A hora da prisão
Já defendi aqui, mais de uma vez, no âmbito do nosso processo e
direito penal, por não enxergar ofensa ao princípio constitucional da
presunção da inocência, o início da execução da pena imposta após a
confirmação da sentença condenatória em segundo grau.
Eu não mudei de opinião, digo logo.
Continuo achando que o princípio da inocência é muito mitigado com a
sentença penal condenatória e, com a confirmação desta em segundo grau,
ele deixa mesmo de existir. Fio-me no próprio texto constitucional que,
no seu art. 5º, inciso LVII, aduz “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, chamando a atenção
para o conceito/termo “sentença”, que, como sabemos, é pronunciamento
por meio do qual o juiz de primeiro grau põe fim à fase cognitiva do
procedimento penal em sua jurisdição. A Constituição Federal não fala em
trânsito em julgado de “acórdão”, que é o julgamento colegiado
proferido pelos tribunais. Ora, a sentença “transita em julgado” quando
decidida sua apelação em segundo grau. O acórdão aí proferido é que
ainda poderá ser objeto de recurso (especial e/ou extraordinário).
Assim, pelo próprio texto constitucional, quando transitada em julgado a
sentença, com a decisão confirmatória em segundo grau, temos uma
verdadeira presunção de culpabilidade.
O argumento de se evitar
dano irreparável à liberdade do cidadão também não me é intransponível.
É claro que muitos, sobretudo os réus em iminência de prisão e os seus
advogados, com base nesse argumento, se levantarão – legitimamente,
frise-se – contra o que digo aqui. Entretanto, afirmo: para evitar dano
irreparável à liberdade do cidadão e equívocos de outra sorte, existirão
as medidas cautelares (em recurso especial e em recurso extraordinário)
e, sobretudo, o habeas corpus, que é o instrumento por excelência para
esse fim. E estes, medidas cautelares e habeas corpus, deverão ser
julgados com total prioridade.
Rezando para não parecer
populista – tenho verdadeira repulsa ao populismo judicial –, penso que,
afastada qualquer inconstitucionalidade na execução da pena
condenatória após a confirmação em segundo grau, estamos diante de uma
questão de opção. No Brasil de hoje, um processo penal comum pode
percorrer, via recursos variados, quatro graus de jurisdição: juiz de
primeiro grau, tribunal de apelação, Superior Tribunal de Justiça e
mesmo o Supremo Tribunal Federal. Isso sobrecarrega o Judiciário. Torna
morosa a Justiça, eternizando os litígios penais, praticamente impedindo
a execução da pena reiteradamente imposta, que fica sendo postergada
num processo quase sem fim. Pelo que sei, em país nenhum do mundo,
depois de cumprido o duplo grau de jurisdição, com a decisão
condenatória do tribunal de apelação, a execução da condenação fica
suspensa, “pairando no ar”, aguardando tanto tempo pela confirmação da
sua Corte Suprema. É isso que queremos manter no Brasil?
Eu sei
que o Supremo está decidindo, pela “enésima” vez, essa questão. Já foi e
voltou, na sua jurisprudência, algumas vezes, como até já mostrei aqui
em outra oportunidade. E isso é péssimo. Mas respeitarei, como sempre
respeitei, a nova orientação do Supremo Tribunal Federal. Antes de mais
nada, não tenho, nem espero nunca ter, a pretensão de ser dono da
verdade. E também respeito essa instituição contramajoritária e pilar
fundamental do nosso estado democrático de direito (e aqui friso a
expressão “de direito”).
Para falar a verdade, eu acho que o
Supremo Tribunal Federal, se deseja proteger esse direito fundamental de
todos nós, que é a liberdade, deveria, sim, preocupar-se com o uso
abusivo das prisões provisórias. As temporárias, que tomaram o lugar das
conduções coercitivas, uma vez proibidas estas pelo próprio STF,
contornando os juízes, abusivamente, a decisão do Tribunal. E as
preventivas – as longuíssimas prisões preventivas, de meses ou anos, sem
julgamento –, que, somadas ao sufocamento das famílias dos
investigados, são utilizadas, muitas vezes, também abusivamente, apenas
para forçar uma colaboração premiada (“nas torturas toda carne se trai”,
já dizia o nosso Zé Ramalho). A prisão preventiva, entre nós, está
virando cumprimento antecipado da pena. E acho que, vedada a execução da
pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, a
coisa pode até piorar. Tornar-se-ão mais frequentes as prisões
preventivas, contornando-se indevidamente a decisão do Supremo Tribunal
Federal (lembrem-se do que aconteceu com a proibição da condução
coercitiva), para antecipar o cumprimento de uma suposta pena que só
viria a ser executada Deus sabe lá quando. Isso pode até satisfazer o
desejo de justiçamento das redes sociais. Mas é isso o que queremos? Uma
“justiça” sem sequer condenação? Uma “justiça” populista? Isso é mais
do que péssimo!
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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