28/06/2019


HOSPITAL SAMARITANO

Valério Mesquita*

O Hospital Infantil foi criado em 1917, pelo Dr. Manoel Varela Santiago, com atendimento ambulatorial às crianças do Rio Grande do Norte, principalmente de baixo poder aquisitivo. Antes da sua morte, o dr. Silvio Lamartine assumiu a direção do hospital, permanecendo nessa função por mais de 30 anos. Nos últimos anos o “Varela Santiago” ganhou significativo impulso, diversificando e ampliando o seu atendimento, através de mais de vinte especialidades, assistindo uma média de oito a dez mil crianças por mês. As suas UTIs, encontram-se permanentemente lotadas. Sobrevive com a contribuição de algumas empresas, convênios com o governo do estado e com a ajuda financeira de pessoas que conhecem e acreditam na seriedade do trabalho desenvolvido pelo médico Paulo Xavier, seu atual diretor.
Trata-se do único hospital pediátrico do Rio Grande do Norte que atende exclusivamente através do programa SUS. Ou seja, o SUS é porta única para se ter acesso ao mesmo. Caso raro, que merece não só o aplauso do povo norte-riograndense, mas, de igual forma, a plena aprovação ao trabalho do grande profissional e magnífico ser humano  - Dr. Paulo Xavier – que ali tem transformado os seus dias, em exercício de doação e permanente lição de amor.
A saúde do Rio Grande do Norte vive uma quadra difícil de sua existência. O exemplo impactante é a situação do Walfredo Gurgel, mais conhecido como o “hospital dos mártires”, onde os doentes continuam jogados nos corredores. O Walfredo Gurgel não estaria sendo vítima da “ambulancioterapia” dos municípios interioranos? Por que não equipar e ampliar a estrutura de atendimento dos hospitais públicos da grande Natal para absorver essa clientela e livrar o Walfredo Gurgel desse fluxo de interminável agonia?
Cito o Walfredo Gurgel porque me parece que os problemas de saúde não estão sendo tratados com racionalidade e disciplina. Digo, melhor: falta uma política descentralizada e investimentos maciços na área da saúde. Como, um único hospital pediátrico que atende somente pelo SUS, da rede privada, consegue equalizar, sistematizar e manter a sua qualidade de atendimento, como vem procedendo o Varela Santiago? Acrescente-se aí um dado importante: a demanda de pacientes que recebe do interior e da capital é geometricamente crescente porquanto a população infantil desassistida tornou-se incalculável. Você conhece, por dentro, a ala das crianças que padecem de câncer? Eu vi e não pude controlar a emoção e um quase desespero.
Foi aí que me lembrei dos que moram em mansões e palacetes de luxo, que vivem uma vida de dissipações com gastos supérfluos achando que nunca adoecerão. Veio-me à cabeça um evento como o carnatal onde os promotores ganham rios de dinheiro e não se sensibilizam em ajudar a criança cancerosa. Antes, as damas da sociedade e dos clubes de serviço promoviam chás e festas em benefício do hospital infantil. Hoje, pagam caro a vaidade social para exibir as suas futilidades e esquecem os inocentes pacientes portadores de tumores malignos.
Por isso, louvo e aplaudo, o trabalho do Dr. Paulo Xavier e toda a sua equipe de auxiliares que mantêm acesa a chama votiva do ideal hipocrático de Manoel Varela Santiago e seu sucessor Silvio Lamartine. Não significa dizer, com efeito, que o Hospital Infantil é auto-suficiente e já dispensa ajudas. Absolutamente. O condão do meu reconhecimento tem o objetivo de registrar e agradecer as vidas salvas de milhares de crianças ao longo do tempo. E que a sociedade pode e deve ampliar esse apoio, esse auxilio, porque o Hospital Infantil Varela Santiago é um patrimônio de Natal e do Rio Grande do Norte. Meu Deus, o que seria das crianças pobres se ele não existisse!!

(*) Escritor.     

