27/01/2020


RELEMBRANDO TICIANO DUARTE

Valério Mesquita*

Certos homens adquirem uma visibilidade tão marcante em seu campo de atuação que se tornam imprescindíveis aos seus contemporâneos, na medida em que suas opiniões e convicções passam a determinar modos de ver e de interpretar os acontecimentos da vida social, política e cultural. É que aos olhos deles nada daquilo que importa passa ao largo.
Assim via e identificava o meu primo-irmão Ticiano Duarte. Desde a antiga Rua 13 de Maio, depois Princesa Isabel, quando o conheci efetivamente e melhor, lá pelos idos de 1950. De 1954 em diante fui revê-lo na rua Voluntários da Pátria, nº 722, Cidade Alta, telefone 2901. Ele era já expressão do “batepapo” no Grande Ponto, seu fiel ancoradouro, onde se tornara notário público e destemido navegante das ruas e avenidas da política potiguar. Bacharel em Direito da Faculdade de Maceió, tornou-se decano do jornalismo da imprensa potiguar, atividade da qual desfrutou de ilibada notoriedade por sua isenção e imparcialidade nos juízos dos acontecimentos da política. Seu memorialismo ganhava ritmo de crônica e embasamento de historiador. Em seus escritos era possível intuir aquele saber de experiências, traço que distingue o verdadeiro homem de visão de um mero prestidigitador de quimeras.
Foi presença fecunda na imprensa norte-rio-grandense. A colaboração de Ticiano Duarte para a Tribuna do Norte rendeu, numa primeira seleção, o livro “Anotações do meu caderno” (Z Comunicação/Sebo Vermelho, 2000), reunindo os principais fatos políticos dos últimos 70 anos do século passado no Rio Grande do Norte. A precisão das análises, a escolha dos protagonistas, a evolução dos acontecimentos e o retrospecto dos episódios que marcaram profundamente as vicissitudes da política potiguar encontraram ali o seu cronista mais atento e informado, criterioso e verdadeiro. No livro, intitulado “No chão dos perrés e pelabuchos”, avultam as mesmas qualidades que consagraram “Anotações do meu caderno”, com a única diferença de que se deteve com mais vagar na descrição de perfis e na análise comparativa dos fatos, mesmo separados por décadas. Vultos inesquecíveis da vida pública estadual, como Djalma Maranhão, Georgino Avelino, Café Filho, Aluízio Alves, Odilon Ribeiro Coutinho (“mistura de tabajara e potiguar”), Tales Ramalho (“paraibano por acidente, norte-rio-grandense pelas grandes ligações familiares, e pernambucano por adoção”) são algumas das estrelas de primeira grandeza dessa constelação de escol. Cronista, para quem a política não pode se dissociar da ética, sob pena de naufragar nos desmandos de governantes e correligionários, Ticiano fez o elogio dos políticos exemplares perfilando a figura de Café Filho em toda a sua trajetória. Ao fazer o elogio da lealdade e da coerência, ele retirou do limbo o nome de Walfredo Gurgel, ressaltando que “o seu governo foi um exemplo de seriedade no trato e na gestão da coisa pública. Todo o Rio Grande do Norte sabe desta irrefutável verdade e nem mesmo seus adversários podem omiti-la, por mais que o tenham combatido no campo das diferenças partidárias”.
Em “No chão dos perrés e pelabuchos” Ticiano encontrou silhuetas de políticos esquecidos pela história, mas preservados, por exemplo, numa Acta Diurna de Luís da Câmara Cascudo, como Hermógenes José Barbosa Tinoco, deputado do Partido Liberal que a voragem do tempo soterrou; os entreveros entre pelabuchos e perrés que incendiaram o paiol das agremiações políticas dos anos trinta, que não escaparam à argúcia focada pelo memorialista.
Ele propôs e reforçou as teses daqueles que defendem a necessidade de uma urgente reforma política a fim de repor o país nos trilhos da ética e inaugurar uma nova era política de honestidade e honradez. O seu viver se espelhou na obra que escreveu a lucidez dos seus testemunhos de luta.
(*) Escritor

22/01/2020



Escravidão e desenvolvimento técnico
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Herdeiros de Deus: a aventura da navegação e os negócios da colonização” – Do IHGRN

