O vaqueiro
Chicão
Tomislav R. Femenick – Jornalista e
historiador
Nas minhas memórias há duas
figuras de vaqueiros. Vaqueiros daquele de antigamente, que usavam chapéu,
parapeito, gibão, perneiras, meia luva e alpercatas de couro; não por enfeite,
mas por necessidade de trabalho. Os dois eram Francisco. O primeiro era seu
Chico Bem, o vaqueiro de meu avô na Fazenda Rio Morto em Mossoró. Um dia, por
causa de um pouco mais ou nada, brigaram e acabaram com a amizade; mais eu
continuei seu amigo. Homem danado de tinhoso, de muito poucas palavras, caladão
mesmo. O outro era Chicão, lá do Canto Grande, no
Município de Alto do Rodrigues, na margem direita do Rio Assu. Era o contrário
do seu xará mossoroense. Soube de muitas desavenças em que ele se envolveu, mas
nunca soube que tivesse apartado a amizade com seus desafetos. Sorridente por
tudo, conversador inveterado, sorria mais e conversava mais quando acompanhado
por um gole de pinga ou de conhaque ou, ainda, de uns copos de cerveja; que
dizia não gostar, mas tomava todos.
Ambos usavam a vestimenta de
vaqueiro para trabalhar, principalmente quando iam campear gado, enfrentando a
caatinga ou mesmo o mato ralo do semiárido, com seus espinhos e surpresas. Essa
verdadeira couraça é feita de couro curtido, sem pelo, flexível, macio e de uma
cor entre marrom claro e vermelho escuro.
O gibão, ou jaleco, era enfeitado com pespontos e fechado com cordões de
couro. O parapeito, preso no pescoço por uma tira de couro, era de um couro
mais fino, porém resistente. As perneiras, presas na cintura também por tiras
de couro, formavam uma espécie de calça, que ia da virilha até os pés. Nas mãos
usavam luvas, sem dedos e sem cobertura nas palmas. Nos pés, alpercatas
fechadas na frente. Porém o mais importante era o chapéu, feito de couro forte,
que os protegia dos galhos dos “pés de pau” e do sol. Para completar o aparato,
tinham esporas nos pés e uma chibata na mão.
Eu fui mais amigo do Chicão, pois
tínhamos idade mais próxima; ele era mais velho cinco ou dez anos. Sou até
padrinho de um de seus filhos, padrinho de fogueira de São João, que no seu
dizer vale mais. A sua fazenda era vizinha à do meu sogro, com quem tinha uma pendenga
por causa da localização de uma cerca e alguns palmos de terra. Mas
conversavam, trocavam ideias sobre o inverno, sobre a data certa para fazer o
plantio ou a colheita de algodão. Tudo só como preâmbulo para fazer negócio com
gado. Nesses dias as discussões eram brabas, com xingamento e acusações de
roubo feitas por ambas as partes, tudo dito cara-a-cara e tudo esquecido com
uma xícara de café trazida pela velha Berréia, café feito na hora; nem
requentado, nem de garrafa térmica. Vezes havia em que demoravam horas ou dias
nas idas e vindas das negociações. Terminadas os ajustes, Chicão ia à sua casa
e, invariavelmente, trazia um presente para seu vizinho: um queijo de coalho.
Era quase que um ritual, estabelecido desde muito tempo antes de que eu os
conhecesse.
A vida de Chicão era mais negociar
que criar gado. E não trabalhava para ninguém, só para ele mesmo. Saia de casa
ia com seus auxiliares para Carnaubais, Ipanguaçu, Upanema, Afonso Bezerra,
Angicos, Santana do Mato ou outras direções, para comprar algumas cabeças de
gado aos seus fregueses de sempre. Gado que vendia a outros fregueses ou
diretamente aos matadouros de algumas cidades. Fazia a viagem de ida e de volta
a cavalo. Levava dias, semanas, mas, dizia, tinha o prazer de na volta vir
tangendo a boiada pelas estradas, veredas e caminhos que somente ele conhecia.
Isso tudo para fazer a viagem menor, para não maltratar os animais. Às vezes
tinha de percorrer trilhas na caatinga; mesmo assim dificilmente perdia alguma
rês. Só tinha receio de se encontrar com caravanas de ciganos.
Diziam que, certa vez, um cigano
tentou atirar em Chicão. Ele nunca tinha me falado desse caso. Uma noite
estávamos jogando conversa fora e eu lhe perguntei se a história era
verdadeira. Ele deu uma daquelas suas risadinhas e mudou de assunto. Chamou
minha atenção para o perfume suave que as plantas de aguapé exalavam de uma
lagoa próxima e a conversa andou por outros caminhos. Quando estava de saída,
voltou-se para mim e disse: “Sobre a sua
pergunta. Eu estou vivo; mas não garanto que ele esteja”.
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