O direito através da literatura: vale a pena? (I)
Na semana passada, conversamos aqui, embora um tanto
superficialmente, sobre as três formas de interação entre o direito e
literatura, segundo a sistematização tradicionalmente dada pela doutrina
especializada: o direito da literatura (“the law of literature”, “le
droit de la littérature”); o direito como literatura (“law as
literature”, “le droit comme littérature”); e o direito na literatura
(“law in literature”, “le droit dans la littérature”).
Hoje (e em pelo menos mais um artigo) vamos aprofundar um pouco mais
o nosso papo, tratando, especificamente, do direito na literatura (“law
in literature”, “le droit dans la littérature”), que é o estudo
interdisciplinar vocacionado à análise de trabalhos literários,
sobretudo de ficção, que, de alguma forma, abordam “questões jurídicas”,
variando essa abordagem, consideravelmente, a depender da obra
analisada, em termos de intensidade e de estilo.
Especificamente, o que pretendo agora é responder a uma questão que
preexiste à temática direito/literatura: por que estudar o direito
através da literatura? Em outras palavras, há alguma utilidade nisso?
Sem titubear, minha resposta, por vários motivos, é sim.
E sem pretender que minha lista seja exaustiva (ou, como se diz em
juridiquês, de “numerus clausus”), nem que reflita uma ordem de
importância, eis alguns desses motivos.
Primeiramente, o contato com obras literárias de qualidade é
fundamental para a aprimoramento do discurso jurídico, sobretudo para o
aprimoramento da capacidade de escrever dos estudantes e profissionais
do direito, incluindo aqui bacharelandos, advogados, promotores, juízes,
legisladores e por aí vai. Embora a afirmação careça de uma certeza
matemática, nos parece óbvio que, para escrever bem, é preciso ou pelo
menos muito recomendável ler bem.
Em segundo lugar, os textos literários em regra testemunham a visão
sobre o mundo jurídico existente em determinada sociedade em certa
época, muito embora essa visão esteja marcada, em grande medida, pela
ótica particular do autor da obra estudada. E esse testemunho, embora às
vezes impreciso, é bem mais acessível aos leitores (com ou sem formação
jurídica), para fins de reconstrução da imagem que determinada
sociedade tem do direito e de seus atores, que os áridos estudos
jurídico-sociológicos de caráter estritamente científico.
Em terceiro lugar, na literatura, há inúmeras estórias que enfrentam
e resolvem satisfatoriamente problemas jurídicos. Os grandes autores,
com suas belas estórias, relatando a casuística das prisões, da vida
forense ou dos escritórios de advocacia em linguagem bem mais elegante e
acessível que a linguagem técnico-jurídica, são frequentemente
excelentes professores de direito. Como registra Nilo Batista, em
prefácio ao livro “Literatura e direito: uma outra leitura do mundo das
leis” (de Eliane Botelho Junqueira, publicado pela editora Letra
Capital, 1998), “o relato literário, muitas vezes integrado pela
experiência do autor, quando não explicitamente autobiográfico, não é
menos elucidativo do que a objetiva descrição técnica do mesmo fato,
processo ou instituição; através de Dostoiévski (Recordações da Casa dos
Mortos) aprende-se sobre a penitenciária não menos que através de John
Howard (O Estado das Prisões) e sua descendência. Um diretor de presídio
brasileiro que tenha lido, por exemplo, representantes da nossa
literatura como Graciliano Ramos (Memórias do Cárcere), Plínio Marcos
(Barrela) e Assis Brasil (Os que Bebem como os Cães) compreenderá melhor
o que está fazendo”.
Em quarto lugar, vale a pena estudar o direito através da literatura
porque, à medida em que haja uma correspondência entre o texto
literário e a realidade do mundo jurídico (o que nem sempre se dá, é
importante isso ficar claro, uma vez que estamos falando sobretudo de
obras de ficção), o estudo do direito, partindo da casuística narrada no
texto analisado, torna-se menos abstrato. Eliane Botelho Junqueira (no
já citado “Literatura e direito: uma outra leitura do mundo das leis”),
fazendo uso da literatura brasileira, exemplifica esse ponto com um viés
jurídico-sociológico bastante interessante: “Mais especificamente, se,
por hipótese, a imagem do bacharel em direito personificada pelo
Bentinho de Machado de Assis (Dom Casmurro) corresponde às análises
desenvolvidas pelas ciências sociais sobre a criação dos cursos
jurídicos e sobre o papel social desempenhado durante o Império pelos
bacharéis em direito, a literatura representa uma possibilidade de se
estudar esse processo histórico não apenas através das análises
desenvolvidas por autores como Sérgio Adorno, Joaquim Falcão etc., mas
também através de 'personagens reais'. Da mesma forma, nada melhor do
que o conjunto das obras de José Lins do Rego para fomentar uma
discussão sobre a pluralidade do sistema de ordens jurídicas existente
no Brasil, sobre a coexistência do direito do Estado e o direito dos
'coronéis' ou dos 'cangaceiros'. Ou a análise de Vidas Secas e de
Memórias do Cárcere para exemplificar não apenas a violência estatal dos
regimes de exceção, mas também a violência estatal cotidiana sobre os
setores subalternizados da sociedade e, principalmente, a violência
social, apreendida por Graciliano Ramos a partir tanto de sua
experiência nos cárceres do período varguista, como de seu conhecimento
da população nordestina, retratada através do personagem Fabiano”.
Bom, por ora, por falta de espaço, paro por aqui. Mas não pensem que
a (minha) lista acabou. Semana que vem apareço com mais alguns bons
motivos para se estudar o direito através da literatura.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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