08/10/2019


A cana de Graça (I)

O título parece engraçado. E foi proposital, apenas para tentar suavizar uma página trágica da nossa história política e literária, que, na esteira dos artigos das semanas anteriores (“Dostoiévski e o seu cárcere” e “Wilde no cárcere”), conto agora: a prisão de Graciliano Ramos (1892-1953).
Graciliano nasceu na pequenina Quebrangulo, no estado de Alagoas, em 1892. O pai era comerciante, classe média nordestina, e Graciliano era o primeiro de mais de uma dezena de irmãos. Jovem, perambulou pelo Nordeste. Foi parar no Rio de Janeiro, onde ingressou no jornalismo. Voltou às Alagoas. Em 1927, foi eleito prefeito de Palmeira dos Índios. Dizem que não foi um bom administrador. Renunciou em 1930. Foi morar em Maceió, capital do estado. Foi preso – injustamente, registre-se logo – em 1936. Um ano de cárcere. Depois do padecimento da prisão, nunca mais voltou à sua terra natal. Além de jornalismo e política (até como militante comunista), fez muita literatura. Crônicas, contos, memórias e romances. De fato, ele foi um dos mais importantes contadores de estórias dessa terra boa, mas sofrida, que chamamos de Nordeste, ao lado de gente como José Américo de Almeida (1887-1980), José Lins do Rego (1901-1957), Raquel de Queiroz (1910-2003) e Jorge Amado (1912-2001). “Caetés” (1933), “São Bernardo” (1934), “Angústia” (1936) e “Vidas Secas” (1938), esta talvez sua mais badalada obra, estão aí para comprovar. Graciliano faleceu no Rio de Janeiro, com 60 anos de idade. O ano era 1953.
Como já dito acima, Graciliano Ramos foi “em cana” em 1935. Uma prisão gratuita e, claro, injusta. As tais “atividades extremistas”, alegadas como motivos para a sua prisão, pelo governo de Getúlio Vargas (1882-1954), nunca existiram. Como relata Dênis de Moraes, na excelente biografia “Velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos” (originalmente de 1992, editora José Olympio), à época, sequer comunista Graciliano era. E ele até criticou o levante de então, a tal Intentona Comunista de 1935. Na verdade, ele foi preso sem processo, sem uma culpa formada e sem sequer ser previamente ouvido.
Nem mesmo foi Graciliano vítima de um erro, com queriam fazer acreditar alguns, para minimizar a culpa de outros ou as suas próprias. Como diz Nélson Werneck Sodré, em prefácio à edição de “Memórias do Cárcere” que possuo (uma publicação da Record e da Livraria Martins Editora, de 1975, em dois volumes), “é falso o que sustentam alguns, que Graciliano Ramos foi submetido a tudo isso em virtude de um tremendo, de um profundo, de um lamentável equívoco. Nada disso. Era a ele mesmo que se pretendia ferir. Desde o primeiro ato do drama que foi forçado a viver, tudo foi cuidadosamente pensado, premeditado, claro e absolutamente intencional: a prisão arbitrária, a promiscuidade com os ladrões e assassinos, a viagem no porão, a ida para a Colônia Correicional, a ausência de processo”.
Coincidentemente, por estes dias, numa surrada revista que guardei – não sei o porquê, e certamente não foi para escrever este artigo 27 anos depois –, achei uma excelente definição do acontecido. “A carta: política & informação”, semanário que se dizia “a revista do Nordeste”. Certamente não mais circula. Mas na edição que tenho, de 24 de outubro de 1992, ano VII, nº 299, que comemorava o centenário do nascimento de Graciliano, lê-se: “Foi uma prisão gratuita, apenas com o sentido de perseguir um homem de ideias liberais que pregava contra os desmandos do governo de então. Suas ‘atividades extremistas’ não passavam de uma posição contrária ao governo de Vargas, que na sua opinião não se coadunava com as necessidades do povo brasileiro nem tomava o caminho de uma política condizente com o Brasil de então. Foi preso quando exercia o cargo de diretor da Instrução Pública e não se tinha nenhum conhecimento de atividades subversivas de sua parte. Mesmo assim, (…), foi encarcerado junto a marginais que se misturavam com políticos, literatos e homens públicos, presos apenas pelo crime de não rezarem pela cartilha do governo”.
Graciliano foi, sim, vítima de perseguição política e de ignomínia do poder de então. Foi quase um ano de infortúnio, de abandono e de angústia, largado em masmorras como se uma fera fosse. Mas ele não perdeu a sensibilidade, mesmo em meio àquela gente bruta, mil vezes mais bruta que a gente do sertão de “Vidas Secas”. Assim como a cachorra Baleia, desse que é o mais famoso dos romances de Graciliano, mesmo ao ser “sacrificado”, por suspeita de subversão, Graciliano ainda enxergava o “céu dos cachorros, cheio de preás”.
E foi ainda “em cana” que o grande alagoano imaginou as suas “Memórias do Cárcere”, para narrar as aventuras e os dramas, as suas e as de seus companheiros, pelos presídios do Brasil afora. E haveria Graciliano, como ninguém mais na história da nossa literatura, de penetrar na alma desses companheiros, “de sentir suas dores, admirar-lhes a relativa grandeza, enxergar nos seus defeitos a sombra dos meus defeitos”, segundo ele mesmo diz. “Memórias do Cárcere”, entretanto, só foi concluído anos depois. E restou como obra póstuma, publicada no ano de 1953, na Rio de Janeiro de sua adoção.
Sobre essas “Memórias”, especificamente, nós conversaremos na semana que vem. Rogo apenas um tico de paciência.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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