31/03/2020




ZÉ DISTINTO OU ZÉ FRADINHA

Valério Mesquita*

Dois nomes numa só e inconfundível pessoa. Em ambos a cara de Macaíba. Macaíba dos anos 30, 40, 50... No seu rosto uma saudade suspensa no ar de tempos idos e vividos. Ele era uma enciclopédia ambulante da ascensão e queda da fauna e fausto da cidade. Conviveu com ricos e pobres e de todos carrega estórias de fatos que marcaram épocas.
José Figueiredo da Silva ou Zé Fradinha, apelido dado tão logo chegou a Macaíba em 1924, na luta para sobreviver fez de tudo. Mas, foi como gerente de um bar que surgiu o Zé Distinto, pela cordialidade de trato abrangente e superlativa. Aí ele passou a se incorporar a geografia humana e sentimental da cidade. Era o Zé Distinto por trás do balcão de um amplo bar, no comando de fregueses heterogêneos, desde deputados, prefeitos, vereadores, funcionários, operários, motoristas, jogadores de baralho, vagabundos, a todos ele conhecia pelo nome, resumidos a sua humanidade comum.
A força telúrica desse homem simples, contagiava quem dele se aproximasse. Era o nosso embaixador onde quer que chegasse. Parecia ser a própria multimídia da terra de Auta de Souza e de Octacílio Alecrim. Sem instrução mas com carisma. O sentimento de macaibanidade assumia maior relevância do que a lei da honraria.
Zé Distinto tinha  uma memória invejável. Certa vez, me trouxe o seu "dossiê" histórico constituído de um grosso volume com fotos de personagens e aspectos urbanos de Macaíba dos anos 20 a 80. Relembrava fatos e guardava fotos de 1929, da visita de Washington Luiz a Macaíba e Getúlio Vargas em 1933, para inaugurar a antiga sede da prefeitura local. Sempre visitava Cascudo no Casarão da Junqueira Aires. O mestre lhe tinha uma ternura especial pois conhecera os pais e a família de D. Dália Freire Cascudo, todos de Macaíba. De sua coleção particular saíram fotos de prédios centenários da cidade que hoje emolduram as paredes do museu do Solar do Ferreiro Torto. Um homem assim, sem estudo, mas doutorado pela universidade da vida, com a sensibilidade cultural sem ser intelectual, não pode ser esquecido. Bem que a prefeitura de Macaíba e a câmara municipal poderiam fazer alguma em seu homenagem. Ainda é tempo para despertarem.
O exemplo dado por Zé Distinto, de humanidade, de valorização da vida, de amor a cidade, de preocupação com a preservação da história cultural do município não poderá ser em vão. Era católico, respeitoso, não se queixava a ninguém da pobreza que o afligia. Gostava de conversar como ele. Mergulhava no passado longínquo de Macaíba e conseguia à maneira de Marcel Proust restituir a memória táctil, olfativa de todo esse universo desaparecido.
Tendo nascido aqui, não há alumbramento maior do que caminhar pelas ruas desertas a conversar mentalmente com os fantasmas da cidade ou sonhar os sonhos dos casarões que ruíram. Zé Distinto me conduzia a tudo isso como batedor fiel, timoneiro, ator e protagonista do passado e do presente. Um personagem extraído do Cine Paradiso, tenho certeza. Inesquecível.
(*) Escritor.

30/03/2020


O quinteto mágico

Tomislav R. Femenick – Jornalista – Aviso: Não vou falar sobre coronavírus.

