Sobre “O vento será a tua herança” (II)
Como prometido na semana passada, hoje conversaremos mais
detidamente sobre o filme “O vento será a tua herança” (“Inherit the
Wind”), de 1960, dirigido por Stanley Kramer (1913-2001), cineasta que,
registre-se, também dirigiu o outro grande “filme de tribunal”, “O
Julgamento de Nuremberg” (“Judgment at Nuremberg”), de 1961, sobre o
qual, um dia, aqui também falaremos.
“O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”) nos apresenta o
célebre “Julgamento do Macaco”, acontecido em 1925, na pequena cidade de
Dayton, no estado norte-americano do Tennessee (no coração do chamado
“Bible Belt” estadunidense, onde o pensamento religioso é dominado por
uma interpretação estritamente literal da Bíblia), no qual o professor
local John Thomas Scope (1900-1970) foi criminalmente processado por
haver infringido uma lei estadual que proibia o ensinamento da teoria da
evolução da Charles Darwin (1809-1882) nas escolas. No julgamento de
1925, como a história registra, o político populista e fundamentalista
William Jennings Bryan (1860-1925), na acusação, buscou a assegurar que
as crenças religiosas ditassem o ensino da ciência nas escolas
americanas, enfrentando o célebre advogado liberal Clarence Darrow
(1857-1938), que, “pro bono”, faz defesa do acusado professor.
Entretanto, embora “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”)
seja um dos mais antigos exemplos de filmes de tribunal inspirado em
fatos reais, em sendo ficção, boa parte do que ele apresenta não
corresponde ao que realmente se passou no “Julgamento do Macaco” de
1925. Como informam Steve Greenfield, Guy Osborn e Peter Robson (em
“Film and the Law: the Cinema of Justice”, Hart Publishing, 2010), lendo
os registros e as transcrições do caso de 1925, vê-se claramente que
“muitas liberdades foram tomadas em relação aos eventos acontecidos”.
No filme de 1960, o julgamento se dá em Hillsboro, a “fivela do
cinturão bíblico” dos Estados Unidos da América, cidadezinha fictícia
supostamente localizada entre os estados do Tennessee e do Kentucky.
Spencer Tracy (1900-1967) faz o papel de Henry Drummond (personagem
baseado em Darrow), o advogado da grande cidade (de Chicago, mais
precisamente), que defende um professor local, o jovem Bertram T. Cates
(na vida real, o réu chamava-se John Scopes), papel de Dick York
(1928-1992), criminalmente acusado por haver discutido a teoria da
evolução em sala de aula. Fredric March (1897-1975) faz o papel do
promotor especial para o caso, Matthew Harrison Brady (personagem
baseado em William Jennings Bryan), que é um célebre político populista e
religiosamente ultraconservador. Também muito importante na trama é o
papel Gene Kelly (1912-1966), que interpreta o jornalista do Baltimore
Herald E. K. Hornbeck, personagem que, por sua vez, é inspirado no
grande jornalista e iconoclasta americano (de Baltimore) H. L. Mencken
(1880-1956), o criador da antes referida expressão “Bible Belt”. O
elenco ainda conta outros nomes conhecidos do cinema e da televisão,
tais como Donna Anderson (1939-, no papel de Rachel Brown), Florence
Eldridge (1901-1988, como Sara Brady), Harry Morgan (1915-2011, como o
juiz Mel Coffey), Elliott Reid (1920-2013, como o promotor Tom
Davenport) e Claude Akins (1926-1994, como o reverendo Jeremiah Brown).
Cinematograficamente falando, a grande performance de Spencer Tracy
no papel de Henry Drummond (muito embora eu ache que uma maior
teatralidade cairia bem nesse causídico), ao lado da fantástica
interpretação de Fredric March, como o acusador Matthew Harrison Brady, o
dragão do literalismo bíblico que no julgamento é completamente
desacreditado, são pontos altos da sétima arte. No mais, como lembram
Steve Greenfield, Guy Osborn e Peter Robson (em “Film and the Law: the
Cinema of Justice”, Hart Publishing, 2010), o filme é memorável pelas
várias cenas de tribunal, em particular a inquirição (em
“cross-examination”) do próprio promotor Matthew Brady, “que é chamado
como testemunha, para explicar o significado da Bíblia”. De minha parte,
também achei especialmente tocante a cena, no final do julgamento, em
que o advogado/promotor Matthew Harrison Brady faz uma peroração final
(leia-se um sermão) delirante, ao fim da qual, encolerizado, ele morre.
Cenas como essa, em que a ficção se aparta da realidade (pois, como
sabemos, William Jennings Bryan faleceu cinco dias após o “Julgamento do
Macaco”, do que à época foi chamado de um “ataque de apoplexia”), fazem
de “O vento será a tua herança” (“Inherit the Wind”) um dos melhores
filmes de tribunal de todos os tempos.
Juridicamente falando, a coisa toda, desde o início do filme, é
marcada pelo preconceito e pela parcialidade. O acusador Matthew
Harrison Brady – tido, como lembra Christian Guéry (em “Les avocats au
cinéma”, Presses Universitarie de France/PUF, 2011), como a “mão direita
do Senhor” –, no comecinho da trama, já chega à pequena cidade
interiorana de Hillsboro literalmente nos “braços do povo”, que, em sua
grande maioria (salvo alguns jovens estudantes da cidade, o filme dá a
entender), apoia as teorias criacionistas da Bíblia em oposição às teses
darwinianas sobre a origem dos homens. “Aquele que acredita descender
de macacos acaba virando um macaco”, é o que mais ou menos afirma o
herói dos criacionistas. No julgamento propriamente dito, a defesa é
proibida de trazer ao júri o depoimento de cientistas e estudiosos dos
mais variados ramos do conhecimento, todos de reconhecida reputação,
enquanto que à acusação, personificada na figura de Matthew Harrison
Brady/William Jennings Bryan, é permitido apresentar e desenvolver os
mais variados e fundamentalistas argumentos teológicos.
Como anota Nicole Rafter em artigo constante do livro “Law and Film”
(Blackwell Publishers, 2001), “com o radicalismo religioso e moralismo
permeando a sala de julgamento, potencializados pelo calor angustiante
do sul dos EUA, as chances do professor de ter um julgamento justo
parecem desde logo nulas”. A argumentação de Henry Drummond em prol da
liberdade de pensamento de nada vale contra os preconceitos arraigados
na pequena Hillsboro. E o professor/réu é condenado, embora apenas a uma
pena simbólica de multa.
Bom, mas esses e outros aspectos jurídicos do filme eu pretendo abordar no nosso papo da semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
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