A cana de Graça (II)
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na
literatura brasileira” (Livraria José Olympio Editora, 1946), disse:
“copiando a vida, em todos os seus aspectos, e em todos os seus
meandros, por mais recônditos, os romancistas e novelistas não podiam
esquecer os cárceres onde os que transgridem as leis penais são
recolhidos para cumprimento de suas penas”.
Graciliano Ramos
(1892-1953) não transgrediu lei penal alguma, pelo menos não para os
fins da prisão, injusta e política, que lhe foi infligida, em 1936, pelo
Governo de Getúlio Vargas (1882-1954). Embora um dos maiores escritores
do país – lembremos que ele já havia publicado “Caetés” (1933) e “São
Bernardo” (1934) –, Graciliano foi simplesmente jogado entre criminosos
comuns, entre assassinos, ladrões e estupradores, sem motivo e sem
culpa, jamais ouvido ou formalmente acusado, até porque não haveria
crime que lhe fosse possível, honestamente, atribuir. Teve a cabeça
raspada, como qualquer gatuno, e foi submetido às demais humilhações por
que passavam os condenados de então (a coisa parece não haver mudado
muito de lá para cá). Tudo feito propositalmente. E se algo de positivo
pode ser retirado dessa barbaridade com o “Velho Graça”, a única coisa
possível, foram as suas “Memórias do Cárcere”, publicadas, já
postumamente, em 1953.
O livro – refiro-me às “Memórias do
Cárcere” –, portanto, é um “depoimento”. Conta a história de uma prisão
arbitrária, as aventuras e os dramas do prisioneiro e de seus
companheiros, pelos presídios do país e, sobretudo, descreve um período
da nossa história. E ninguém poderia prestar esse depoimento tão bem
quanto aquele que foi ao mesmo tempo acusado, testemunha e, sobretudo,
vítima dessa tremenda arbitrariedade jurídico-política. Muito embora
tenha Graciliano escrito – e, sobretudo, publicado – as suas “Memórias”
anos após o acontecido, quando até já declinava fisicamente (ele faleceu
em 1953, ano da publicação do livro), vítima das sobrecargas do tempo e
da doença (um câncer), das dores e das amarguras da vida.
O
livro também é um “libelo”. E, dada a injustiça praticada, não poderia
deixar de sê-lo, como bem lembra Nélson Werneck Sodré (1911-1999), em
prefácio à edição de “Memórias do Cárcere” que possuo (publicação da
Record e da Livraria Martins Editora, de 1975, em dois volumes). Um
“J'accuse” à brasileira e em causa própria. De toda sorte, nesse
sentido, ganhamos “com a objetividade, com a clareza, com a minúcia e
com a exatidão, – porque, sendo uma acusação, não pretendeu jamais ser
neutro ou dar, indiscriminadamente, relevo a alguma coisa que não o
merecesse”.
Ademais – e é o mesmo Nélson Werneck Sodré que anota
isso –, “só o mestre de Angústia [romance publicado por Graciliano em
1936, quando achava-se preso pelo Governo Vargas] poderia realizar a
tarefa com a grandeza necessária”. E, aqui, aproveito a deixa para fazer
a relação entre Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Graciliano Ramos,
como, de resto, fiz no artigo anterior, sobre Oscar Wilde (1854-1900).
Na estória do triângulo amoroso entre o ressentido Luís da Silva, o
rico Julião Tavares e a disputada Marina, de viés existencialista,
trabalhado por meio de um “fluxo de consciência” joyciano, há mesmo
algo, talvez muito, de Dostoiévski e de “Crime e Castigo” (1866). Em
especial, as angústias, os arrependimentos e o medo (de ser pego),
sentimentos que o crime praticado desperta no seu autor (no caso, o Luís
da Silva), que estão presentes no dois romances. Com a diferença de
que, em “Crime e Castigo”, o delito é o ponto de partida para a trama;
no livro de Graciliano, o crime é o seu quase “finale”, numa mistura
dúbia de realização pessoal com angústia que dá título à obra.
Graciliano leu “Crime e Castigo”, isso é certo. Era um apreciador da
literatura russa e de Dostoiévski em particular. Mas, em vida, relutou
em aceitar as comparações entre a sua “Angústia” e “Crime e Castigo”.
Não achava seu livro à altura da obra-prima russa. Parte modéstia, parte
honesta autocrítica.
E o mais importante: quem lê ou ouve
falar de “Memórias do Cárcere” certamente se lembrará de Dostoiévski e
de suas “Recordações (ou Memórias) da Casa dos Mortos”, de 1862. Aqui,
sem dúvida, no gênero dos “romances prisionais” (se é que esse gênero
existe), Graciliano Ramos foi o nosso Dostoiévski. E, como anota Nélson
Werneck Sodré, ele “realizou a tarefa como desejávamos todos: sua
história aparece como um dos grandes livros brasileiros, talvez o maior.
Não se surpreendam, – amanhã, quando a vida de hoje estiver esquecida,
esta obra nos representará. Será, para os brasileiros que vierem depois
de nós, muito mais do que Os Sertões, muito mais do que o melhor Machado
de Assis [talvez tenhamos um certo exagero aqui, vá lá]. E foi por isso
que escrevemos que Graciliano honrou o seu tempo”.
Bom, dito isso, só nos resta agora ler ou reler as “Memórias do Cárcere”. Mesmo que com toda a angústia do mundo.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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