O responsável foi Catão. Nenhum daqueles de Roma antiga. Não foi Marcus Porcius Cato, também conhecido como Catão, o Censor; ou Catão, o Antigo, cuja vida serviu de exemplo para a regeneração dos costumes e que ficou famoso pela frase “Delenda est Carthago” (Cartago deve ser destruída), com a qual costumava concluir seus discursos. Também não foi Públio Catão, Públio Valério Cato, poeta, gramático e renovador da poética romana, ao abandonar o épico e o drama pelas histórias mitológicas curtas, elegias e obras líricas. Tampouco foi Marcus Porcio, bisneto de Catão, o Censor, e conhecido como Catão de Útica, tribuno militar e censor que defendeu o Senado e a República contra César.
            Não, não foi nenhum desses Catões, por mais importantes que tenham sido. Foi Catão, o funcionário do Banco do Brasil que era nosso vizinho lá em Maceió, capital das Alagoas. Foi ele o responsável pela minha aproximação com o jazz e com a música clássica – mais com o jazz –, lá pelos anos cinquenta do século passado. Ele morava em uma república de bancários, na praia da Avenida, e tinha uma eletrola moderna, com hi-fi (“high fidelity”, alta fidelidade) e preparada para tocar discos de três velocidades; 33 e 1/3, 45 e 78 rotações. Com todo esse equipamento, era natural que Catão, o bancário, ouvisse os seus discos em volume razoável. Somente uma rua estreita separava a janela do meu quarto daqueles acordes maravilhosos. E comecei a aprender a ouvir jazz. Logo, Charlie Parker, Dizzy Gillespie, Benny Goodman, Oscar Peterson, Billie Holiday, Artie Shaw, Duke Ellington, Count Basie, Glenn Miller, Jimmy e Tommy Dorsey e os divinos Louis Armstrong e Ella Fitzgerald passaram a povoar os meus sonhos musicais, fazendo companhia a Noel Rosa, Pixinguinha, Dorival Caymmi, Ataulfo Alves, Nelson Gonçalves, Severino Araújo, Linda e Dircinha Batista, Herivelto Martins, Luiz Gonzaga, Dalva de Oliveira, Araci de Almeida, Orlando Silva e outros artistas nacionais que se destacavam naqueles anos.
            Mas, afinal de contas, o que é o jazz? É uma forma musical de extrema riqueza e versatilidade, que teve origem nas canções dos escravos negros norte-americanos e sofreu influência europeia na sua instrumentação, melodia e harmonia. Esse modo derivou para o “ragtime” (uma música essencialmente sincopada) e para o “blue” (ainda sincopado, porém lento). O que o caracteriza como estilo musical são as variações melódicas que derivam de uma base harmônica, de um mote, para as improvisações dos intérpretes. Assim, assentadas em um ritmo regular, as interpretações são enriquecidas com ornamentos e improvisações. Hoje o jazz é uma forma universal de expressão artística, quer nas formas populares, especialmente vocal ou dançante, ou em sua modalidade mais sofisticada, quando é apresentando como concerto, o chamado jazz sinfônico.
Voltemos aos anos cinquenta. Estava no Rio de Janeiro, ainda capital federal, quando li, em uma edição espanhola da revista Life, uma matéria sobre o Blue Note, o templo nova-iorquino do jazz. Falava de um dos melhores Jazz Club do mundo, situados no coração do bairro de Greenwich Village, em New York. Era lá que todos aqueles músicos de jazz se encontravam e se apresentavam, era lá que todas as noites eram escritas novas páginas da história do jazz.
Na primeira vez que fui a New York, eu tinha o firme propósito de conhecer o Blue Note. Juntei meus parcos dólares e fiz a reserva e, à noite, fui um dos primeiros a chegar. Sentado sozinho, copo de whisky na mão, esperei o show começar sem nem ter visto a programação. Era um conjunto para mim desconhecido, mas foi uma interpretação maravilhosa. O pianista simplesmente dançava nos teclados; o baterista afagava os bombos, tambores, taróis e pratos do seu instrumento; o contrabaixista acariciava as cordas do contrabaixo; o cara do saxofone soprava sons hipnotizadores e um fulano tirava de um trompete melodias celestiais. Curioso, fui ver no programa, que estava em cima da mesa, o nome daqueles músicos. Era simplesmente Miles Davis e seu conjunto. O quinteto de Miles Davis que está entre os grupos mais notáveis da história do jazz, graças a um estilo muito peculiar de improvisos, doçura e lirismo.


29/03/2020




A Casa da memória norte-rio-grandense completa 118 anos de serviços prestados ao Rio Grande do Norte 

Bruno Balbino Aires da Costa
Sócio efetivo do IHGRN

      A “Casa da memória norte-rio-grandense” é a marca registrada do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Porém, o que o termo significa? Qual a sua relevância para a sociedade norte-rio-grandense nesses 118 anos de história?  
      Primeiramente, a imagem da Casa da Memória diz respeito ao seu comprometimento em preservar os milhares de documentos raros alusivos ao passado remoto e imediato do estado. Segundo, a mencionada alcunha justifica-se pelo seu interesse institucional em não deixar olvidar a memória histórica do estado. 
      Nesse sentido, a imagem da Casa da Memória tem um duplo sentido: o da memória arquivada e o da memória histórica.   O IHGRN organizou uma memória arquivada por meio do ato de coligir e metodizar documentos referentes ao Rio Grande do Norte. Vale lembrar que o Instituto Histórico surgiu de uma necessidade política e territorial: reunir uma documentação que pudesse subsidiar a defesa do estado em relação à questão de limites territoriais com o Ceará na virada do século XIX e começo do XX.       Nesse momento histórico, o Rio Grande do Norte não tinha uma instituição, como o Instituto do Ceará, que pudesse, concomitantemente, reunir uma documentação e a partir dela produzir e publicar um conjunto de textos acerca da questão de limites. 
      Foi da necessidade de fornecer documentos para a defesa jurídica na querela territorial com o Ceará que começou a veicular, entre os círculos letrados e políticos do estado, a ideia de criação de um instituto aos moldes do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil (IHGB). Tal interesse foi concretizado em 29 de março de 1902 com a fundação do IHGRN. 
      Durante muito tempo, o Instituto tornou-se uma espécie de arquivo do estado, copiando e reunindo um conjunto de fontes concernentes ao passado do Rio Grande do Norte. Mas não foi só isso. O Instituto histórico produziu uma memória histórica para o estado, elaborando a partir dela uma articulação com a memória nacional. 
      O IHGRN foi a instituição que formulou as bases da identidade histórica do estado. No jogo complexo de diatribes pela naturalidade dos personagens históricos, como Felipe Camarão, e pelo interesse em evidenciar o papel proeminente de Frei Miguelinho na Revolução de 1817, os sócios do IHGRN mobilizaram-se para construir o panteão de heróis norte-rio-grandenses. 
      No começo do século XX, fazia-se necessário evidenciar a singularidade do estado no conjunto geral da nação. Era preciso assinalar o lugar do Rio Grande do Norte na construção da memória nacional. Dessa tarefa encarregou-se também o IHGRN.       Em termos atuais, a agremiação continua priorizando a preservação da memória documental e reforça a memória histórica produzida pelos seus associados, desde os primeiros anos de sua existência. 
      O Instituto orgulha-se da herança memorial e preserva a imagem de que a agremiação é a Casa da Memória norte-rio-grandense.  
      É no âmbito da Casa onde há o refúgio tranquilo contra os perigos e as ameaças dos que estão fora. É nela também que se produz uma memória comprometida com os valores e os interesses dos que estão dentro dela, daqueles que orbitam no espaço privado do Instituto. É a Casa da Memória, porque efetivamente produziu-se e guardou-se, ao longo dos seus 118 anos, a memória norte-rio-grandense do perigo do esquecimento. 

12/03/2020


EDGAR BARBOSA, HUMANISTA DE TRATO CORDIAL

Valério Mesquita*

Ao lado de Alvamar Furtado, Múcio Ribeiro Dantas e Floriano Cavalcanti, Edgar Barbosa formava um quarteto de invejável saber jurídico na velha Faculdade de Direito da Ribeira, na década de 1960, comentado e sussurrado com reverência por nós, seus alunos, pelos corredores e salas da saudosa instituição.
 Mas o professor não cabia num figurino único – embora confortável, do ponto de vista intelectual –, de grande e admirável jurista. Sua formação filosófica fizera dele um humanista no sentido lato, ou seja, na medida em que nada do que fosse humano lhe era indiferente. Compará-lo ao seu mestre Luís da Câmara Cascudo seria fazer justiça ao primeiro, e elevar a estatura intelectual do segundo.
Por trás desse duplo verniz jurídico e humanista, Edgar Barbosa encobria um homem cordial que só a pouco e a vagar deixava transparecer no convívio com seus alunos. Já alertados por colegas mais antigos, nós também não demoramos a descobrir outros traços salientes da personalidade complexa de nosso mestre em Direito Constitucional. Isso acontecia até com certa regularidade, na medida em que fui também me habituando a integrar uma espécie de círculo de ouvintes do velho professor para as conversas que se sucediam à aula, mas que acontecia ali mesmo, juntamente com Carlos Gomes, Claudio Emerenciano, Nildo Fagundes e outros colegas.
Visava transmitir sabedoria, conhecimento, humanismo. Com essa preocupação sempre alerta, o grande estilista fazia incursões pela Antiguidade Clássica à cata de exemplos, de modelos, de parâmetros comparativos com os problemas de nosso tempo, ilustrando-os e esclarecendo-os, como costumava fazer nos seus ensaios e artigos jornalísticos.
No jornal A República, na década de 1920, como revela o volume de textos e crônicas, organizado pelo jornalista Nelson Patriota e lançado este ano pela editora da UFRN. Ali se podem detectar alguns temas que serão amadurecidos pelo futuro jurista, como o direito do voto feminino, os problemas enfrentados pelo ensino público, a importância da liberdade de expressão para a vida política brasileira, entre outros.
A esses temas, acrescentou o mestre considerações líricas, evocações nostálgicas, quadros recortados cuidadosamente de sua memória afetiva sobre a sua telúrica Ceará-Mirim natal, com seus vales férteis como se fora recortada por um Nilo transplantado para lá por um sortilégio de Deus. Cenas de infância, tipos populares que chamaram sua atenção de menino imaginoso, acontecimentos únicos que ficaram nos porões da memória, tudo isso constituiu matéria literária em suas mãos.
Às vezes me flagro entrando, pela via franca da memória, na sala de aula da Faculdade de Direito, na velha Ribeira que, como o beco recantado pelo poeta Manuel Bandeira, está “intacto, suspenso no ar”. Nesses momentos, sinto que é hora de reler algum tópico do livro Imagens do Tempo, onde recolheu crônicas dispersas nos jornais locais, porque sabia que deveria preservá-las em livro. Ao ler o perfil de um Henrique Castriciano, de um Juvenal Lamartine, de um José Gonçalves ou de um Padre Monte, ou ainda uma crônica dedicada ao jasmineiro de Auta de Souza, um retrato de Vila Flor, a descrição de um velho engenho, tudo isso me confirma que o escritor memorialista soube entender como poucos a alma patrícia do homem potiguar, seus valores essenciais, que outro mestre, Luís da Câmara Cascudo, resumiu à perfeição num livro juvenil.
Recordar Edgar Barbosa termina por ser também um exercício de saudade sem saudosismo, porque se faz em contato com sua obra, a qual, pelas lições que continua a nos dar, permanece aberta e receptiva às questões da nossa época. Como ex-aluno recordo-o com emoção.