24/06/2019

O inventor
Existem alguns candidatos a pioneiros daquilo que hoje chamamos de ficção policial/detetivesca. O inglês William Wilkie Collins (1824-1889), autor de “The Woman in White” (1860) e de “The Moonstone” (1868), sobre quem já escrevi aqui, é um deles. O estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849), um dos maiores contistas da literatura universal, sobre quem também já tratei aqui (e, neste caso, várias vezes), é outro forte concorrente.
Há, entretanto, um candidato menos conhecido, mas que talvez mereça, de fato, o título convencional de pai da criança: Émile Gaboriau (1832-1873).
Para quem não sabe, Émile Gaboriau nasceu na pequena comuna de Saujon, no sudoeste da França, em 1832. Criança, na companhia dos pais, viveu em diversas localidades da França. Jovem adulto, pouco interessado nos estudos formais, exerceu várias profissões. Foi escriturário, militar e deu aulas de latim. Já mais velho, retomou os estudos, em medicina e em direito. Foi ser secretário de várias personalidades, em especial, para sua carreira, do prolífico romancista Paul Féval (1816-1887). Assim Gaboriau descobriu o jornalismo. De jornalista a escritor de ficção, sobretudo de romances, publicados em formato de folhetim, foi um passo. “L'Affaire Lerouge”, de 1866, talvez seja o seu mais afamado romance. Muito badalados também são “Le Crime d'Orcival”, de 1867, e “Monsieur Lecoq”, de 1869. Gaboriau, aliás, é o criador do Monsieur Lecoq, um detetive ficcional que trabalhava na antiga Sûreté (hoje Police Nationale) francesa. Gaboriau e o seu detetive, isso é importante registrar, tiveram grande influência sobre Sir Arthur Conan Doyle (1859-1930) e, por consequência, na construção do mais famoso dos detetives da ficção, o impagável Sherlock Holmes. O criador do Monsieur Lecoq faleceu em Paris, em 1873, de problemas pulmonares.
Mais do que ser um dos pioneiros da ficção policial/detetivesca, Émile Gaboriau talvez tenha sido um dos pioneiros – ou mesmo, o inventor – de um gênero ou subgênero de literatura ainda mais específico, o dos “romances judiciários”, que, publicados nos folhetins dos jornais da sua época, causaram sensação. Nessas estórias, a personagem do criminoso é geralmente eclipsada, dando-se protagonismo ao investigador arguto e genial ou mesmo a uma complicada instrução judiciária na qual, em meio a uma equivocada acusação a um inocente, se procura descobrir o verdadeiro culpado. O grande público adorou. Virou até moda. Ganhou variações com o tempo. E, embora transformado e reinventado, chegou até nós.
Pelo menos é assim que pensa ninguém menos que o grande jurista, político e literato italiano Enrico Ferri (1856-1929), sobre quem também já escrevi aqui. Li isso não em sua famosa “Sociologia Criminale”, obra que, publicada com esse nome em 1892, fez de Ferri um dos luminares da Escola Positiva do Direito Penal. Mas, sim, no gostosíssimo “Os criminosos na arte e na literatura” (que possuo numa edição brasileira, de Ricardo Lenz Editor, de 2001), na qual o professor italiano afirma: “Émile Gaboriau foi o inventor de um certo gênero de romances judiciários, muito imitados depois, e muito em moda há alguns anos. (…). Nesta espécie de obras, o criminoso é quase sempre relegado ao segundo plano: ele figura como um acessório, um manequim necessário à representação de um crime misterioso, porque o verdadeiro protagonista é a polícia, o agente arguto, genial e sutilmente lógico, possuindo um faro especial para descobrir o criminoso, entre indícios vagos e insignificantes na aparência. Uma laboriosa instrução judiciária excita a atenção do leitor e mantém-no suspenso entre duas emoções diferentes: de uma parte, a fina clarividência de um agente decidido a procurar um culpado; doutra parte, a perseguição dolorosa de um inocente atirado, pela falsa manobra de um silogismo inicial, à inexorável engrenagem de um processo criminal. O esboço é quase sempre o mesmo: a polícia descobre um crime e um dos agentes, mais avisado que os outros, em vez de julgar segundo a aparência e a verosimilhança, chega, por indução, a encontrar uma pista segura. Então, graças aos indícios reveladores que escapam à crítica superficial de seus colegas, ele chega, através dos tortuosos meandros da verdade, a colocar as mãos sobre o culpado”.
E é o mesmo Ferri que nos explica a relação entre a ficção e a realidade judiciária: “Os dramas judiciários apresentam-nos um gênero análogo ao destes romances: têm também por assunto a descoberta de um delinquente, quase sempre um assassino, e excitam a emoção, mostrando-nos um erro judiciário mais ou menos definitivo e o embaraço dos indícios criminais nos episódios de uma vida normal”.
De minha parte, não tenho como afirmar, com 100% de segurança, quem foi mesmo o inventor dos tais romances judiciários. Mas, como já disse aqui certa vez, adoro essas estórias. Acho-as intrigantes e viciantes. E agradeço penhoradamente a Émile Gaboriau. Entretanto, muito mais gratos devem ser gente como Scott Turow (1949-) e John Grisham (1955-). Foi certamente subindo nos ombros do gigante francês, do século XIX, que esses americanos de hoje puderam enxergar e imaginar tão longe.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

