Alteração das circunstâncias
No mês passado (fevereiro), conforme comentado aqui nos nossos últimos dois artigos, o Supremo Tribunal Federal nos presenteou com duas decisões sobre temas relevantíssimos: (i) a permissão da Receita Federal do Brasil, com base na Lei Complementar 105/2001, sem necessidade de autorização judicial, de acessar dados bancários dos contribuintes para fins de averiguação de irregularidades/ilegalidades tributárias; (ii) a possibilidade, por entender não existir ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência, de iniciar-se a execução da pena (criminal) logo após a decisão condenatória em segundo grau.
Conforme também explicado aqui, o Supremo Tribunal Federal, nessas recentes decisões, reconsiderou anteriores decisões suas, dos anos 2009 e 2010, estabelecendo, assim, uma nova orientação jurisprudencial (a bem da verdade, em ambos os casos, retornou a uma mais antiga orientação).
Não tenho dúvida de que, em tempos de “Lava Jato”, o Supremo Tribunal Federal, para tanto, levou em consideração o que, na teoria dos precedentes obrigatórios (ou do “stare decisis”), é às vezes chamado de “alteração das circunstâncias”. E que circunstâncias: o sentimento nacional, cada vez crescente, de que não podemos mais conviver a impunidade.
Precedentes judiciais, mesmo aqueles que não possuem caráter cogente, são um material precioso, representando a cristalização da sabedoria do passado, e devem ser, tanto quanto possível, preservados. Todavia, até mesmo no caso de precedente obrigatório, a própria doutrina do “stare decisis”, desenvolvida com o passar dos anos pela tradição do “common law”, prevê situações que, cuidadosamente analisadas, levam a uma necessária revogação do precedente, muito embora, à primeira vista, parecesse ser o caso de sua simples repetição.
Entre outras coisas, deve-se dar a devida valoração às circunstâncias em que o precedente foi julgado. Grosso modo, um tribunal, apesar de reconhecer que, acerca do caso em julgamento, há decisão anterior, pode se afastar dela reconhecendo a alteração das circunstâncias que impõem uma decisão noutro sentido. A doutrina da alteração das circunstâncias é identificada pela máxima latina “cessante ratione, cessat ipsa lex”, que pode ser traduzida como: “cessando as razões para a existência da norma jurídica, ela deixa de existir por si própria”.
Mais frequente no direito americano que no direito inglês (citamos expressamente esses dois países pela importância de ambos para a civilização do “comom law”), essa máxima tem especial relevância, ou mesmo só tem lugar, quando se trata de decisões de cortes de última instância (como é o caso do nosso Supremo Tribunal Federal), detentoras do poder de seguir ou se afastar de suas decisões anteriores. De fato, como dito por Lord Simmon em Miliangos v. George Frank Textiles Ltd [1975] 3 ALL 801: “A máxima na fórmula cessante ratione cessante ipsa lex, tomada num sentido literal e muito amplo, é errônea e ilusória”. Em regra, cortes de hierarquia intermediária ou inferior, obrigadas ou não pela regra do precedente, não estão simplesmente livres para desconsiderar um precedente de outro modo aplicável com base no fato de que o motivo que levou à formulação da regra constante de tal precedente parece ter perdido sua força ou poder de convicção. A verdade é que a doutrina/máxima da alteração das circunstâncias não tem o condão de sozinha conferir a qualquer juiz ou tribunal a faculdade de não aplicar o precedente. Ela apenas justifica o exercício de tal poder, quando o juiz ou o tribunal, dentro a hierarquia judicial existente, e é aí que entra o Supremo Tribunal Federal em relação às suas próprias decisões, já previamente o tem.
De toda sorte, avaliar a conveniência de revogar (o chamado “overruling”) seus precedentes de 2009 e 2010 (e as linhas de precedentes deles originadas) não deve ter sido tarefa fácil. Várias questões devem ter sido sopesadas, sobretudo porque implicou uma mitigação dos fundamentos de um sistema (do qual o Supremo Tribunal Federal faz parte) que deve preservar a uniformidade dos entendimentos judiciais. Na verdade, como já disse outras vezes aqui (vide, por exemplo, os artigos “Obediência cega I, II e III”), a questão de se revogar um precedente requer considerações acerca de muitos valores: uniformidade, estabilidade, previsibilidade, confiança, entre outros. E esses valores, sopesados com a “incorreção” do precedente, às vezes podem ser preponderantes para ensejar adesão a uma decisão anterior, mesmo que “errada”.
Mas o Supremo Tribunal Federal, para realizar o “overruling” nos dois casos, deve ter entendido (mesmo que implicitamente): (i) que as decisões de 2009 e 2010 foram erradas, ou seja, a incorreção, injustiça e inconveniência desses precedentes foram constatadas; (ii) e/ou que a sociedade mudou desde o tempo em que as regras anteriores foram anunciadas; e (iii) que os novos entendimentos, (re)estabelecidos agora, simplesmente funcionarão melhor. O STF, mesmo que sem saber, fez uso de um dos sete critérios estabelecidos pelo famoso Lord Reid, em casos decididos entre 1966 e 1975 na Inglaterra, para o exercício do “overruling” (sobre esses critérios, especificamente, vide o artigo “Obediência cega III”): “Um precedente deve ser revogado se, em relação a alguma questão geral ou princípio, não é considerado razoável ou de acordo com as condições sociais contemporâneas ou concepções modernas de política pública (o critério de ‘desarrazoabilidade ou obsoletismo’) - Jones v. Secretary of State for Social Services [1972] AC at 966; Conway v. Rimmer [1968] AC 910, 938”.
Bom, em resumo, às vezes, é mais conveniente e justo que a Suprema Corte decida com base em análise posterior, mais contemporânea e mais elaborada do caso do que ser consistente com decisões anteriores. Acho que foi isso que se deu em ambos os casos e, se eu lá estivesse, decidiria do mesmo jeito.
Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL Mestre em Direito pela PUC/SP |
Nenhum comentário:
Postar um comentário