(*) Escritor

09/03/2020



PRESSÁGIOS E TRAVESSIAS

Valério Mesquita*

Aprendi a me contentar com o que sou e com o que tenho, como falava o apóstolo Paulo. Não me compraz abordar esse tema que representa, apenas, uma despretensiosa opinião entre milhares. Falo para lembrar que o mundo precisa é de um bom retorno à moral, aos bons costumes e às boas maneiras. O Brasil está grandemente desacreditado no exterior, tanto do ponto de vista político e esportivo, bem assim com relação a segurança e a moralidade pública. Hoje, se a polícia agir para manter a ordem social é logo acusada de repressora. Se ela prender o criminoso ou o viciado, a legislação penal permissiva e retrógada coloca nas ruas para repetirem tudo outra vez. O país parece que não está mais acreditando em si mesmo.
Os princípios basilares da constituição de uma família, obra de Deus, estão sendo confundidos e modificados pela opção individual de vida com pessoas do mesmo sexo, em nome de falsa modernidade. Modernidade para mim é o progresso da ciência médica, da informática, da engenharia, das comunicações, etc. Mas, em desagrado com o que é sagrado e consagrado é degradação, degenerescência. O direito individual de escolher a condição sexual, é assunto exclusivo de cada um que deve ser respeitado. No entanto, tratar a união de parceiros iguais tal e qual uma família constituída, significa destruir uma geração que já está contaminada e descompensada pela perda da guerra contra a droga. Aonde a justiça brasileira quer chegar? Trata com indiferença as passeatas que festejam o consumo da droga. Depois, recebe com ceticismo o clamor popular para endurecer a  legislação penal contra os menores infratores que comandam hoje as estatísticas criminais! E ai? O governo está criminalizando a pobreza porque falhou na educação dos jovens. Ou vamos nos transformar numa imensa população carcerária ou tudo virar mesmo um caos.
O movimento dos sem-terras faz “gato e sapato”. Invade e depreda tudo! Aliás, quando ocorrerá a invasão da turba multifacetária ao STF? Os índios já deram o bom exemplo intimidando a Câmara Federal. A legislação brasileira sobre esses assuntos corporativos é frouxa e mixuruca. O excesso de tolerância pode causar mortes por imprudência ou falta de autoridade. A grande burrice da escolha nacional de gastar bilhões para salvar o falido futebol – em vez do próprio brasileiro, ser humano, pobre, sem saúde e segurança, é um absurdo. Viva o circo! Abaixo o pão! Um dia – o que não desejo – mas prevejo, quando acontecer uma tragédia que atinja congressistas, ministros da área jurídica ou suas famílias, aí sim! Será dada a largada. Os jovens ocupam as ruas do Brasil com protestos, lutando e depredando mais para tirar centavos de uma passagem de ônibus do que pela vida, pela punibilidade das gangues dos crimes hediondos.
Nas antiguidades grega, romana e principalmente a judia, revelada no Antigo Testamento, todas acreditavam em um Deus irado que punia todos que ameaçavam os respectivos povos com catástrofes e sinistros. Na Bíblia Sagrada, Moisés, Josué, Samuel, Ezequiel, Jeremias, Daniel, Isaías, além dos profetas menores, todos escolhidos e inspirados por Deus, descrevem intervenções divinas em defesa e preservação do povo judeu. Nos dias de hoje, ante a derrocada moral do mundo, só temos a recorrer mesmo ao Altíssimo. Esperar o retorno de Jesus Cristo, no final do milênio, conforme rezam as Escrituras, parece ser a única salvação para depurar, higienizar e moralizar o planeta. Se não ocorrer uma medida preventiva do Céu, tudo o mais vai piorar igual a cantiga da perua. Quem viver, verá: o diabo favorecendo os maus e a gente pedindo a Deus que nos acuda.
(*) Escritor


NIVALDO E JOÃO: UM DEPOIMENTO

Valério Mesquita*

Afinidades de temperamento entre pessoas de famílias diferentes são bastante comuns. Estudos genéticos e outros fatores científicos diversos explicam o fenômeno. Como não sou do ramo não ouso abordar o tema. Mas, coincidências de vida, de destino, de identidades, são mais difíceis de ocorrer com frequência. Peço permissão ao leitor para citar como exemplo, o que ocorreu comigo e o escritor e ex-auditor do TCE Cláudio José Freire Emerenciano. Ingressamos juntos no terceiro ano primário do Colégio Marista em 1954. Cursamos juntos o primário, o ginásio, o segundo grau e a faculdade de Direito sempre na mesma sala de aula. Como infantes e adolescentes frequentávamos os cinemas de Natal (Cines Rex, Nordeste, Rio Grande, Panorama), festas e farras. Formados, fomos nos reencontrar depois, no jornalismo e na política. E hoje, na terceira idade (que ele não proteste), trabalhamos juntos na mesma instituição: o Tribunal de Contas do Rio Grande do Norte, até nos aposentarmos.
Esse fato levou-me a reflexão sobre outro a respeito de dois padres – embora de diferentes gerações – mas de similitudes e coincidências dignas de nota. Refiro-me ao saudoso padre Nivaldo Monte e o seu colega de sacerdócio João Medeiros Filho. Ambos simples, permeáveis, acessíveis, humildes e prestativos. Nasceram em março e no mesmo dia. Estudaram no Seminário São Pedro, em Natal. O sacerdócio dos dois foi exercido na arquidiocese de Natal, além de terem servido como professores na mesma universidade – a UFRN. Dom Nivaldo fundou a Faculdade de Serviço Social e o padre João Medeiros catorze faculdades de Teologia, além da implantação do Centro de Estudos Superiores do Seridó, o CERES da UFRN. Inclusive nesse quadro de iguais funções pedagógicas, ressalte-se as semelhanças de pensamento e ação.
Um era magrinho (Nivaldo), já o outro gorduchinho, mas ambos sofridos pacientes renais. Todavia, não estacam aí outras observações que pude captar dos dois servos do Senhor. Quando João Medeiros voltou do Rio de Janeiro para o Rio Grande do Norte a afetividade dos dois, media-se pela extensão e profundidade de gestos e mútua solidariedade cristã. Nivaldo doou-lhe um terreno para a construção de sua casa em Emaús, Parnamirim. O ex-arcebispo tratava o seu irmão na fé com gestos de amizade especial, fazendo questão, certa vez, de presidir a missa de quarenta anos de sacerdócio do padre jucuturuense. Essa afeição encontrava justificativa no fato de Medeiros tê-lo assistido permanentemente no seminário quando das experiências botânicas do seu amigo. A concomitância, a coexistência, a simultaneidade de dois seres humanos, ligados pelas mesmas circunstâncias de vida numa comunhão de fé e de princípios superiores não podem ficar à margem do desconhecimento.
Já no entardecer da passagem de dom Nivaldo, ali em Emaús, o padre João Medeiros dedicava uma hora do dia para conversar com o arcebispo. Celebrava todo domingo na capela particular, quando Nivaldo não podia mais presidir a liturgia por motivo de saúde. A biblioteca do acadêmico, constituída de obras cientificas, literárias e teológicas era zelada diariamente e sobre os seus livros conversavam sempre. Nivaldo e João, posso afirmar, contemplaram muitas vezes Deus no silêncio da granja de Emaús. João foi o seu confidente durante a enfermidade, até o momento da partida para o descanso eterno.
E como ritual permanente de uma afeição tecida de fraternidade, identidade ministerial e claridades interiores, toda semana o padre João Medeiros Filho vai à sepultura do seu preletor e benfeitor pedir forças para exercer a sua missão e consignar, sem rebuços nem tibieza, o tributo da gratidão. “Prova de amor melhor não há que doar a vida ao seu irmão”.