20/06/2019





         Para o cristão, nunca é demais invocar as coisas divinas e comemorar as datas, os atos e fatos religiosos.

        Hoje comemoramos o Dia de CORPUS CHRISTI, ou seja do Corpo de Cristo para celebrar o mistério da eucaristia, o sacramento da transubstanciação, dogma católico que representa a presença do corpo e do sangue de Jesus na hóstia e no vinho.

      A palavra hóstia é originada do latim, e é um sinônimo para a palavra vítima. Sendo assim, ela representa o próprio Jesus Cristo, o Cordeiro de Deus que tirou o pecado do mundo, nos livrando de todos os nossos pecados.

      Com essa atitude, os católicos acreditam estarem recebendo essas dádivas.

              Por esse motivo, a data é registrada como a festa de Corpus Christi, que acontece sempre 60 dias depois do Domingo de Páscoa ou na quinta-feira seguinte ao domingo da Santíssima Trindade, quando Jesus instituiu o sacramento da eucaristia e como tal o povo de Deus enfeita as ruas, as igrejas e as casas.

        A festa do Corpus Christi foi instituída pelo Papa Urbano IV no dia 8 de setembro de 1264 e a procissão de Corpus Christi lembra a caminhada do povo de Deus, peregrino, em busca da Terra Prometida. O Antigo Testamento diz que o povo peregrino foi alimentado com maná, no deserto. Com a instituição da eucaristia o povo é alimentado com o próprio corpo de Cristo.

        Outras religiões cristãs não adotam esse ritual, o que em nada modifica o seu significado para a fé. A hóstia, eventualmente, pode estar representada no pão que se ofereça em determinadas circunstâncias incomuns, desde que o gesto envolva o sentimento sincero da invocação do Cristo.
        Sirvo-me da data Santa para relembrar a fé inquebrantável da minha inesquecível Therezinha, que nunca descurou de comemorá-la com extremo amor e devoção. A ela, in memoriam, entrego o Corpo Santo do Nosso Senhor, ansiando que esteja sob a sua proteção e interceda pelos que aqui ficaram. Um beijo saudoso do seu esposo Carlos Roberto de Miranda Gomes. AMÉM.