A análise da escravidão em geral, e em particular da brasileira, exige uma reflexão sobre o aspecto tecnológico. Tomemos a tecnologia sob dois aspectos distintos: como forma humana de realizar um trabalho e como emprego de técnicas mecânico-científicas de aprimorar um serviço e a qualidade dos instrumentos de trabalho. A plantation (sistema de exploração agrícola baseado em monocultura de exportação, mediante a utilização de mão-de-obra escrava) era quase que autossuficiente, e o escravo que plantava era o mesmo que cuidava, cortava, transportava, moía a cana e participava da feitura do açúcar. Portanto, houve ou não houve mão-de-obra especializada no sistema escravista?
Há aqui duas situações a esclarecer. Primeiro, o trabalho escravo não incluía nenhum progresso técnico? Segundo, era o escravo que não sabia usar novas técnicas de trabalho? Barros de Castro (1980) foca nas inovações técnicas existentes em alguns setores do escravismo, tais como os engenhos hidráulicos e as máquinas a vapor. Por sua vez, Alice Canabrava (1981) afirma que “o fato mais característico apresentado (...) é a estabilidade da técnica da feitura”.
Um visitante do Rio de Janeiro dos anos 1828/1829, Robert Walsh (1985), comenta um fato ocorrido em relação ao porto da cidade: “foi importado da Europa um guindaste que possibilitava a apenas dois homens movimentarem pesos que exigiriam o esforço de vinte; houve, porém, um violento e eficaz protesto contra a sua utilização, já que todos os funcionários da alfândega possuíam um certo número de escravos, até mesmo os mais humildes, que chegavam a ter cinco ou seis cada um, sendo que todos ganhavam dinheiro com o trabalho feito por eles”. Debret (1978) cita outra resistência, essa passiva, à introdução de novas tecnologias: “no Rio de Janeiro, o proprietário de escravos serradores de tábuas, partidário ferrenho desse gênero de exploração, se recusava a instalar serrarias mecânicas em suas propriedades”. Era uma resistência subjacente, implícita, do sistema.
Um outro fator que favorecia a estagnação técnica da unidade produtora escravista era a indiferença dos proprietários em modificar a situação reinante. John Mawe (1978) diz que seria extremamente difícil introduzir melhoramentos técnicos na produção escravocrata, por resistência até dos senhores de escravos. “Essa aversão ao progresso observei com frequência em todos os habitantes do Brasil; quando, por exemplo, interroguei um construtor, um fabricante de açúcar ou de sabão, ou mesmo um mineiro, quais as razões para orientar seus interesses de maneira tão imperfeita, indicavam-me, invariavelmente, um negro, a fim de responder às minhas perguntas”.
Fernando Novais (1984) chega a uma conclusão feliz para o problema da tecnologia na escravidão: “A verdadeira questão não é obviamente entre 'escravos’ e 'máquinas’, mas entre 'escravidão’ e 'progresso técnico’. O ponto essencial é que o escravismo não é um sistema que funciona à base do progresso técnico; e isso não se afirma com exemplos de que escravos, em determinadas situações, foram empregados no manejo de instrumentos sofisticados. Seria preciso demonstrar que o desenvolvimento tecnológico era constante, e um requisito essencial para a reprodução do sistema (...). Por outro lado, a própria estrutura escravista bloquearia a possibilidade de inversões tecnológicas; o escravo, por isso mesmo que escravo, há que manter-se em níveis culturais infra-humanos, para que não se desperte a sua condição humana – isso é parte indispensável da dominação escravista. Logo, não é apto a assimilar processos tecnológicos mais adiantados”.
Eventualmente eram incorporadas à economia escravista tecnologias desenvolvidas nos países capitalistas, bem como algumas outras nascidas no próprio seio da escravidão. De todas elas, a que teve mais efeito no desenvolvimento da escravidão moderna foi o descaroçador de algodão que, se por um lado, tornou mais rentável a lavoura algodoeira, fez crescer a demanda por mais escravos no Estados Unidos e até no Brasil.

Tribuna do Norte. Natal, 22 jan. 2020.


18/01/2020



POMPÍLIA: UM DEPOIMENTO

Valério Mesquita*

Marlindo Pompeu, ex-vereador, político em disponibilidade, agitador social, era o meu intérprete, ungido e jungido das causas populares. Conheci-o em Macaíba, lá pelos idos de 1950, quando estudava no bravo colégio agrícola, de Jundiaí. Pompília já se revelava inquieto, mobilizador e encantador de serpentes. Era amigo do sábio e matemático Damião Pita, também estudante e professor das escolas de primeiro e segundo graus da rede municipal. Na campanha popular para governador em 1960, o velho Pompa ocupou a linha de frente do exército de Dejinha (Djalma Marinho) e transformou-se no próprio tumulto tanto para os adversários como para as suas próprias hostes.
Encontro-o aqui e acolá sempre com pressa, passando com ruído, soltando frases soltas e estribilhos guerreiros sobre lutas e batalhas iminentes. Jamais foi achado em silêncio. Ninguém melhor que ele para bastante procurador de causas possíveis e impossíveis. Daí, nomeava-o, com toda pompa e circunstância, o meu, o nosso advogado. Sem mandato popular, sabia melhor que os outros, os caminhos das pedras, das residências oficiais, porque era sombra e luz, voz e ouvido do clamor das ruas.
A sua marca registrada sempre foi a fidelidade irrepreensível ao líder e ao ideal. Sobre esse ângulo poderia registrar dezenas de atitudes do seu quilate. Continuou sendo o homem de um partido só, sem esmorecer, sem tergiversar, sem recuar. Em Natal, viveu sua fase de líder popular nas comunidades, defendendo-a na Câmara Municipal e fora dela. Para ele não importava ter o mandato para socorrer o povo e requerer a solução dos problemas. Ele sempre o fez porque se tornou conhecido e festejado por todos como um homem simples, pobre, honesto e prestativo.
Conviveu com governadores, senadores, deputados, mas nunca amealhou vantagens pessoais, pois somente lhe interessa servir. Carregava uma pasta cheia de papeis. Nela nada tem de si e sobre si. Apenas, papeladas de pedidos dos outros, reivindicações comunitárias, receitas, recibos inadimplentes de IPTU, água e luz. Foi o carteiro do povo; o jornaleiro do líder que defende; o pastorador de auroras das ruas e avenidas de Natal só para anunciar as alvíssaras, as boas novas do partido e do próximo.
Sempre foi o estafeta legítimo de pleitos, porta-voz dos esquecidos e condutor dos novos rumos e prumos de Natal. Daí sempre confiei nele para pugnar, reivindicar, exigir, porque possuía o senso comum das coisas simples e honestas.
Mas, o velho Pompeu estava cansado. E chegou a hora dele. O momento de todos assumirem o mandato que ele exerceu por nós: o exercício da solidariedade humana por Natal e pelos seus habitantes. Ao prestar-lhe este tributo, eu o faço com emoção pelo muito que ele fez e pelo tão pouco que recebeu. Soou a hora de reparar esse esquecimento.

(*) Escritor.