(*) Escritor.

04/03/2020




QUASE VINTE ANOS DE LONGAS ESPERAS

Valério Mesquita*

A notícia chegara pela manhã trazida pela voz insuspeita do então presidente da Fundação José Augusto. Pelo telefone, o entusiasmo de Woden Madruga me contagiava porque, na verdade, conhecia o meu esforço e as cobranças repetidas através dos jornais e da tribuna da Assembleia Legislativa. Ele acabara de bater o martelo com o governador Garibaldi Filho decidindo a restauração dos Guarapes e toda a área adjacente do sítio histórico, onde se ergueu o primeiro empório comercial do Rio Grande do Norte de exportação e importação de produtos, às margens dos rios Potengi/Jundiaí. Não há melhor oração pela alma de Fabrício Pedroza do que a reconstrução arquitetônica do Casarão cuja vista do alto da colina emociona e devolve o esplendor de uma fase importante da vida econômica do Rio Grande do Norte.
O chamado Engenho dos Guarapes foi o marco expressivo do desenvolvimento econômico dos séculos XVIII e XIX, através da comercialização de produtos agrícolas exportados para outros estados e para o exterior. Viveu o seu apogeu ao tempo de Fabrício Gomes Pedroza, rico comerciante, até chegar o seu declínio econômico no início deste século. O prédio está situado no alto de uma colina, próximo à divisa dos municípios de Natal e Macaíba, e embora em péssimo estado de conservação, nele podem ser aplicadas as técnicas arquitetônicas utilizadas na reconstrução do Solar do Ferreiro Torto em Macaíba, cuja situação física era semelhante ou pior que o Casarão dos Guarapes. Vivia, em 2001, o momento crepuscular do meu quarto mandato parlamentar e não poderia receber melhor notícia. Atravessava aquele momento da coleta das passagens esparsas e produtivas da vida pública quando senti soar a hora da ressurreição do marco mais importante da história econômica do Rio Grande do Norte. E a emoção é maior porque sou de Macaíba, o filho, o irmão, o cidadão, o íntimo, com uma presença permanente e evocativa de amor e respeito a minha terra.
 O projeto arquitetônico estava entregue à competência do arquiteto Paulo Heider Feijó, responsável pela restauração dos mais importantes monumentos históricos do Rio Grande do Norte. Prometi que ao lado do presidente da Fundação José Augusto somaria os esforços para a consecução desse objetivo que resgata o denso passado histórico do nosso estado. Woden tem raízes familiares em Macaíba onde viveu um tempo de sua adolescência ao lado do seu primo Vinícius Madruga, sob os cuidados de sua tia D. Nazaré, anjo de ternura e paz. Além de sua vontade política e administrativa, somara-se à doce e terna cumplicidade telúrica de desarmar os presságios e resgatar os frutos do tempo. A área foi tombada pelo Patrimônio Histórico, desapropriada e paga na época referida.
Dezenove anos são transcorridos, Woden e eu ainda permanecemos na estação das longas esperas. Com o olhar contemplativo na paisagem de um tempo que não queremos sepultar. Os moedeiros do erário ainda escondem o dinheiro. Os pedaços dos Guarapes continuam espalhados no chão dos antepassados. Vilma, Rosalba, ambas ignoraram a restauração dos Guarapes. Robinson, além do desprezo, não aplicou um milhão de reais transferidos pelo Ministério do Turismo e depositados na Caixa Econômica Federal do Rio Grande do Norte. Ele permitiu que o dinheiro voltasse para Brasília porque a iniciativa era dos três: Valério, Woden e Garibaldi Filho. Reclamei até a Procuradoria do Patrimônio e da Defesa Ambiental do Rio Grande do Norte que envidou esforços junto a Fundação José Augusto e a Caixa Econômica sem obter êxito face a má vontade política, administrativa e pessoal do citado ex-governador. E agora, até quando?
(*) Escritor.