NÃO PRECISA SER PROFETA

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Determinismo histórico dizem que existe. Há dezenas de casos na política brasileira. Nunca foi tão fácil adivinhar a destruição do nosso planeta, num futuro não muito distante, vítima da poluição da atmosfera, dos mares e da natureza. Prever a paz na África e no Oriente Médio, por exemplo, é mero exercício de retórica. A gênese da questão palestina não é territorial, apenas, mas religiosa; desde o tempo do sultão Saladino e as Cruzadas do Vaticano. Óbvio ululante. Profecia é coisa séria. O dom de profetizar só ocorre com o apoio do Espírito Santo. Assim falou Malaquias. E antes dele, Zacarias, Ageu, Sofônias, Hebacuque, Naum, Daniel, Oseias etc., sem falar em Isaías, o maior deles. Não foram adivinhos mas profetas de verdade.
Após essa viagem de circunavegação polar em torno do assunto, chego a Natal, a cidade dos Reis Magos, adventícios, visionários, adivinhos e proficientes. Não se torna necessário recorrer a eles para distinguir ou antever nada em Natal. Se assim fosse, eles teriam se estabelecido nas Rocas e deixado uma banca invejável de cartomantes e curadores. Baltazar, Gaspar e Belchior ficaram mesmo perdidos no deserto das Arábias em vez das dunas da Redinha.
Não precisa ser profeta para chegar à conclusão que não emplacará 2019 sem que as avenidas de Natal se tornem intransitáveis. O número de veículos que circula já é maior, hoje, que a capacidade de sua malha viária. Estão financiando carros para pagar em sete anos (oitenta e quatro meses). Qualquer pessoa, com apenas um salário, sai de uma loja ou concessionária, sem avalista, lenço ou documento, dirigindo por aí. Quando acontecer uma crise econômica no país, quem vai para o beleléu: a financeira ou a seguradora? Já prevejo filas de carros abandonados nas vias públicas por inadimplentes enlouquecidos. Não desejo que isso ocorra mas o calote vai ser geral. Já imaginou uma entrada de vinte por cento no valor do bem e somente pagar a primeira prestação em 2020? É caso de B.O (Boletim de Ocorrência).
Outro tema para o qual não se exige douta profecia está nas religiões. Algumas modificam o cristianismo ao seu bel-prazer e conveniência. A boa nova para arrebanhar seguidores reside no apelo musical. A conversão está no tom. Jesus Cristo é fulanizado em forró, axé, lambada, brega, carimbó, swing e pagode. Em breve, em vez de MPB, surgirá a MPR (Música Popular Religiosa). Segundo os ruidosos desse mundo nada mais espiritual, após a palavra, que dançar um relabucho na igreja. Dizem eles que a unção é contagiante. Não precisa ser profeta para antever que essas religiões tendem a fazer desaparecer o Cristianismo. Não é por aí o caminho. Estão profanando o nome de Deus.

(*) Escritor.




O segundo primeiro retrato do Rio Grande do Norte

18/06/2019


Por Gustavo Sobral

O retrato da Fortaleza dos Reis Magos por Frans Post, século XVII, período holandês no Brasil, é considerado o primeiro conhecido, sabido e propagado do Rio Grande do Norte.

Acompanhando o conde Mauricio de Nassau, Post veio à fortaleza, provavelmente lá se hospedou, e traçou a cena que o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte reproduziu na capa da sua revista 97. Uma cópia, pois o original encontra-se no Louvre, em Paris. Mas não é a único.


Em visitas aos museus e instituições culturais no Recife, conversas e leituras sobre o período holandês, nas últimas semanas, revelou-se uma imagem esquecida, pouco conhecida por nós, que merece ser lembrada, porque pode ser considerada uma segunda reprodução de época sobre o Rio Grande do Norte: um outro retrato da fortaleza, também de autoria de um pintor holandês, o Gillis Peeters.


Há suspeitas que ou ele, ou um irmão, também pintor, aqui esteve, como Post, à serviço de Nassau. Informação até hoje não confirmada.


O que se sabe é que representações do Brasil holandês começaram a aparecer com a sua assinatura e a assinatura do irmão, o também pintor, Bonaventura (1614-1652).


 Dentre elas, uma de autoria de Gillis Peeters, em óleo sobre tela, de 89,5 x 130,5 cm, datada entre 1637 e 1650, designada “soi disant Forte dos Reis Magos”, e que se encontra mais perto do que imaginamos, no Palácio dos Bandeirantes, São Paulo.


Gillis Peeters nasceu e morreu jovem na Antuérpia (1612-1653), era pintor, e de uma família de artistas, e sua produção foi tímida. Restam, hoje, poucas obras suas em paradeiros identificados.


