A GUERRA QUE QUASE HOUVE
Tomislav R. Femenick – Mestre em
economia, com extensão em historia e sociologia. Do Instituto Histórico e
Geográfico do RN
Dois
fatos relativamente recentes voltam a suscitar a controversa que ainda existe
com relação à fixação da divisa do Rio Grande do Norte com o Ceará. Desde 2009
tramita na Assembleia Legislativa do estado vizinho um projeto de Decreto
Legislativo, que dispõe sobre a convocação de plebiscitos para decidir sobre os
limites territoriais interestaduais. Em 14 de abril de 2011, o Diário Oficial
do Estado do Ceará publicou ato daquela casa que criava uma Comissão Especial
para diagnosticar a indefinição de divisas do Ceará com o Piauí, Pernambuco,
Rio Grande do Norte e Paraíba. Por trás dessa nova disputa estaria a disputa
pelos royalties do
petróleo que a Petrobras descobriu na divisa das cidades de Tabuleiro do Norte
(CE) e Apodi (RN).
No
ano passado o engenheiro Jorge Cintra, do Instituto Histórico e Geográfico de
São Paulo, utilizado técnicas e instrumentos de medição modernos que proporcionam
maior rigor de resultados, elaborou um novo mapa das Capitanias Hereditárias (terra
doadas no século XVI pela Coroa Portuguesa a comerciantes e nobres lusitanos)
que contradiz o mapa tradicional, de autoria do historiador Francisco Adolfo de
Varnhagen. Esse novo estudo, confirma a posição do Rio Grande do Norte na
questão dos limites, baseados na prelazia histórica.
Essa é uma questão antiga e que, na opinião do
historiador Saul Estevam Fernandes, teria sido a
causa principal que motivou a criação dos Institutos Histórico
Geográfico do Rio Grande do Norte e do Ceará.
UMA QUESTÃO DE SAL
O monopólio
do sal, instituído pela coroa portuguesa permitia que apenas as províncias de
São Tomé, Rio Grande e Pernambuco produzissem e comercializassem sal
brasileiro, desde que em suas respectivas fronteiras. Em meados do século XVIII a Vila de Aracati
era uma grande produtora de carne salgada e usava sal trazido de Portugal, que
era gravado com altos impostos. Visando solucionar seu problema, Aracati
solicitou a anexação das salinas do Rio Mossoró ao seu território, o que foi
concedido por uma Carta Regia de 1793. Em 1801 o governo cearense como ponto de
referência do limite a margem esquerda do rio Mossoró, o que provocou protestos
do governo da província do Rio Grande do Norte. A questão perdurou mesmo após a
independência e durante todo o período do Império.
Em meados do
século XIX, o desenvolvimento de Santa Luzia de Mossoró atraía mais e mais
pessoas para a cidade e reavivou o clima de disputa fronteiriço com o Ceará.
Caso típico foi a disputa em que a cidade se viu envolvida em torno das oficinas de carne-seca, quando alguns comerciantes
de Aracati quiseram fechar os portos dos rios Assú e Mossoró, visando impedir a
saída do produto. Sem mercado, as oficinas
seriam fechadas. A situação se adensou, em 1888, quando a Câmara daquela cidade
cearense “mandou medir terrenos à margem esquerda
do Mossoró” e tentou estender os limites de seu Município, absorvendo
terras das localidades de Tibau e Grossos. Depois de marchas e contra marchas,
um ouvidor substituto mandou dar posse dos terrenos em litígio à vila de
Aracati, mas o território limítrofe continuou sem ser demarcado.
Em 1894, o Estado do Ceará impetrou uma ação no
Supremo Tribunal, alegando “conflito de jurisdição”, que se transformou em
"ação de limites". Mesmo com a situação sub judice, isto é, em trâmite judicial, em 1901, a Assembleia
Legislativa do Ceará aprovou, e o Presidente provincial sancionou uma Lei
elevando Grossos à condição de Vila. O governador potiguar protestou. Os
norte-rio-grandenses, que moravam na área disputada, reagiram, e os governos
dos dois Estados mandaram tropas para o local. Entretanto, não houve conflito
armado.
CONFLITO QUE QUASE HOUVE
A
fronteira entre os dois Estados era marcada pela barra do rio Mossoró, e ali se
posicionaram tropas do Rio Grande do Norte, em fins de janeiro de 1904. Os
cearenses reagiram, trocando sua posição de invasores para invadidos. “Multidões se reuniam na praça Central de
Fortaleza exigindo a guerra ao Rio Grande do Norte”. O governo do Ceará
nomeou um Tenente-coronel do Exército, Salustiano Padilha, para expulsar as
tropas potiguares. Em cinco de março de 1904, a tropa cearense, composta de duzentos e cinquenta
homens, tomou posição em Aracati, a somente oitenta quilômetros da zona
disputada.
José
Torcápio Salustiano de Albuquerque Padilha nasceu em Camocim, no dia sete de
setembro de 1861. Ele foi criado por um tio, que tinha sido voluntário da
pátria na guerra do Paraguai e que lhe incutiu um grande sentimento de
xenofobia. Em 1883, formou-se aspirante pela Escola Militar de Rio Pardo.
Quando dos problemas fronteiriços do Brasil com a Bolívia por causa da questão
do Acre, ele externou o desejo de “oferecer
sua vida em holocausto pela pátria”.
O tratado de Petrópolis de 1903, que resolveu as questões com a Bolívia,
frustrou seus sonhos de glória nos campos de batalha. Decepcionado, voltou para
o Ceará. Agora, ele tinha um outro inimigo, os norte-rio-grandenses; tinha a
sua guerra, a região contestada entre o Rio Grande do Norte e o Ceará.
Os
cearenses se deslocaram de Aracati até Grossos, aonde chegaram em 11 de março
de 1904 e ali estabeleceram seu quartel-general, porém não encontraram as
forças potiguares, que tinham feito um recuo tático, cruzando a barra do rio
Mossoró, para se reagruparem em Areia Branca. O comandante da expedição
planejou atravessar de barcos a barra do rio e invadir a cidade de Areia
Branca. Entretanto, alguns dos seus oficiais se anteciparam; cruzaram o rio, se
entenderam com as tropas opostas e telegrafaram ao Presidente da Província do
Ceará, recebendo deste a ordem para evitar a invasão do Rio Grande do Norte
(que eles já haviam invadido quando entraram em Grossos).
Todavia,
o Tenente-coronel Salustiano se negou a cumprir a ordem do seu governador e, às
sete horas do dia 12 de março de 1904, com apenas poucos homens, fez a
travessia do rio e ficou esperando pelo outros, que nunca chegaram. Sem apoio,
teve que se retirar.
O
Presidente da República interveio na questão e mandou que as tropas de ambos os
lados recuassem para suas bases. A primeira tentativa de solução pacífica da
disputa da região contestada pelo dois Estados deu-se via arbitragem, portanto
sem envolvimento dos Tribunais regulares. A decisão foi favorável ao Ceará. Nos
Tribunais, o Rio Grande do Norte ganhou em três ocasiões diferentes: 30 de
setembro de 1908; 02 de janeiro de 1915 e 17 de julho de 1920.
Caso
o Rio Grande do Norte tivesse perdido essa causa, na verdade quem sairia
perdendo mais ainda seria o Município de Mossoró, pois grande parte de sua
receita e da renda da população vinha daquela região, onde eram desenvolvidas
as mais profícuas e proveitosas atividades econômicas locais: extração de sal,
criação de gado, exploração agrícola e produção de carne de sol.
NOS ANOS 1960
O problema
ainda teve um outro desdobramento. Quando Aluísio Alves era governador, o
Estado do Rio Grande do Norte fez a doação de glebas de terras devolutas a
antigos posseiros, muitos deles moradores em região fronteiriça com o Ceará,
expedindo o competente documento de posse e editando ato que autorizava que os
beneficiados pudessem contrair empréstimos com bancos oficiais, dando as
referidas terras como garantia. Essa medida favoreceu os habitantes da região,
dando-lhes possibilidades de melhorar seu nível de vida.
Em outubro de
1967, vários proprietários de terras de Baraúnas, então distrito do Município
de Mossoró, foram vítimas de arbitrariedades por parte de supostos donos de suas
terras. Entretanto, inesperadamente eles foram presos pela polícia cearense e
levados para a cidade de Russas, onde um cidadão de nome José Louredo
declarou-se dono de toda a área doada pelo Governo do Rio Grande do Norte, além
do mais sob a alegação de que todas aquelas terras fazem parte do estado do
Ceará.
Os
proprietários se viram forçados a abandonar suas glebas e benfeitorias nelas
existentes, depois de terem iniciado o beneficiamento e cultivo das terras
doadas pelo Governo potiguar. Após esse incidente, numa zona supostamente
contestada, pois oficialmente nada havia a respeito do assunto, os trabalhos
agrícolas e pastoris da região foram paralisados, com grandes e sensíveis
prejuízos para a economia local.
A CONSTITUIÇÃO
A Constituição Federal
Brasileira de 1988, no art. 12, parágrafos 2º, 3º e 4º, de seus dispositivos
transitórios, determina que em um prazo de três anos, contados a partir da data
de sua promulgação, que os Estados e municípios promovessem a demarcação de
suas linhas divisórias em litígio. Esgotado esse prazo, cabe à União determinar
os limites das áreas litigiosas.
Como até agora o
Rio Grande do Norte e o Ceará não resolveram definitivamente suas pendências de
limites geográficos, o caso deve seguir o que estabelece a alínea “f” art., do
art. 102 da nossa Carta Magna: “Compete ao STF [...] as causa e os conflitos
entre a União e os Estados, entre a União e o Distrito Federal, ou entre uns e
outros...”.
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