gratuita para a cidade.
Após complexas negociações, como lembram os já citados Guillaume de
Laubier e Jacques Bosser, “a Fundação Tilden e as bibliotecas Astor e
Lenox findam por se fundir sob o nome de New York Public Library, uma
sociedade privada sem fins lucrativos”. A ideia, basicamente, era
utilizar a dinheirama para juntar as duas coleções preexistentes e
colocá-las em novo e belo edifício apto a futuras expansões. À frente da
instituição é alçado John Shaw Billings (1838-1913), célebre
bibliotecário, que imediatamente se dedica a “unificar as coleções, a
recrutar os profissionais especializados, a criar um catálogo e [o mais
importante para nós] a lançar a construção de um novo edifício à altura
do desafio”.
O local dessa primeira e principal sede, que hoje se chama “Edifício
Stephen A. Schwarzman”, nós já conhecemos: a badalada 5ª Avenida.
O projeto, desenvolvido a partir de “layout” básico idealizado por
seu bibliotecário, John Shaw Billings, é de responsabilidade da “Carrère
& Hastings”, à época uma pouco conhecida firma de arquitetura
(registre-se que outra firma de arquitetura, até mais famosa, a “McKim,
Mead & White”, é responsável por mais de uma dezena de outras sedes
da “New York Public Library”). De 1895, ele (o projeto) combina, com
rara maestria, o velho e novo (para a época, sobretudo em termos de
engenharia e funcionalidade). Segundo andei pesquisando, do ano da
apresentação do projeto (1895) até a inauguração da Biblioteca em 1911,
com um custo estimado de 29 milhões de dólares (em valores da época,
claro), incluindo a aquisição do terreno, foram 16 anos. E, para ser
mais preciso, as obras duraram de 1902 a 1911, sendo que os últimos
cinco anos, a partir de 1906, foram basicamente dedicados ao
embelezamento do seu interior.
De fato, como registram os autores de “A biblioteca: uma história
mundial” (Edições Sesc, 2016, e cujo título original é “The Library: a
World History”), James W. P. Campbell (texto) e Will Pryce
(fotografias): “Uma vez definido o leiaute, o arquiteto foi indicado e
escolhido por concorrência, com plantas enviadas por todas as grandes
empresas de Nova York, embora a ganhadora, Carrère & Hastings, fosse
pouco conhecida na época. A pedra fundamental foi colocada em maio de
1902, o teto ficou pronto em 1906, e o prédio finalmente foi inaugurado
em 23 de maio de 1911. A biblioteca já possuía 1 milhão de livros,
contando com 120 km de estantes. Declarou-se naquela época que a sala de
leitura principal [hoje batizada de 'Rose Main Reading Room'] era a
maior de seu tipo em todo o mundo, com 23,5 m de largura, 90,5 m de
comprimento e 15,5 m de altura. Várias salas de leitura subsidiárias
foram construídas para as coleções especializadas”.
Hoje chama a atenção de quem passa pela 5ª Avenida aquele gigante de
mármore, clássico e conservador, embelezado por uma esparramada
escadaria, colunas que não sei agora precisar o estilo e muitas e
enormes janelas de metal e vidro. O interior segue o mesmo estilo
clássico. As paredes de pedra, como se pode sentir desde o salão
principal de entrada (o “Astor Hall”), parecem desumanamente maciças,
como se estivessem lá há séculos. Afora os elevadores, muitas e grandes
escadas, com muitos lances, levam às salas de leitura posicionadas
acima. A “DeWitt Wallace Periodical Room” (no primeiro andar) e a
“McGraw Rotunda” (no terceiro) são espaços de beleza ímpar. No geral, o
ambiente – e aqui me refiro especialmente à grande sala de leitura –, é
arejado e bem iluminado (através das já mencionadas janelas), sendo
dominado por um teto finamente trabalhado, por mármore e outras pedras
e, sobretudo, por muita madeira (mais clara que escura), ferro e aço.
O resultado de toda essa saga – em estilo que se convencionou chamar
de “beaux-arts” – é um dos mais marcantes monumentos novaiorquinos,
hoje (na verdade, desde 1965) tombado pelo governo dos Estados Unidos da
América como “National Historic Landmark”. E tudo isso pode ser visto e
revisto: metodicamente, a partir de filme exibido na própria “NYPL” e
em passeios guiados; ou diletantemente, como queiras, sem eira nem
beira.
Entretanto, a “New York Public Library” – com seus quase 150 km de
estantes, espalhadas em oito andares abaixo da icônica sala de leitura
principal, apenas no edifício da 5ª Avenida – não é só belezura. E isso
veremos no nosso papo da semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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