Dostoiévski e o seu cárcere
Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881) nasceu em Moscou, em uma família que podemos classificar como da nobreza decadente. Perdeu os pais muito cedo. Formou-se em engenharia. Fez jornalismo. Mas foi sobretudo um escritor. Um ficcionista que tratou com maestria da filosofia, da psicanálise e da religião. “Gente Pobre” (1846), “O Duplo” (1846), “Humilhados e Ofendidos” (1861), “Recordações da Casa dos Mortos” (1862), “Crime e Castigo” (1866), “O Jogador” (1867), “O Idiota” (1869), “O Eterno Marido” (1870), “Os Demônios” (1872) e “Os Irmãos Karamázov” (1881) são alguns dos seus títulos famosos. Simplesmente genial. Dostoiévski faleceu em São Petersburgo.
Mas não vou
escrever aqui sobre “Crime e castigo”, “O jogador” ou mesmo “Os Irmãos
Karamázov” (1880), embora considere estas as obras-primas do grande
literato e pensador russo. Pelo menos não diretamente.
Minha
intenção hoje é tratar de um aspecto – juridicamente relevante, aliás –
da vida tormentosa de Dostoiévski. E das suas consequências. Para quem
não sabe, acusado de conspirar contra o Czar Nicolau I (1796-1855),
Dostoiévski foi, em 1849, condenado à morte. Pena essa que, apenas
momentos antes do comando para o fuzilamento, foi anunciada como
comutada para prisão com trabalhos forçados (diz-se que o próprio Czar
exigira a encenação da falsa execução). Dostoiévski, então, com os seus
grilhões, foi levado à Sibéria. Quatro anos de prisão. E coisa de dez
anos de exílio nesse fim de mundo.
Esse padecimento – a partir
da sua experiência de condenado numa prisão decadente, suja e
intransponível em Omsk, na Sibéria – foi narrado de modo tocante por
Dostoiévski, em “Recordações (ou Memórias) da Casa dos Mortos”, talvez
como ninguém mais na literatura universal. De 1862, “Recordações da Casa
dos Mortos”, construído a partir de uma coleção de fatos e eventos
relacionados à vida nas prisões da remotíssima Sibéria, é um romance, é
verdade. Mas só quem passou por esse “sofrimento inenarrável”, só quem
ali esteve “sepultado vivo”, para usar de expressões do próprio
Dostoiévski, seria capaz de descrever (se talento literário tiver para
tanto, claro) as condições de vida e a personalidade daqueles que são
condenados, culpados ou não, a viver ou morrer nessas condições.
O momento da prisão em si, a solidão do cárcere ou a promiscuidade com
delinquentes perigosos, tudo isso é terrível, sobretudo para homens de
caráter e de sentimento. Na verdade, como adverte Lemos Britto
(1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira”
(Livraria José Olympio Editora, 1946), quem passa em frente às masmorras
“onde se cumprem penas não sabe o que de angústia e desesperos se passa
na alma de seus habitadores. Ainda há quem veja o crime e esqueça que o
criminoso é um homem, que a sua alma não se petrificou, que a sua
sensibilidade não morreu com a prática do ato antissocial. E não
adivinha também que do lado de fora se representam outros dramas,
ligados àquelas existências esmagadas sob um número e um regime
penitenciário, o drama das famílias dos condenados, tão doloroso muita
vez quanto o das famílias das vítimas”.
De toda sorte, para além
da própria composição de “Recordações da Casa dos Mortos”, podemos
tirar algo mais de positivo da dolorosa experiência de Dostoiévski: o
incontestável florescimento da genialidade literária do autor de “O
jogador”. Afinal, como disse Friedrich Nietzsche (1844-1900), “o que não
me faz morrer me torna mais forte” (dito que é uma versão mais chique
do nosso “o que não mata, engorda”). Nietzsche, por sinal, dizem,
considerava Dostoiévski o único “psicólogo” com o qual teve algo a
aprender.
De fato, como nos recorda Lemos Britto, “é comumente
aceito e afirmado pelo próprio Dostoiévski, que após a simulação da
execução, ele passou a apreciar a vida de uma maneira muito diferente da
anterior, iniciando um processo de transformação existencial, literária
e política, que estaria terminada quando de seu retorno a São
Petersburgo, 10 anos depois”. Aliás, em texto introdutório à recente
edição de “Memórias da casa dos mortos” da Editora Nova Fronteira
(2018), intitulado “Dostoiévski e a Casa dos Mortos”, Otto Maria
Carpeaux também anota: “Comparem-se as obras que Dostoiévski escreveu
antes do exílio siberiano – Gente pobre (1846) ou Noites brancas (1848) –
com as obras pós-sibéria: Crime e Castigo, O idiota etc. até Os Irmãos
Karamázov: a mudança não é somente de amadurecimento intelectual,
espiritual e literário. O homem parece outro, o escritor parece outro.
Foi, evidentemente, profunda a influência exercida pelos anos de
trabalhos forçados na prisão de Omsk”.
Bom, eu nunca estive preso. Deus me livre de um dia ser. E nem que fosse para ser um novo Dostoiévski.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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