Portulanos, caravelas, a Escola de Sagres...
Tomislav R. Femenick – Autor do livro “Os Herdeiros de Deus: a aventura dos descobrimentos”

Antes das grandes aventuras portuguesas e espanholas por mares desconhecidos, realizava-se na Europa uma navegação costeira, que se orientava por pontos de referência, naturais ou não, localizados em terra, tais como baias, enseadas, ilhas, pontas, istmos, cidades, castelos, fortes e, principalmente, portos. O conhecimento desses acidentes, primeiro foi passado de forma oral entre mestres e aprendizes, depois passou a seu descrito em documentos chamados de “portulanos” (roteiros que descreviam os pormenores das costas marítimas), que abrangiam apenas o Mediterrâneo. Em seguida, o seu uso estendeu-se até ao mar Negro, à costa ocidental da Europa, às Ilhas Britânicas e à África. Algumas vezes eram acompanhados de “mapas de portulanos”, cartas náuticas primitivas que, por não disporem de instrumentos que identificassem as graduações de latitude e longitude, exibiam os contornos litorâneos com um perigoso grau de imprecisão.
Para essa navegação de cabotagem eram usadas galeras (ou galés) e veleiros. Os primeiros eram barcos de dupla propulsão, a remo e a vela, com grande mobilidade. Como precisavam de um grande número de remadores, sua capacidade de carga era pequena, se comparada com o seu peso total. Os veleiros do Mediterrâneo contavam com a chamada vela latina, uma vela triangular que trabalhava no sentido de proa à popa, envergada em um mastro cruzado por uma peça de madeira ou ferro (carangueja). No Mar do Norte eram mais usadas as velas retangulares, maiores e mais apropriadas para um melhor aproveitamento dos ventos. Embarcações de ambos os tipos tinham incorporado, desde o século XIII, o leme de cadaste ou de roda – uma forte peça de madeira que integrava a parte de trás da quilha. Preso à popa, o leme dava a direção das naves (FAVIER, 1995; GARCIA, 1999).
A navegação oceânica exigia outras técnicas. Agora não mais haveria terra à vista, pois a viagem se dava em alto-mar, através de oceano desconhecido. A longa duração fora dos portos exigia embarcações ágeis, porém não propulsados por remos, pois uma tripulação de remadores exigiria provisões em quantidade que não seria possível transportar. Portugal saiu na frente. No porto de Lagos foram feitas as primeiras experiências que deram origem à caravela, uma embarcação planejada para levar e trazer os navegantes de volta. Os navios a vela sofreram inovações. Um terceiro mastro nos anos de 1430. Em pouco tempo aparecem quatro ou cinco mastros.
Todavia, a caravela foi uma criação portuguesa, embora que tendo como base barcos de origem muçulmana, com as quais os lusitanos conviveram durante o tempo da ocupação moura. Entre eles estavam o caravo (do árabe qarib), semelhante ao pangaio (MARQUES, 1984), ainda hoje usado nas viagens costeiras na África oriental e na Índia. No rio Douro era utilizada uma embarcação menor que o caravo, chamada de caravela (qarib + ela = caravela) – (BOORSTIN, 1989). A caravela lusitana era uma embarcação veloz, forte e segura para a sua época. Era construída com vigas e tábuas de carvalho, pinho e sobro e cravos de cobre e, raramente, de ferros. No seu projeto não havia lugar para curvas graciosas, entalhes elaborados ou cores brilhantes. Sua pintura preta, feita com betume, procurava resguardar o casco do ar, da umidade e do ataque dos crustáceos. Era a embarcação ideal para as viagens de descobrimento. “La carabela comenzó a usarse en España em el segundo cuarto del siglo XV y seguramente a imitación de los portugueses” (PADRON,1981).
Não se pode falar nos pré-requisitos técnicos necessários aos descobrimentos sem falar no Infante Dom Henrique e na sua criação, a escola de Sagres, a NASA do século XV. Dom Henrique (terceiro filho do rei de Portugal), tinha uma personalidade mística e aventureira, como todo homem medieval, porém se diferenciava pela curiosidade científica, principalmente para com as coisas do mar. Formalmente nunca houve a tal escola. Houve, isto sim, uma região, o promontório de Sagres, onde, a partir de 1438, foram criadas as condições para o desenvolvimentos das técnicas náuticas.  O uso da bússola, do astrolábio, da balestilha (instrumento para medir a altura dos astros) primitiva, do quadrante e de mapas mais precisos resultou dessa junção de saberes. Muito do que se fazia em Sagres – não obstante – era vasado, principalmente para às coroas de Leão e Castela.

Tribuna do Norte. Natal, 05 mar. 2020.

02/03/2020


SOPRA UM VENTO FORTE

Valério Mesquita*

Não, não é o vento de Geraldo Melo soprado no Rio Grande do Norte lá pelos fins e confins dos anos oitenta. Na Espanha, o cardeal Cañizares denunciou a existência de uma revolução social para destruir os postulados da Igreja Católica. A assertiva cardinalícia aduz, ainda, que esse movimento oculto já atua nas escolas e na mídia espanhola e que se alastra nos países vizinhos. Conhecemos que o mundo ocidental é o maior herdeiro no globo terrestre da doutrina cristã. Depois da invasão dos bárbaros, lá pelo século quinto, foram os monges nos conventos, os verdadeiros sustentáculos da fé do Novo Testamento. A revolução social aludida pelo alto dignitário da Igreja Católica espanhola já se estende aos países das Américas, através da perversão dos costumes, da subversão do comportamento da juventude na família, na mídia e nas escolas. É a crise típica de uma sociedade que tem se afastado de Deus, elegendo o mundanismo como valor essencial de vida, embora, passageira, fáctil, fácil, fútil e fóssil. O fato é que o vento sopra forte. Sopra uma revolução social, no dizer do cardeal Cañizares contra a religião católica em plena Espanha (e não somente lá, mas no mundo todo), que já deu reis católicos e espargiu igrejas, conventos e padres em diversas partes do mundo.
De modo geral, as religiões católicas e evangélicas estão atentas no Brasil para o poder da mídia e da influência poderosa que elege e deselege políticos; que manda e desmanda apresentadores de tv para o podium do poder, fazendo a cabeça do jovem e do pobre. Assim também faz a internet: miséria e abusos. Por isso, as igrejas evangelizam mais na televisão do que em seus templos porque, por aqui, a revolução de estrangular o cristianismo já começou. Vejam só: na tv a cabo, contei quatro canais católicos privativos e três evangélicos, sem contar com os programas diários, alugados e pagos por segmentos protestantes diversos. Tudo isso, para conter, esbarrar, meu caro cardeal Cañizares, o vento forte que sopra da península ibérica.
A denúncia do líder religioso espanhol se reveste da maior importância porque foi ditada pela rede de comunicação mundial do Vaticano. Na verdade, a revolução social a que se refere, não parte de grupos, partidos políticos, governos ou quaisquer instituições privadas. Ela provém da crise de caráter, de espiritualidade, do desajuste familiar. Ela, – a revolução social contra a Igreja Católica – está no homem. Não imaginem que vem de correntes evangélicas. Não. Porque se não anuírem que o Deus e a Bíblia são os mesmos, todos naufragarão na praia, vítimas do próprio cata-vento da discórdia. Que isso Deus não permita e que sejam apenas palavras ao vento.
O abismo da destruição iminente do mundo já foi cavado.

(*) Escritor.