O Instituto Histórico e Geográfico local, por seu diretor de Biblioteca, Arquivo e Museu, André Felipe Pignataro Furtado de Mendonça e Menezes, entrou em contato com o Acervo Artístico Cultural do Palácio dos Bandeirantes para resgatar esta imagem que agora se apresenta e que para nós é tão cara, e tão antiga, quanto o Post que veneramos.

Para ler esse e outros escritos acesse www.gustavosobral.com.br

18/06/2019


A legitimidade das decisões judiciais (IV)

No artigo da semana passada, prometi encerrar esta minha série de artigos sobre a legitimidade das decisões judiciais tratando de dois pontos: a necessidade de que realmente fundamentemos as nossas decisões nas leis e na Constituição do país – e não naquilo que é a nossa convicção ou no que são os nossos pré-conceitos – e a questão final da aceitação popular propriamente dita das decisões judiciais.
Claro que não defendo a ideia, inspirada na lição de Montesquieu (1689-1755), de que o juiz não deve ser outra coisa senão a “boca que pronuncia as palavras da lei”. Isso seria a conduta de um mau juiz, não correspondendo aos fins do direito. E até acredito que uma neutralidade desse tipo seria mais aparente que real.
Na verdade – e isso já nos mostrou a turma do “realismo jurídico americano”, sobretudo Karl Llewellyn (1893-1962) e Jerome Frank (1889-1957) –, a decisão judicial é muito mais do que o resultado da simples aplicação de uma norma aos fatos do caso. Muito mais do que um silogismo, em que a premissa maior é a lei/norma, a menor é o fato e o corolário é a sentença. Primeiramente, a própria determinação, pelo juiz, de quais são e como são os fatos do caso acrescenta inúmeras variáveis a sua decisão final, assim como a interpretação da norma é algo muito mais complexo que uma simples releitura do seu texto, seguida de um processo analítico de subsunção. Além disso, os juízes decidem baseados numa variedade de fundamentos e apenas alguns deles são conscientes e analíticos. Alguns “fundamentos” da decisão judicial, que atuam previamente aos fundamentos conscientes e analíticos, são mais complexos e menos óbvios, extremamente influenciados pelos pré-conceitos do julgador.
Se isso parece fato – refiro-me ao que está por detrás do aparente silogismo –, o erro está em não se ter na lei ou nos precedentes, às vezes, nem minimamente, o correto freio/balizamento para a decisão judicial. O direito passa a ser simplesmente o que juízes e tribunais, individual e erraticamente, declaram e decidem.
Para suavizar essa dependência peculiar do juiz de si mesmo e de tudo o que compõe seu horizonte interpretativo pessoal, mecanismos e padrões de comportamento devem ser sempre pensados, criados e fomentados. Exigir o respeito aos precedentes. Dar maior dignidade à lei, tão amesquinhada nos nossos dias, é mais que fundamental.
Tenho até pensado, a partir de um texto que li faz muitos anos (“Uso do precedente no Código Civil da Luisiana”, de James L. Dennis, publicado na Revista de Direito Público – RDP, no ano de 1997), numa categorização das decisões judiciais levando em consideração a sua proximidade com a legislação (constitucional e infraconstitucional). Quanto maior a sua proximidade da lei, melhor. Se a decisão pode ser fundamentada estritamente numa norma ou dispositivo específico da legislação de regência, a isso deve-se dar preferência. Em segundo lugar, deve-se dar preferência a uma decisão baseada em outros dispositivos da lei que rege a matéria decidida (seja uma lei específica, seja um código). Em terceiro lugar, deve-se preferir a decisão que tenha fundamento em uma norma legal do sistema jurídico do país. E, em quarto lugar, somente na ausência de norma legal aplicável, é que se deve dar uma fundamentação principiológica, mais independente do direito legislado do país. Não tenho dúvida de que, quanto mais uma decisão judicial estiver constrita a uma norma legal específica, mais ela se coadunará com as diretrizes (ou vontade) do legislador. E, apesar de não ter ainda definido completamente essa minha categorização (estou pensando, ainda), tenho certeza de que o juiz brasileiro, como “rulemaker” provisório – e não como um igual ao legislador/“lawmaker” –, hoje mais do que nunca, deve ser incentivado a decidir em conformidade, o máximo possível, com a vontade ou diretrizes expressas do legislador (constitucional e infraconstitucional).
Definida essa premissa – de que as decisões judiciais devem se basear, no máximo grau possível, nas leis e na Constituição do país –, chego à questão da aceitação popular de tais decisões.
Não desconheço que a legitimidade das decisões judiciais está em alto grau relacionada à aceitação delas pela opinião pública. Há até quem simplesmente identifique uma coisa com a outra. Também já defendi aqui que a sociedade como um todo – além das partes, dos seus advogados e dos demais atores envolvidos na lide específica – é uma das destinatárias das motivações das decisões judiciais, podendo ela assim verificar se as decisões do Poder Judiciário são pautadas pelo direito ou se são fruto de arbítrio dos julgadores. E também reconheço que as decisões judiciais que ofendem o senso comum acabam, a longo prazo, não sobrevivendo ao tempo e à crítica geral.
Entretanto, se “a autoridade da Justiça é moral, sustenta-se pela moralidade das suas decisões”, como queria o nosso Rui Barbosa (1849-1923), se a “majestade dos tribunais assenta na estima pública”, como disse o mesmo Rui, penso que essa moralidade e essa estima têm de vir naturalmente, com o tempo e com o exemplo, e não como um fim em si mesmo.
Peguemos o exemplo da Suprema Corte dos Estados Unidos da América, sempre bem-vindo. Desde o caso Marbury v. Madison, de 1803, já citado aqui, a U.S. Supreme Court tem conquistado e consolidado o reconhecimento de suas decisões não só pelos demais Poderes da Federação, mas, sobretudo, pelo povo americano, que a vê como o derradeiro baluarte em defesa dos seus direitos fundamentais. Mas isso tem sido progressivamente. E naturalmente.
Por fim, essas observações nos trazem de volta à necessária complementaridade entre o Estado de Direito e a democracia. Se a democracia é o governo da maioria, o Estado de Direito consagra a supremacia da Constituição e das leis do país e o respeito aos direitos fundamentais. A regra da maioria ou da democracia só se legitima se respeitados, na forma da lei e da Constituição, mesmo em desfavor da turba, os direitos de todos, inclusive os das minorias.
Reitero: não se deve simplesmente decidir em conformidade com a opinião pública. Nem muito menos manipulá-la! Pelo contrário, a maior legitimidade das decisões judiciais virá naturalmente se houver a obediência a determinados valores (estabilidade, previsibilidade, igualdade e celeridade), o respeito a uma teoria de precedentes vinculantes e com a expressa fundamentação destas decisões na Constituição e nas leis do país, fornecendo-nos, assim, uma Justiça verdadeiramente legitima e consensual.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

17/06/2019

AGENDE-SE




FUTEBOL FILOSÓFICO – Berilo de Castro

O futebol, o esporte mais popular do mundo, tem um acervo amplo de histórias que envolvem os seus protagonistas maiores: jogadores, treinadores, dirigentes de clubes, jornalistas e cronistas esportivos.
Histórias e passagens que marcaram muito bem seus personagens, sejam no campo de ação ou quando concedidas em programas de televisão e ou ainda, em crônicas e comentários esportivos.
Vejamos:
O goleiro Manga (Botafogo, Internacional de Porto Alegre e Seleção Brasileira ), em seu novo ofício de comentarista esportivo da Rádio Tupi, é perguntado:
       – Manga, como você está vendo o jogo?
       – Com os olhos, com os olhos!
Na Suécia, Copa do Mundo de 1958, o dentista da Seleção, Mário Trigo, abraçou o Rei pela cintura pedindo que o soberano   concordasse: “Diga, seu king, já viu time mais porreta?”.
Do alto da cabine da Rádio Tupi, no Maracanã, Ari Barroso viu um grupo que discutia muito e pediu a seu repórter de campo para checar:
       – Alô, alô, Isaac, o que houve aí?
       – Aqui só se “houve” a Rádio Tupi.
De Neném Prancha (Filósofo do futebol ): Quem se desloca recebe, quem pede tem preferência.
Contra time pequeno, bola na bunda é  pênalti.
A bola é de couro, o couro vem da vaca, a vaca gosta de grama, então, joga rasteiro, meu filho!
Se macumba ganhasse jogo, o campeonato baiano terminava sempre empatado.
Se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária não perdia um.
Futebol moderno, meu filho, é que nem pelada. Todo mundo corre muito, mas não sabe pra onde.
Joga a bola pra cima, enquanto ela estiver no alto não há perigo de gol.
Goleiro tem que dormir com a bola.
Se for casado… com as duas!
O futebol é simples. Difícil é jogar bonito.
De Dadá Maravilha (centro avante do Atlético Mineiro): Não venha com problemática que tenho solucionática.   

De Nelson Rodrigues (cronista esportivo): Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola. O povo toma pileques de ilusão com futebol e carnaval. São essas suas duas fontes de sonho. A bola de futebol acompanha o craque, ela tem alma de cadela.
Do poeta Carlos Drummond de Andrade: No futebol, matar a bola é um ato de amor. Brincar com a bola é descobrir a harmonia e o equilíbrio do universo.
De Armando Nogueira (Jornalista e cronista esportivo): Tu em campo parecia tantos e, no entanto, que encanto, era um só: Nilton Santos.
Vi Pelé, tão perfeito que, se não tivesse nascido gente, teria sido uma bola.
Vi Garrincha, para quem a superfície de um lenço era um enorme latifúndio.
Do craque Didi, do Botafogo: Treino é treino. Jogo é jogo.

De Stanislaw Ponte Preta (Jornalista): No futebol, a cabeça é o terceiro pé.
De José Djalma (Tenente), treinador do Alecrim Futebol Clube: No  futebol, o adversário é como um pires de papa, devemos destrui-lo avançando  pela beiradas.                                      
De Geleia, misto de alfaiate e treinador do Alecrim Futebol Clube: O futebol é como na costura, precisamos chulear muito para ganhar o jogo.
De Maurílio José de Souza (Velha), técnico do América F.C.:  Futebol é pra cabra macho, vamos entrar em campo com onze Lampiões.
De Coqueiro (Técnico de Clube Atlético Potiguar – CAP): Meu time vai pra guerra, pra isso, tem que está muito       bem armado. Tome “balas” meninos”!


Berilo de Castro – Médico e Escritor –  berilodecastro@hotmail.com.br
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