17/01/2020




O berço da democracia era escravocrata
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Escravos: da escravidão antiga à escravidão moderna” – Do IHGRN

A pátria da Democracia e o berço da cultura ocidental, a Grécia era também uma terra de escravidão. Nela havia o paradoxo da coexistência paralela da liberdade e da falta total de liberdade; do homem racional e do homem mercadoria; do pensar e do executar; do cidadão que “faz” o governo e do escravo; do indivíduo privado das características que fazem o homem natural se transformar em um “sersocial pleno.
Alguns documentos registram a presença de escravos já no período de formação da civilização da Grécia Antiga. Neles há indícios de uma nítida separação de classe, com a citação de homens livres, homens sem poder político, servos e escravos, estes divididos em domésticos e de outras categorias. Os textos empregam os termos “doero” e “doera”, para identificar homens e mulheres escravizados. Estas palavras derivariam do termo “dos-e-lo”, que tinha o sentido de “estrangeiros”, “inimigos” ou “servos”, de onde se conclui que os escravos eram originalmente prisioneiros de guerra. Outros textos evidenciam que, tanto o Estado como as pessoas de posse podiam ser proprietários de escravos, pelo que se deduz que a escravidão era de caráter patriarcal.
O período seguinte da civilização grega foi quando o centro da vida foi transferido da cidade (polis) para o campo (oikeus); voltado para um sistema de produção-consumo, onde todos trabalhavam, o patriarca, seus dependentes e seus escravos. O resultado foi catastrófico para o processo de elevação cultural, pois as cidades foram reduzidas em tamanho e importância, algumas se transformando em meras aldeias.
O novo modo de vida alterou o sistema de propriedade dos meios de produção, inclusive dos trabalhadores compulsórios. A terra, antes pertencente aos deuses, teve sua posse assumida por pessoas. A sociedade retrocedeu a um estágio de economia espontânea, com a exploração do trabalho escravo voltada para uma renda natural, com uma economia monetária apenas complementar. A produção voltou-se para o consumo familiar e para gerar apenas pequenos excedentes. Contraditoriamente, nestas circunstâncias o trabalho escravo assumiu uma importância maior para a produção de bens.
Por volta de 750 a.C., ocorreu uma outra transformação na sociedade grega. O crescimento da população extravasou da propriedade rural e das aldeias. Os gregos migraram para o litoral do mar Negro e para a Sicília, onde criaram colônias. Com a importação de alimentos das colônias, as cidades puderam prescindir da produção local, o que resultou na quase desarticulação da propriedade familiar rural e no revigoramento das cidades-estados. A “polis” voltou a ser o centro da vida na Grécia e a urbanização ensejou um novo despontar cultural. A sociedade continuou dividida em classes, com uma grande parcela de escravos em sua base social, e a escravidão, solidificada como sistema, passou a contar com regulamentos e leis a ela voltados.
Embora fossem poucos os proprietários com grande número de escravos, raras eram as atividades em que os escravos não participavam como força produtora direta, tanto na elaboração de bens como na prestação de serviços. Os escravos eram tecelões, agricultores, pastores de animais, artesãos, domésticos, mineradores e funcionários públicos, exercendo as funções de varredores de rua, construtores de estradas, escrivães, carrascos e até de policiais. Muitas vezes compartilhavam essas funções com trabalhadores livres. Era comum a acumulação de tarefas, podendo um mesmo escravo ser servo doméstico e executar atividades laborais na agricultura, por exemplo. Além de trabalhar para os seus senhores, os cativos poderiam ser alugados a terceiros, ao Estado ou a particulares.
O período seguinte, que compreende os séculos V e VI a.C., é conhecido como a era clássica grega e foi o ápice da sua cultura nas artes, literatura, filosofia e política. Atenas foi o palco democrático grego por excelência, porém dos seus aproximadamente 500 mil habitantes, 300 mil (60%) não tinham direitos civis, por serem escravos; 50 mil (10%), por serem estrangeiros; 40 mil (20%), por serem mulheres e crianças.

Tribuna do Norte. Natal, 17 jan. 2020.

13/01/2020


O novo provincialismo
O nosso Câmara Cascudo (1898-1986) sempre aceitou de bom grado o “título” que lhe foi dado, carinhosamente, pelo amigo Afrânio Peixoto (1876-1947) – “O provinciano incurável”.
Gabava-se dele. E até escreveu uma crônica com esse título, publicada lá pelo final da década 1960: “Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção medular da contemporaneidade. Nossa casa no Tirol hospedou a Família Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade com a velha Silvana, Cebola quente, alforriada na Abolição. Filho único de chefe político, ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral. Impossível para mim dividir conterrâneos em cores, gestos de dedos, quando a terra é uma unidade com sua gente. Foram os motivos de minha vida expostos em todos os livros. Em outubro de 1968 terei meio século nessa obstinação sentimental. Devoção aos mesmos santos tradicionais. Nunca pensei em deixar minha terra. (…). Fiquei com essa missão. Andei e li o possível no espaço e no tempo. Lembro conversas com os velhos que sabiam iluminar a saudade. Não há um recanto sem evocar-me um episódio, um acontecimento, o perfume duma velhice. Tudo tem uma história digna de ressurreição e de simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na memória”.
Esse provincialismo, o de Cascudo, o de quem apenas não quer deixar a sua terra por amor a ela, era de ouro. Primeiramente porque, como disse o grande Tolstói (1828-1910), “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Em segundo lugar, porque foi duramente forjado, nas palavras do próprio Cascudo, em “Livros. Cursos. Viagens. Sertão de pedra e Europa”. Cascudo estudou muito e conhecia a “arte da viagem”.
Hoje, entretanto, vivemos um outro tipo de provincialismo, terrível, que, por incrível que pareça, é fomentado pela própria globalização, em especial a globalização digital.
Um dos que apontam isso é o filósofo e professor alemão Peter Sloterdijk (1947-). Autor da trilogia “Esferas” – composta por “Bolhas” (2011), “Globos” (“2014) e “Espumas” (2016) –, Sloterdijk pretende aí contar a história da humanidade. Uma de suas teses é a de que o homem necessita viver em “espaços íntimos”, de proteção, que funcionariam como bolhas. Primeiro é o útero materno. Depois as cavernas dos nossos ancestrais, a família e até mesmo o país ou a nação. O problema é que a atual globalização – que, de resto, para Sloterdijk, é apenas uma terceira onda, já antecipada pela globalização da filosofia grega e da globalização náutica dos séculos XV e XVI – diferentemente do megacosmopolitismo da segunda onda (a náutica dos grandes ibéricos), tem criado, a partir de suas muitas bolhas, um “provincialismo global”.
Hoje, não precisamos mais viajar, em livros ou pessoalmente, para nos inteirarmos do mundo. Online, um “mundo” chega a nós. Mas é um mundo – ou vários mundos – forjado(s) a partir de bolhas. De províncias, se quisermos ser mais chiques. Que não se comunicam. Por gente cada vez menos aberta. Cada vez menos investigativa. Cada vez mais preconceituosa. Não temos mais o homem estudado, viajado ou cosmopolita como sinônimo de cultura. Estamos, sim, vendo o “idiota da aldeia” – aquele que ganhou voz com a Internet, como anotou Umberto Eco (1932-2016) – ganhar a ribalta e espalhar as vulgaridades, deveras “provincianas”, que aprendeu na sua bolha. E, desapercebidamente, nós aceitamos isso.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP


PROFESSORA ALICE DE LIMA E MELO

Valério Mesquita*

Alice de Lima como era mais conhecida, nasceu em Macaíba aos 11 de fevereiro de 1916. Foram seus pais o “mestre” Corcino, único arquiteto e engenheiro existente na cidade no inicio do século e a professora Joaquina Hermilinda, D. Quina, que ensinou várias gerações de macaibenses à rua Prudente de Morais, no centro da cidade.
Alice aprendeu com a mãe as primeiras letras, transferindo-se depois para o tradicional Grupo Auta de Souza. Professora por vocação, junto a mãe D. Quina, alfabetizou uma legião de alunos. Mais foi como funcionária pública municipal que ficou conhecida. Entrou na prefeitura pelas mãos do prefeito Luis Curcio Marinho, ocupando o cargo de secretária geral do município, que concentrava as demais unidades administrativas hoje existentes. Com o assentimento das Forças Armadas, era a pessoa que alistava os candidatos ao serviço militar.
Foi casada com João Muniz de Melo, com quem teve três filhos: Luciano, Itamar e Ângela, além de nove netos e dois bisnetos. Alice era religiosa e ajudava aos pobres da cidade nos afazeres da Matriz desde os tempos em que fora “Filha de Maria”, nas décadas de 30 e 40.
Faleceu aos 52 anos em Macaíba no dia 24 de maio de 1968, após longos dias de sofrimento. A prefeitura custeou-lhe o funeral, sendo sepultada no cemitério público. Como gratidão a sua bondade, e os exemplos que nos deixou foi inaugurado na gestão do então prefeito Geraldo Pinheiro, o “Clube de Mães Alice de Lima e Melo”. O pesquisador macaibense e jovem estudante Anderson Tavares cobrou-me esse artigo sobre a notável conterrânea e me forneceu suas informações biográficas.
Relembrá-la é um ato de justiça e de reconhecimento aos seus méritos de mãe, educadora e servidora pública modelar. Fui seu aluno antes de ingressar no Colégio Marista. Estudava particular em sua residência ao lado de outros colegas. A casa ficava situada no largo marítimo João Lau, perto do antigo cais do rio Jundiaí, local onde hoje está edificada a Escola Câmara Cascudo. Alice caracterizava-se pela modéstia e pela seriedade com que enfrentava os seus desafios. Conheci, também, D. Quina. Quando eu passava em frente a sua escola gostava de ouvir as crianças em côro uníssono soletrar cantando: “Um B com A beabá, um B com E beébe,  um B com I beibi, um B com O beobó, um B com U beubu.” Posso afirmar que, com professora Alice me preparei para enfrentar o pesado ensino dos Irmãos Maristas, assim considerado na época. Apenas, deploro não haver estudado no Auta de Souza. No meu ensino primário tive como professoras Enedina Bezerra, Naide Tinôco e Alice de Lima e Melo. Posteriormente, Sônia Lucena me introduziu no idioma Francês.
Havia outro traço fundamental na personalidade e no comportamento da funcionária municipal Alice Melo. Era a confiança que inspirava aos seus chefes, todos prefeitos de Macaíba dos anos cinquenta aos sessenta. Luis Curcio Marinho, José Maciel, Aldo Tinoco, Alfredo Mesquita Filho, Mônica Dantas e Manoel Firmino de Medeiros, mantiveram-na no posto de secretária pela competência e lealdade com que desempenhava o posto. Alice era a secretária do município e não do prefeito circunstancial. Posso dizer que era uma funcionária pública padrão, cônscia de suas obrigações e responsabilidades. Ao recordá-la aqui, cumpro um dever de consciência, de respeito e de tributo a sua trajetória para que Macaíba nunca se esqueça de que ela existiu e nos legou admiráveis lições de vida.
(*) Escritor.

09/01/2020



A saga política de Portugal
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Herdeiros de Deus: a aventura da navegação e os negócios da colonização” – Do IHGRN

Uma das características do feudalismo era a sua estrutura econômica, política e social reduzida a dimensões mínimas. A força do rei era compartilhada e minada pelos senhores feudais, que tinham exércitos e aparato governamental próprios.
Nesse cenário, Portugal se diferenciava. Foram as tropas do rei que retomaram as terras ocupadas pelos mouros, desde o século VIII. As cidades do Porto, Braga, Coimbra e Lisboa foram libertadas no século XII. No final do século XIII foi tomado o último baluarte mouro, o Algarve, ao sul do país. Portugal foi um dos primeiros países da Europa a ter suas fronteiras políticas demarcadas e, mais do que isso, estabilizadas.
Outro fator veio juntar-se a esse processo. As lutas, constantemente travadas pelos reis cristãos contra os árabes, provocaram uma centralização de forças bélicas em torno da pessoa do monarca. O rei, dirigindo pessoalmente a guerra, investia-se de um poder incontestável, nitidamente militar. À medida que conquistava novos territórios aos mouros, cuidava de reordená-los, de forma a consolidar seu poder, reduzindo a força dos nobres e do clero. Foi o início do absolutismo.
Outro fator importante para a união nacional foi a imposição do princípio da primogenitura (o príncipe mais velho era o herdeiro do trono) sobre o uso anterior de partilhar o reino entre os filhos do monarca, quando de sua morte; costume que centrifugava a nação. O rei, centralizador do poder nacional e representante único do Estado, um Estado Nacional indivisível, e a burguesia, com interesses que extravasavam aos limites nacionais, formaram uma junção ímpar. Essa união de fatores heterodoxos proporcionou a expansão do capital mercantil e criou oportunidades que, mais tarde, culminaram nos descobrimentos e colonização das novas terras. Esse processo foi deflagrado de forma mais notória pela revolução de 1383-1385, que alguns veem como a primeira revolução burguesa registrada pela história.
Antes, Dom Pedro I havia quebrado o poder senhorial ao determinar que a Coroa (o rei) era o último tribunal de apelação. Dom Fernando, seu sucessor, insurgiu-se contra o direito de propriedade rural dos nobres ao editar a Lei das Sesmarias. Posteriormente, a sisa (imposto que incidia sobre todas as transações de compra, venda e troca de propriedade) quebrou a imunidade tributária da nobreza, ao mesmo tempo em que foram mantidos e criados privilégios para os comerciantes e armadores.
Ao mesmo tempo em que se consolidava o absolutismo real, houve em Portugal, de modo quase que ininterrupto, órgãos representativos das camadas mais fortes da população junto ao poder central. Essa representação dava-se em dois níveis: um, local, visando fazer-se presente no governo das cidades e aldeias, os Conselhos; outro, mais geral, objetivando fazer-se mais perto do rei, as Cortes.
Os Conselhos eram o poder local das vilas e povoados que gozavam de certa liberdade e autonomia. Seus integrantes eram escolhidos entre os moradores desses lugares e por eles mesmos. Os Conselhos, além de cuidar da administração municipal, tinham ainda por função escolher os procuradores que os representassem nas Cortes. Com o surgimento da burguesia nas cidades, os Conselhos ganharam mais importância e representatividade.
registros das Cortes Portuguesas desde 1211 (a tradição retroage seu funcionamento para 1143). Inicialmente, essa instituição era integrada pela nobreza e pelo clero. em 1254 passou a contar com a participação de pessoas do povo, os procuradores dos Conselhos, “os homens bons.
Não obstante esse poder representativo tenha precedido em onze anos ao Parlamento Inglês (a primeira reunião da Câmara dos Comuns deu-se em 1265), as Cortes não inibiram os monarcas portugueses em seu absolutismo. Pelo contrário, Cortes e Conselhos eram peças usadas para enfraquecer o poder dos nobres.

Tribuna do Norte. Natal, 09 jan. 2020.




RELEMBRANDO ISAURO ROSADO

Valério Mesquita*


Quando um amigo que se foi está esquecido ou quase banido da lembrança, é justo resgatá-lo, revivê-lo e restituir-lhe o nome, o perfil ou um pouco de sua vida.
Isauro Rosado Maia conviveu conosco em Macaíba durante anos como médico da Fundação SESP e diretor da então Maternidade Alfredo Mesquita Filho. Nesse tempo ainda sonhávamos com o Hospital Regional que veio anos depois. Isauro era o tipo de profissional acessível e disponível quando procurado. A sua identidade maior com Macaíba somente ocorreu quando deixou a Secretaria de Saúde do governo do monsenhor Walfredo Gurgel. Oriundo de Catolé do Rocha, o seu biotipo se assemelhava mais aos Rosados de Mossoró do que aos Maia da Paraíba. Prestativo e humorado nunca me revelou ambições políticas no Rio Grande do Norte. Manifestava-se sempre cordato e moderado nas questões políticas mas sempre fiel aos caminhos do seu grande amigo Walfredo Gurgel.
Dois fatos me ocorrem no momento, entre todos outros idos e vividos na nossa relação de amizade. O primeiro foi numa eleição em que o seu amigo Mota Neto candidatou-se ao Senado. Fui assistir um comício a seu convite. No palanque, logo de plano, divisei a figura esbelta de Motinha, alto, gordo e de largos quadris. Dir-se-ia: uma postura senatorial. Em baixo, há poucos metros, no meio do povo, Isauro resolveu “mexer” com Mota Neto. Escondeu-se entre os circunstante e gritou: “Motinha, Motinha!!”. O ex-deputado de Mossoró sempre solicito, percorria o olhar entre a galera para fazer um aceno ou devolver a gentileza do chamado e não achava o possível eleitor. “Morinha, Motinha”, bradava Isauro às gargalhadas ante a preocupação do seu amigo em descobrir de onde provinham os gritos. “Agora é você, Valério”, sugeriu Isauro. “Não tenho intimidade com ele”, retruquei. Mas, terminei satisfazendo o seu pedido. “Motinha, Motinha!!”. Ao cabo de cinco minutos, encabulado, Motinha foi se refugiar na traseira do palanque e desta vez, escondendo-se entre os políticos para não mais ser visto pelo eleitor chato e inconveniente.
Mas, a grata recordação de Isauro me remete a circunstancia especialíssima de quando nos tornamos compadres. O meu quarto filho, após sofrer, misteriosamente, a perda prematura de dois, nasceu com problemas cardíacos que somente se revelaram aos dois meses e vinte dias de nascido. Isauro manifestou solidário não somente como médico e amigo, mas como irmão, levando a criança a Recife e a São Paulo na busca de um tratamento. Antes da viagem, batizamos o menino e ele foi o padrinho. A cirurgia no Hospital do Coração foi difícil e complicada devido a tenra idade do paciente. No Cemitério da Consolação o meu filho ficou sepultado. Mas, com Isauro, ficaram, na noite do seu desembarque no Aeroporto, as lágrimas da minha gratidão. Dele guardo sempre a lembrança afetiva que o tempo não haverá de desfazer.
(*) Escritor.

