Um roteiro
O estudo da teoria dos precedentes (ou da doutrina do “stare
decisis”) é uma moda hoje no Brasil. E, quando em conjunto com o novo
Código de Processo Civil, talvez seja ele o assunto essencialmente
jurídico – coisas como a “Lava Jato” estão em outro patamar – mais
badalado entre nós.
Levando em consideração esse interesse atual, vou sugerir para
vocês, repetindo o que já fiz em sala de aula, um detalhado roteiro de
estudo sobre o tema dos precedentes judiciais.
A meu ver, qualquer estudo da teoria dos precedentes deve começar
analisando, mesmo que superficialmente, a visão das várias correntes
jusfilosóficas – falo aqui da escola do direito natural, do positivismo
jurídico, da escola histórica, da escola sociológica americana, do
realismo jurídico americano etc. – quanto ao papel do precedente
judicial na formulação do direito.
Em seguida, como se trata do campo onde o tema precedente judicial
foi mais desenvolvido, deve-se estudar, ao menos superficialmente, o
“common law” inglês, sua formação histórica e o seu estado atual. Nesse
mesmo contexto, deve-se conhecer um pouco do sistema judicial da
Inglaterra, com a análise da sua organização judiciária e do
funcionamento da teoria do precedente dentro dessa organização, devendo o
mesmo ser feito com o sistema judicial norte-americano. Sem o estudo
desses dois sistemas, é impossível entender completamente o
funcionamento da regra do “stare decisis”. Se possível, deve-se também
conhecer como funcionam os repertórios de precedentes judiciais ingleses
e americanos, os chamados “law reports”, já que, sem eles,
reconhecidamente, seria impossível o funcionamento dos sistemas fundados
na doutrina do “stare decisis”.
Superada essa primeira fase de estudo de direito comparado, o
precedente judicial propriamente dito deve ser o foco seguinte do nosso
roteiro. Refiro-me aqui à sua definição e às teorias que buscam explicar
sua natureza jurídica, com a devida análise crítica, assim como à
chamada classificação dos precedentes judiciais (declarativos ou
constitutivos, persuasivos ou obrigatórios), levando em consideração
todos os critérios adotados.
A aplicação propriamente dita do precedente judicial deve ser
analisada com a profundidade que merece. O conhecimento de institutos
como o da “ratio decidendi” e os métodos ou teorias para sua
determinação, do “obiter dictum”, o “distinguishing”, as decisões “per
incuriam”, o “overruling”, entre outros, deve ser, talvez, o ponto mais
importante do estudo.
Uma questão de imensa relevância – e que, hoje, tem preocupado
bastante tanto os juristas do “common law” como os brasileiros – diz
respeito à eficácia temporal da decisão que anuncia um novo precedente,
revogando (ou ao menos modificando) a regra de um precedente anterior de
orientação diversa. Os efeitos desse novo precedente, se seriam
retroativos ou prospectivos e em que termos, por exemplo, devem ser
analisados tão exaustivamente quanto possível.
A história e a realidade atual da aplicação obrigatória de
precedentes judiciais no Brasil, fazendo sempre um paralelo com outros
países, devem ser pormenorizadamente estudadas. Devem ser relembrados
institutos como os antigos assentos portugueses, o prejulgado
trabalhista, a sentença normativa na Justiça do Trabalho, o prejulgado
na Justiça Eleitoral, os antigos incidentes de uniformização de
jurisprudência, a declaração de inconstitucionalidade “incidenter
tantum” em tribunais etc. Devem ser bem analisados o efeito vinculante
das decisões proferidas no controle jurisdicional concentrado de
constitucionalidade de leis e atos normativos, assim como o instituto da
súmula, especialmente, a chamada Súmula Vinculante, adotada em nosso
país por intermédio de reforma constitucional e regulamentada pela Lei
11.417/2006.
Deve-se, sobretudo, estudar o papel dos precedentes judicais no
novo Código de Processo Civil. E, pelo que pesquisei, o NCPC refere-se
aos precedentes judiciais (em sentido estrito ou em sentido amplo) em
diversas passagens, possuindo ainda vários outros dispositivos que,
embora sem referência expressa, estão, uns mais outros menos,
relacionados à temática. Seguindo a ordem do Código, pode-se relacionar,
por exemplo, os seguintes dispositivos: (i) art. 489, § 1º, V e VI;
art. 926, caput e parágrafos; (ii) art. 927, caput, incisos e
parágrafos; (iii) art. 928, incisos e parágrafo único; (iv) art. 932, IV
e V; (v) art. 947 (que trata do incidente de assunção de competência);
(vi) arts. 976 a 987 (que tratam do badalado incidente de resolução de
demandas repetitivas); (vii) arts. 988 a 993 (que tratam da reclamação);
(viii) arts. 1.039 a 1041 (que tratam do julgamento dos recursos
extraordinário e especial repetitivos); e por aí vai.
Por fim, como conclusão, deve-se refletir criticamente, com amparo
na doutrina anglo-americana, sobre a teoria do precedente judicial
obrigatório. As desvantagens e as vantagens apontadas na teoria do
“stare decisis” devem ser pormenorizadamente discutidas. De um lado, a
rigidez, a complexidade, as distinções ilógicas, a morosidade no
aperfeiçoamento, a ofensa ao princípio da persuasão racional do juiz e a
ofensa ao princípio da separação de poderes; do outro, a estabilidade, a
previsibilidade ou certeza do direito, a precisão, a celeridade, o
aprimoramento do trabalho decisório do juiz e a igualdade – fundamento
derradeiro de justiça. Tudo isso deve ser discutido e sopesado,
afastando-se a ignorância, o preconceito e as teorias sectárias,
lembrando-se que a interseção dos sistemas jurídicos, das famílias
jurídicas (“common law” e “civil law”), é uma realidade da qual é
impossível fugir. E talvez com isso, sempre consciente de que a doutrina
do “stare decisis” não é uniforme em toda parte, possuindo
peculiaridades em cada um dos países em que é adotada, possa-se
contribuir, mesmo que modestamente, com a importante tarefa de
estabelecer o papel do precedente judicial no sistema jurídico
brasileiro.
Bom, essa é a minha sugestão.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP |
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário