01/02/2022

As “incelenças” Padre João Medeiros Filho São cânticos ou benditos fúnebres, executados por grupos de rezadores e rezadeiras (distintos das “Encomendadeiras das almas”), durante a vestição da mortalha, o velório (“fazer quarto”) e o sepultamento dos fiéis. Existem ainda em vários estados do Brasil. Discute-se a origem do termo. Evidentemente, trata-se de uma corruptela da palavra excelência. Para Oswaldo Lamartine, arrimado na Missão Abreviada, o termo provém de “orações de excelência para conduzir a alma ao Céu.” Lamartine seguia a recomendação do apóstolo Paulo: “Guardai cuidadosamente as tradições que vos foram ensinadas” (2Ts 2, 15). Segundo Théo Brandão, originalmente as incelenças eram cantadas nos funerais de criancinhas, verdadeiros anjinhos e excelências da corte celestial. De acordo com alguns historiadores, tal costume foi trazido de Portugal e enriquecido com elementos indígenas e africanos. Há vestígios de sua existência na Itália (Sicília) e na Grécia Antiga. Cabe lembrar que no sertão nordestino, urbano ou rural nem sempre existia a presença sacerdotal para presidir os funerais, nascendo formas alternativas de encomendação. Os clérigos mostravam no passado (talvez ainda hoje) pouco apreço pela religiosidade popular. Faltava-nos uma melhor formação para perceber a riqueza cultural, integrante da identidade de nosso povo. Não fomos iniciados na verdadeira seiva da sabedoria popular que constrói as tradições de nossa gente. Em razão desse menoscabo, muita coisa se perdeu. Padres Jocy Rodrigues (Tutóia/MA) e Reginaldo Velloso (Olinda/PE) conseguiram resgatar obras primas. Houve tempos em que as incelenças eram consideradas superstições, sendo desestimuladas ou proibidas. Hoje, muitos movimentos tentam perpetuar a rica tradição religiosa e cultural. Dentre tantos, destaca-se um grupo da comunidade de Cabeceiras, em Barbalha (CE). Assevera-se que a sistematização das incelenças começou com o Padre José Antônio de Maria Ibiapina (1806-1883). Este organizava equipes de fiéis (beatos), denominados “penitentes”, para catequizar o meio rural. Por muito tempo, tais cânticos constituíram parte fundamental dos velórios na região do semiárido, tendo sido registrados por vários estudiosos. Em “Morte e Vida Severina”, de João Cabral de Melo Neto, a conversa entre Severino e a Comadre – na qual ela lhe pergunta se sabia rezar incelenças – sugere que estas desempenhavam papel importante na vida cotidiana das comunidades nordestinas. Assim lemos em João Cabral: “Essa vida por aqui é coisa familiar. Mas, diga-me retirante, sabe benditos rezar? Sabe cantar excelências, defuntos encomendar? Sabe tirar ladainhas? Sabe mortos enterrar?” Dorival Caymmi gravou um desses benditos com o título de “Velório”, explicitando o fato de que para o sertanejo os velórios e as incelenças são quase inseparáveis. Algumas foram gravadas por: Clementina de Jesus e Edu Lobo. Nara Leão canta a incelença da Virgem: “Oh! Mãe de Deus, rogai por ele [falecido]. Esperança nossa, fonte do amor, gênio do bem, honesta flor.” Nessa forma popular de velório, realizada na casa do falecido – estendendo-se por toda a noite anterior ao enterro – atribui-se aos cânticos e rezas a propriedade de invocar anjos e santos, que, segundo a crença, acompanham a alma do falecido até o destino conveniente. De transmissão basicamente oral, nem sempre formam um ritual homogêneo, variando conforme a região, o grau de instrução dos presentes etc. Em tais rituais, há amálgama entre práticas oficiais da Igreja Católica e hábitos da religiosidade popular. Em muitos casos, versos lúdicos e trechos de cordel – despidos de qualquer significado místico – são enxertados para consolar os parentes do falecido. A estrutura literária dos benditos é poética, geralmente composta de grupos de doze estrofes, suplicando misericórdia, demonstrando penitência e arrependimento pelos pecados cometidos. O número é simbólico em homenagem aos doze apóstolos de Cristo. A figura intercessora de Maria Santíssima sempre está presente. Inspiradamente, Ariano Suassuna a denomina “A Compadecida”. A musicalidade é um misto de canto gregoriano em forma de salmodia com sons e tons de aboio. São cânticos de melodia despojada, com o predomínio do estilo silábico e sonoridade repetida, proferidos diante do defunto pelos familiares, amigos e vizinhos. A vida e a morte são elementos importantes da religiosidade popular no Brasil. Revelam a espiritualidade do povo brasileiro, que vive em profunda comunhão com Deus, em quem deposita uma infinita confiança. Há consciência de que “Deus é o Senhor da vida e da morte.” (1 Sm 2, 6).

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