08/01/2020


Marcelo Alves
Ditadura digital
Eu não sei se vocês assistiram à entrevista de Yuval Noah Harari (1976-), o autor de “Sapiens: uma breve história da humanidade” (2015) e de “Homo Deus: uma breve história do amanhã” (2016), no Roda Viva, da TV Cultura. Foi reprisada dia desses. Eu adorei. Imperdível.
A ideia de escrever esta crônica veio de uma resposta dada pelo historiador e escritor israelense à questão do impacto que a chamada “inteligência artificial” terá em nosso futuro. Ele descartou a possibilidade de robôs inteligentes tomando conta das coisas e do mundo, à moda de “2001: uma odisseia no espaço” (filme de 1968) ou ferindo as “Leis da Robótica” do grande Isaac Asimov (1920-1991). Não há evidência científica de que isso se dará. Harari está mais preocupado com o impacto da inteligência artificial nos postos de trabalho futuramente disponíveis e, sobretudo, no controle que as ferramentas da inteligência artificial, nas mãos de grupos ou governos mal intencionados, podem exercer no pensamento e na vida das pessoas.
Quem também explora essa última questão – falo do perigo de cairmos numa “ditadura digital” – é o filósofo francês (nascido na Tunísia) Pierre Lévy (1956-), que é autor, entre outros títulos, de “As tecnologias da inteligência” (1990), “O que é virtual?” (1995) e “Cibercultura” (1997). Aliás, outro dia, flanando pelas ruas de Natal, topei com um exemplar de “Cibercultura” na Manimbu, a nova livraria da querida Fundação José Augusto. De 1997, embora já ultrapassado em muitos aspectos – esse ramo do conhecimento sofre uma revolução a cada dia –, ele é um livro seminal. E sua ideia principal está vivíssima, já que estamos, mais do que nunca, imersos numa “Cibercultura”. De Lévy (em coautoria), mais atual é “O futuro da internet: em direção a uma ciberdemocracia planetária” (2010). E é deste último livro que extraio um par de argumentos em prol do que quero defender aqui.
Lévy, claro, enxerga o que a Internet e as ferramentas digitais têm para oferecer positivamente à democracia. Entre outras coisas, a Internet promove a liberdade de expressão. Hoje, em sites e nas redes sociais, gratuitamente e dispensando a chancela de um editor, posta-se o que quer. Na Web, pode-se ler e assistir a tudo, de culturas distintas e de países distantes. Bastando, claro, que se conheça o idioma da postagem – afinal, parodiando Ludwig Wittgenstein (1889-1951), “os limites do meu mundo [ainda] são os limites da minha linguagem”. A quantidade de informações e ideias hoje disponíveis é imensurável. E isso é muito bom.
Todavia, há algo latente e perigoso à democracia na Internet e na inteligência artificial, já intuído por Lévy e por Harari, que devo destacar aqui. O controle imperceptível que os chamados algoritmos – e as bolhas de informação criadas por eles – podem ter sobre o que pensamos e dizemos. Esses algoritmos, até por inocentes curtidas nas redes sociais, acabam sabendo tudo sobre quem somos. E acabam nos dando sempre mais do mesmo, insuflando os nossos – às vezes, terríveis – preconceitos. Isso é desastroso para a pluralidade de ideias.
Eu posso até dar um singelo exemplo pessoal. Adoro animais. E curto muita coisa no Facebook sobre o tema. O site, com os tais algoritmos, já descobriu isso, e eu estou agora numa bolha. Na minha timeline, só aparecem coisas de gatos e cachorros. “Rex para Presidente”.
Não serei politicamente devorado por cães de raça alguma, é claro. Mas imaginem esse tipo de inteligência artificial – ou outra ainda mais sofisticada que virá a seguir – sendo usada intencionalmente por grupos ou governos totalitários. Eu não quero viver nesse “admirável mundo novo”. Rogo: temos de ser mais conscientes e abertos. E resistir.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

05/01/2020


A incrível cidade de Prata
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Escravos: da escravidão antiga à escravidão moderna” – Do IHGRN

Há que se falar sobre a mais incomum cidade da América colonial. Fundada em 1541, como núcleo residencial, Potosí (então pertencente ao Vice-Reinado do Peru e atualmente à Bolívia), teve vertiginoso desenvolvimento quatro anos depois, devido à descoberta de veios de prata, localizados na rota de uma antiga trilha inca. Em 1553, foi elevada à categoria de vila, a Vila Real de Potosí. O crescimento do volume e do valor da prata extraída de suas terras proporcionou um rápido e florescente desenvolvimento, que transformou o antigo povoado na maior cidade da América de então, com “dezenas de igrejas e conventos, alguns palácios, sete ou oito mil casas de jogos [...] como luxo supremo, 120 prostitutas brancas [...]. Havia sedas de todos os tipos e tecidos de Granada, meias de sedas e espadas de Toledo, tecidos de todas as partes da Espanha; ferro de Biscaia; [...] tecidos bordados em seda, ouro e prata e chapéus de feltro da França; tapetes, espelhos, móveis lavrados, bordados e cintos de Flandres; [...] armas e ferramentas de ferro da Alemanha; papel de Gênova; [...] pinturas religiosas de Roma” (MELLAFE, 1987). Tudo isto estava em uma paisagem estéril, um planalto desértico, a 3.976 metros de altitude, nas entranhas do Vice-Reinado do Peru. Somente a riqueza da prata explica o afloramento desse lugar. O Rio da Prata recebeu esse nome, por que era por ele que se escoava o metal de Potosí.
As minas de Potosí foram exploradas com emprego maciço da mão-de-obra dos índios-varas, indígenas que se “ofereciam” para cavar determinadas número de “varas” (antiga unidade de medida equivalente a cinco palmos, ou 1,10m) de um veio de metal e vender o produto aos contratantes das minas) e a técnica de “guairas” (fornos onde eram tratados os minérios). Todo o sistema era irracional e provocava desperdício. Em 1563, houve a descoberta das minas de mercúrio de Huancavélica, minério este que facilita a purificação da prata não tratada. Em 1570, Potosí produziu prata no valor de 177 mil pesos. Esse também foi o ano em que houve a mudança do sistema de mão-de-obra utilizada em Potosí, passando-se a usar os índios “mitayos”. A mita era empregada pelos incas contra os povos por eles subjugados e foi aperfeiçoada” pelos espanhóis. Esse sistema de trabalho forçado possuía um caráter oficial e se caracterizava pela concentração de indígenas em determinados locais, sob supervisão, comando e administração dos funcionários da realeza.
Havia, também, escravos negros. As rotas que traziam africanos para o Vice-Reinado seguiam, em linhas gerais, o mesmo traçado das rotas comerciais. A principal delas trazia os escravos via Cartagena, Puerto Bello, Panamá, Callao e Lima. Os desembarques eram primeiramente feitos em Cartagena ou Puerto Bello (às vezes poderia haver transbordos em qualquer das duas direções), de onde os escravos – vindos da África ou das Antilhas – eram levados para a cidade do Panamá, atravessando o istmo, a pé. Na costa do Pacífico os negros eram novamente embarcados para o porto de Callao. A taxa de mortandade era alta, maior do que a que sofriam os escravos africanos, na travessia do Atlântico, quando trazidos para a América. Em Callao a rota se bifurcava em duas direções. Alguns escravos eram remetidos para as regiões de cultura agrícola; outros iam para Quito, no norte, ou para as minas de Huancavélica ou de Potosí. Uma rota alternativa, estabelecida um pouco mais tarde, realizava entradas por Buenos Aires, Tucumã ou Charcas, trazendo escravos da África ou do Brasil. Esse era o caminho preferencial para o tráfico de contrabando.
O século XVIII trouxe para o Vice-reinado do Peru um período de queda na extração e exportação de minério de prata. Potosí diminuiu sua produção de 70 para 40 toneladas/ano. As minas de mercúrio de Huancavélica estavam praticamente esgotadas – e o mercúrio era essencial para o processo de amálgama da prata – além de muito mal administradas. Era necessário que novamente se fizesse importação de mercúrio de Almadém, na Espanha, e agora também da Ístria, na Itália, e até da China. A outrora gloriosa, imponente e frívola Cidade Imperial de Potosí – que chegara a ter 160 mil habitantes –, a ex-maior cidade da América do Sul, em 1719 já contava com apenas 50 mil pessoas, logo depois, somente 30 mil, dos quais poucos negros.

Tribuna do Norte. Natal 05 jan. 2020.

02/01/2020


O JUNDIAÍ DE CHICO CABRAL

Valério Mesquita*

O médico e pesquisador Olímpio Maciel passou-me às mãos um documento precioso da década de 1920. Recebeu-o em 1988 de Apolônio Lima, já falecido.
Apolônio trabalhou com o meu avô e o meu pai numa loja de tecidos e perfumaria que existiu à Rua João Pessoa, hoje Nair de Andrade Mesquita, no centro de Macaíba. Autodidata, probo, solidário e amigo, Apolônio amou Macaíba como poucos. Dele guardo um depoimento inesquecível, intitulado “Macaíba que Conheci”, o qual encartei no livro “Macaíba de Seu Mesquita”. Considerava-o como tio, face à fraternidade e à amizade com que a família distinguia a sua lealdade e consideração. Gostava de retratar os fatos pitorescos e políticos do Município e os relatava sempre que podia. Sobre o Jundiaí F.C., por exemplo, cujo presidente era Francisco Cabral, ex-prefeito de São Paulo do Potengi e de São Pedro, criado por ele.
Chico Cabral viveu muitos anos em Macaíba, trabalhando com Manoel Mauricio Freire (Neco Freire), chefe político local da situação. O Jundiaí F.C. excursiona aos municípios vizinhos como Monte Alegre, São José do Mipibu, Caiada, Serra Caiada, Panelas, São Gonçalo, Igreja Nova e Campestre. Era o timão de Macaíba. Mas Chico Cabral não deixava escapar nunca a sua verve, o seu humor, em qualquer momento. Mandou o secretário do clube, Apolônio Lima, lavrar uma portaria consignando, pro tempore, pseudônimos de todos os jogadores integrantes do plantel. E começando por ele mesmo, intitulou-se Manda Chuva; Manoel Pereira – Saia Veia; Apolônio Lima – Cabeçudo; Paulo Mesquita – Vantajoso; Otacílio Alecrim – Galo Assado;  Paulo Marinho – Boca de Cu de Galinha; José Rosendo – Jaca Mole; Artur Pessoa - Mestre Artur; Olimpio Pessoa – Chulé; Anízio Batista – Beete; Delfino Batista – Vela Branca; Ambrosio Soares – Gafanhoto de Jurema; José Adolfo Dias – Fudias; Getúlio Silva – Alicate; Joaquim Marinho – Xexeiro; Ranilson Almeida – Trouxa Suja; Osacar Teixeira – Cavalo Selvagem; Antônio Lucas – Mijão; Quinho Chaves – Mel de Furo; Manoel Alves – Bufante; João Chianca – Suvaqueira; Silvio Medeiros – Trovoada; José Felix Mesquita – Bobeira e Virgilio Pinheiro – Lalaia.
Todas essas pessoas jogavam futebol e faziam parte de elite social, cultural e comercial de Macaíba, lá pela década de 1920. Foi um período áureo da vida de Macaíba que os anos não trazem mais. Apolônio resgatou uma fase esportiva, jocosa e histórica de oitenta anos passados, a qual, graças a Olímpio Maciel Neto, pesquisador e memorialista, o tempo não destruirá esse e outros documentos guardados nos arquivos do Instituto Pró-Memória de Macaíba, uma das melhores coisas que aconteceu na cidade, graças ao esforço pioneiro dele, de Franklin Garcia, Arthur Mesquita Neto, entre outros abnegados.
(*) Escritor.





