A partir de quando?
Dia desses, no Habeas Corpus (HC) 166373, o Plenário do Supremo
Tribunal Federal decidiu, por maioria (7 x 4), que, em ações penais com
réus colaboradores e delatados, é direito destes apresentarem suas
alegações finais depois dos réus que firmaram acordo de colaboração.
Venceu o entendimento de que, com os interesses conflitantes, apenas a
concessão de prazos sucessivos, possibilitando que os delatados falem
por último, garante o direito fundamental da ampla defesa e do
contraditório.
Tudo bem. Pensando direitinho, isso parece ser o correto.
Entretanto, não se havia pensado nisso, nem mesmo no STF, até bem
pouco tempo. E, durante alguns anos, esse procedimento, de prazos
sucessivos para as alegações finais, não era o adotado nos juízos e
tribunais do país afora.
E aí surgiu um outro problema,
gravíssimo, aliás: essa decisão no Habeas Corpus (HC) 166373 pode ter
repercussão em diversos processos concluídos ou em tramitação pelo país,
agora sujeitos a uma potencial nulidade. Assim, os ministros terão de
apresentar, para garantir um mínimo de segurança jurídica, uma
tese/solução para orientar as outras instâncias judiciais eventualmente
envolvidas.
A solução, espera-se, passará por algum tipo de
aplicação prospectiva da decisão que anunciou a nova regra. Numa
aplicação prospectiva clássica, o novo precedente,
decidindo/disciplinando o caso em julgamento, passará a disciplinar
apenas os fatos ocorridos depois do seu estabelecimento. Não retroage
para os fatos já ocorridos e os casos já julgados. Tem efeitos apenas ex
nunc, como se diz.
A razão da existência da aplicação
prospectiva está na necessidade de manutenção da confiança nos
precedentes judiciais anteriormente estabelecidos, pois as pessoas e
órgãos do Estado agem – ou, pelo menos, deveriam agir – com base e em
confiança nas regras até então existentes, incluindo-se as regras
elaboradas pelos juízes, em especial aqueles da sua Corte Suprema.
No processo penal, como é o caso do dilema que o STF enfrenta agora,
isso é bem sensível, claro. Temos muitos direitos fundamentais em jogo,
em especial a liberdade. Mas há boas justificativas para a aplicação
prospectiva do novo precedente nessa área do direito. Victoria Sesma, em
“El precedente en el common law” (editora Civitas, 1995), levando em
consideração a prática judicial dos Estados Unidos da América,
oferece-nos pelo menos duas boas razões para aplicar um novo precedente
revogador apenas prospectivamente, derivadas da ideia de manutenção da
confiança nas decisões judiciais: “a) a justificativa mais usada tem
sido a confiança nas decisões judiciais. (...). Um tipo de confiança
diferente tem sido alegado por parte de policiais e membros do
Ministério Público quando enfrentaram um tribunal que coloca em xeque os
procedimentos que se devem seguir em uma investigação criminal. Não é
justo, dizem, penalizar a persecução por errar no cumprimento de regras
que não tinham sido estabelecidas antes da investigação acontecer. A
Corte Suprema dos EUA aceitou este ponto de vista como um dos
fundamentos para limitar o efeito de Miranda v. Arizona 384 U.S. 436
(1966); b) uma segunda justificativa assinala que o que motiva o
tribunal a revogar um precedente é o desejo de pôr em prática uma nova
política, mas uma política que não necessita ter efeito retroativo. Em
Mapp v. Ohio, a Corte Suprema dos EUA decidiu que a prova descoberta em
um determinado procedimento considerado ilegal não podia ser utilizada
em juízo. Em Linkletter v. Walker 381 U.S. 618 (1965), o tribunal
decidiu que a regra Mapp era só prospectiva. Disse que a nova regra foi
proposta para dissuadir procedimentos ilegais, e que era demasiado tarde
para dissuadir aqueles procedimentos que já tinham acontecido.
Portanto, não podia ganhar-se nada dando a Mapp efeito retroativo”.
Acho que a coisa vai caminhar por aí – algum tipo de aplicação
prospectiva – para a decisão proferida no Habeas Corpus (HC) 166373. Até
porque, como disse o Ministro Luiz Fux dia desses, segundo publicação
do ConJur de 16 de setembro de 2019, o STF “tem muita preocupação com a
segurança jurídica. A segurança jurídica, por vezes, leva o Supremo a
modular suas decisões. Quer dizer, as decisões passam a valer de um
determinado momento para frente, para não nulificar tudo o que já foi
praticado”. Ainda acredito que ele está certo.
Apenas, talvez,
com algumas exceções retroativas para corrigir prejuízos efetivamente
demonstrados, em processos já julgados, como aquelas sugeridas pelo
Ministro Presidente Dias Toffoli: “1) em todos os procedimentos penais é
direito do acusado delatado apresentar as alegações finais após o
acusado delator que, nos termos da Lei 12.850, de 2013, tenha celebrado
acordo de colaboração premiada devidamente homologado, sob pena de
nulidade processual, desde que arguido até a fase do artigo 403 do CPP
ou o equivalente na legislação especial, e reiterado nas fases recursais
subsequentes; 2) para os processos já sentenciados, é necessária ainda a
demonstração do prejuízo, que deverá ser aferida no caso concreto pelas
instâncias competentes” (site do Conjur de 2 de outubro de 2019).
Bom, aguardemos o nosso Supremo.
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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