31/10/2019


FINADOS

Valério Mesquita*

Algo de especial na ordem do mundo são os mortos. O maior segredo da vida é a morte. Pode vir com naturalidade nos lábios de uma criança ou escondida nas incertezas da aventura humana. O elemento essencial segue aquele princípio aristotélico de que “tudo deve ter um começo, um meio e um fim”. Qualquer travessia neste mundo não é impune. Da morte não jazem apenas destroços, choros, lamentos, que incomodam a alma. Até porque é mistério incomunicável de Deus. No livro das memórias os falecidos podem ser esquecidos mas nunca os seus nomes. Meus olhos têm a fome da saudade. Porque na epifania eles serão lembrados, mesmo em andrajos saídos das urnas escuras do sono demente.
Em Macaíba, o velho cemitério de São Miguel, é o guardião triste da população e da anistia dos pecados. Lá sempre visito e revisito os meus mortos, parentes e amigos. Pelas alamedas leio as lápides, principalmente as antiquadas, para revolver na mente os vultos ancestrais habitando a cidade. Restituem-me as casas senhoriais, os hábitos, as roupas, os folguedos, as festas, tudo lírico, romântico, calmo e sem pressa. Auta de Souza tecendo versos ali perto do rio Jundiaí. Henrique Castriciano de fraque e gravata borboleta, à passos largos caminhando em direção ao cais para não perder a lancha com destino a Natal. Calçadas e ruas atravessadas pelas figuras solenes de Tavares de Lyra, João Chaves, Alberto Maranhão e Augusto Severo. As mulheres fortes, matronas, espartanas, Senhorinha de Manoel Amaro, Marocas e Joaninha, Ana Olindina, Cacilda Mesquita, Arcelina Fernandes, Nazaré Madruga, Teresa Gomes, Luiza e Sofia Curcio, Belita Ribeiro, Zebina Alecrim e tantas e tantas outras, que vêm como fantasmas bondosos.
Sim, o cemitério é um universo multifário de loucos e de líricos, de ricos e pobres, de santos e boêmios, de todos eles importam apenas as passadas perfórmances, na alegria ou na dor, no esporte ou no carnaval. Ah, os velhos atletas do campo santo: Passarinho, Caíco, Paulo Preto, Aguinaldo, Barbosinha, Loreto e muitos outros que ainda me fazem ouvir os gritos do último gol. Os carnavalescos Zé Batata, José Ludovico, José Jeep, Ailton Feitosa, jaziam na fria lousa do esquecimento sem ruídos de cuíca e tamborim. Vendo a morte assim tão perto é inevitável a ressurreição de lembranças, das marcas e dos passos que se foram. Dia de finados é seminário de desaparecidos, procissão de relembranças, obituário de fantasmas camaradas.
Finalmente cheguei ao túmulo dos meus pais, tios, tias, avós, irmão e filho. Algo esquisito percorreu-me o corpo. Todo aquele que é sensível, emocional, capta sinais. Ali em frente dormia os restos de minha mãe, a última a ser ali sepultada. Senti imensa e incontrolável comoção. Ao redor, todos cumpriam o mesmo ritual, a mesma liturgia, que só vai acabar com o mundo. Não somente preces, nada mais, restam aos mortos. Não apenas a solidão, inexprimível, incurável e eterna. O dia de finados, hoje, é mais para advertir aos vivos do que para lembrar os mortos. Se cada um que visitasse o cemitério repetisse a frase que “eu serei você amanhã”, o mundo seria melhor. Bem melhor. De volta à rua da Cruz, o último olhar para a casa de Joanete Moura como se ainda a ouvisse sentenciar sobre o toque plangente de finados vindo do sino da Matriz tangendo um enterro para o cemitério: “Quem terá sido o triste da pancada do sino?”.
 (*) Escritor.

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