O pioneirismo econômico de Portugal
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Herdeiros de Deus: a aventura da navegação e os negócios da colonização” – Do IHGRN

Nos séculos XV e XVI, o feudalismo permanecia como modo de produção predominante na Europa, embora, no último desses séculos, tenha-se iniciado a crise que o desintegrou e resultou no surgimento do capitalismo. Nesse período, formas capitalistas de produção já coexistiam com o feudalismo, porém, sob a sua hegemonia.
A economia portuguesa viveu essa simbiose “feudal pré-capitalista” com algumas atividades amarrando-se às formas tradicionais e outras deslanchando em busca de maior espaço para o seu desenvolvimento. O comércio foi o segmento econômico que mais dinâmica apresentou e o que mais influiu na determinação histórica da nação lusitana; foi a principal forma de acumulação do capital. “O comércio externo de Portugal é mais antigo do que o de qualquer outro país da Europa, à exceção da Itália” (Adam Smith,1981/3). Nos séculos XIII e XIV, o comércio atlântico já era ativo nos portos portugueses. As exportações atingiam o norte da África, a França e a Inglaterra. A primeira feira estrangeira em Burges (Bruxelas) foi organizada por comerciantes portugueses.
No final do século XV, pelos portos portugueses eram exportados produtos locais, e reexportados produtos vindos de longa distância: trigo de Marrocos, das Ilhas Atlânticas e da Europa Setentrional; produtos têxteis da Inglaterra, Irlanda, França e Flandres; latão e contas de vidro da Alemanha, Flandres e Itália; ostras das Ilhas Canárias; especiarias, ouro e escravos africanos. Com os descobrimentos, Portugal era a única nação europeia que mantinha comércio regular com as Índias Orientais, além de manterem estabelecimentos no Congo, Angola e Benguela, na costa da África, e em Goa. Paralelamente, mantinha uma importante colônia em Antuérpia, onde cerca de sessenta famílias representavam os interesses lusitanos. O desenvolvimento do comércio se refletiu também no seguro e na navegação. Em 1383, Dom Fernando I, rei de Portugal, criou o seguro marítimo.
A navegação é um capítulo à parte. Entre o meio e o fim do século XVI, a frota comercial portuguesa representava uma capacidade de carga em torno de 50 a 100 mil toneladas métricas. O porto de Lisboa registrava cerca de quatrocentas ou quinhentas embarcações fundeadas – o que seria um exagero do cronista da época. No século seguinte, os navegadores portugueses descobriram a Ilha da Madeira, as Canárias, os Açores, as Ilhas de Cabo Verde, a Costa da Guiné, a de Loango, o Congo, Angola e Henguela (Namíbia). Contornaram o Cabo da Boa Esperança e atingiram à Costa do Indostão (subcontinente indiano). Certo é que essa empresa contou com ativa participação do governo. No entanto, essa foi uma empreitada muito mais da burguesia do que da nobreza. A própria intenção dos descobrimentos era comercial.
No campo, a “Lei das Sesmarias”, publicada em 1375, quebrou o poder da nobreza rural, ao impor a reordenação das terras improdutivas dos senhores feudais, sem que esses recebessem nenhuma paga por elas. Diversos produtos agrícolas eram cultivados em Portugal, com destaque para a parreira e a oliveira. A indústria extrativa de sal marinho remonta a épocas anteriores à própria constituição do Estado português, datando dos séculos X e XI.
Por sua vez, a produção têxtil sempre foi rudimentar, familiar e rural. A cultura do linho, do cânhamo e do bicho-da-seda, bem como a pecuária de ovinos, de onde se extraia a lã, tiveram importância relativa e somente orbitavam em torno da economia feudal, raramente constituindo uma presença de modo mais avançado de produção, por pouco que fosse. Quantitativa ou qualificativamente essas atividades não representavam qualquer avanço na economia do Portugal medievo.
A análise da economia lusitana nos séculos XV e XVI, principalmente das atividades ligadas ao comércio e à navegação – setores em que os portugueses estiveram à frente da economia europeia, comprovados na expansão e descobrimentos marítimos – evidencia um sistema com um significativo poder de acumulação pré-capitalista.

Tribuna do Norte. Natal, 01 jan. 2020.