14/06/2019

BOM DIA JL – Berilo de Castro


BOM DIA JL –
Resido no bairro do Tirol há mais de vinte anos. Posso me considerar um beneficiado pela boas condições de infraestrutura que o bairro oferece e por ainda poder visualizar saudosamente parte do centenário Estádio Juvenal Lamartine (JL), lamentando profundamente a destruição brutal e sicária  da sua fachada original, o seu símbolo maior.
Local super privilegiado que me contenta e me contempla no despertar das manhãs com um saudável bom dia para o histórico Estádio Juvenal Lamartine, mais precisamente para o seu campo de ação, berço e jardim dos meus primeiros passos na minha curta trajetória futebolística.
Na década de 1950, ainda criança, fui seu contumaz frequentador. Não perdia um só treino, nem que fosse do Atlético, de João Machado. Os jogos oficiais eram assistidos, ora de cima do Morro do Estrondo, saboreando as frutas silvestres, a mais procurada (camboin ou cambuí) encontrada nas trilhas fechadas dos matagais; ou, então, bem acomodado nos galhos das mangueiras do sítio das freiras. Tinha o privilégio da entrada livre pela casa do soldado Manoel, o ‘brabo’ e violento zelador do sítio, compadre do meu pai.
Saborear com o dinheiro da entrada ( quando conseguia), o cheiroso e super gostoso cachorro-quente, acompanhado de suco multicolorido (de preferência nas essências vermelha e branca) com raspas de gelo de barra. Momento insuperável e inesquecível.
Lembro da carranca e da seriedade de seu Gois, na gerência da catraca de entrada; de seu Báia,—o engraxador-mor das bolas pesadas e marrons, reusadas com muita frequência nos jogos.
Presenciei muitos clássicos entre ABC F.C. e o América F.C.; acompanhei a fase de ouro da equipe do Riachuelo, quando cedeu a metade do seu elenco para compor a bela seleção do Estado, no ano de 1959; Vi atuar e ficar deslumbrado com jogadores super admiráveis, como o narigudo centroavante Delgado do ABC, oriundo do futebol da Paraiba; Jorginho, o ídolo inconteste do time mais querido; Saquinho, Juarez Canuto e Cocó, no início de carreia, Nei Andrade, Mauro, dois grandes laterais esquerdos; Edmilson Piromba, Pancinha; Pádua, elegante centro médio, Ivo, clássico meia esquerda, ambos do Riachuelo; dos primeiros  passos do jovem Marinho Chagas, da triunfal chegada de Alberi no ABC; da bem armada seleção de 1959, com Pedrinho 40 no comando, campeã do Nordeste, nos embates fantásticos com a bela seleção carioca, liderada por Pinga (Vasco) e Décio Esteves, do Bangu.
Presenciei a atuação dos dois maiores jogadores de futebol do Brasil: Pelé, com uma exibição de gala diante do ABC, e Garrincha, vestindo a camisa 7 do time Periquito, diante do Sport do Recife, infelizmente muito longe do Mané do bons tempos, já na sua trajetória final, derrotado pelo vício do álcool.
Não poderia esquecer do meu momento maior e consagrador no JL; integrando a seleção de futebol do Estado no ano de 1962; o bicampeonato pela equipe do Alecrim F.C. 1963/1964 e, em 1967, com o título da cidade vestindo a camisa do América F.C.,quando encerrei minha breve passagem pelo futebol potiguar.
Obrigado, meu  histórico e centenário JL.
Continuarei lhe contemplando. Bom dia!


Berilo de Castro – Médico e Escritor –  berilodecastro@hotmail.com.br
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

13/06/2019




A RESSURREIÇÃO DO GALO

Valério Mesquita*
Mesquita.valeri@gmail.com

Desde a bíblia quando Pedro negou três vezes o Cristo que o galo é símbolo, é sinal, é canto. Galo também é passarinho de campina, é peixe: galo do alto, galo do mar, enfim, é pastorador de noites indormidas e anunciador de auroras.
Em Natal ele identifica a cidade, no folclore, nos folguedos populares e do alto da Igreja Santo Antônio desperta e chama o povo a oração. Além de tudo isso, durante quinze anos em Natal o “Galo” foi um jornal de cultura. O seu canto alto e sonoro ultrapassou os limites do Rio Grande do Norte para levar a mensagem da nossa literatura aos quadrantes do país. Tornou-se conhecido e respeitado. Hoje, chove perguntas no terreiro potiguar: cadê o “Galo”? Por que emudeceu?
O jornal foi criado e mantido ao longo do tempo pela Fundação José Augusto, à época de Woden Madruga no governo Geraldo Melo. Politicamente isso não tem nada a ver. Na verdade, criou-se um informativo cultural mensal, apolítico, vibrante, que divulgava a poesia, a prosa, as idéias e correntes de pensamento dos autores norte-rio-grandenses sem “igrejinhas”, “chiqueiros”, preconceitos ou elitismo. O “Galo” não era um jornal de governo e muito menos de partidos. Era um veículo independente nascido para ficar, para vencer, porque a cultura continua a ser a única atividade humana que haverá de permanecer quando tudo o mais passar. A cultura não tem preferências políticas ou eleitorais. O “Galo” foi o intérprete honesto e seguro da intelectualidade estadual e editado a custo praticamente zero, já que estávamos na estação ululista e matemática dos zeros.
No momento em que o meu amigo e escritor Crispiniano Neto assumiu o comando da Fundação José Augusto, ouso pedir que ressuscite  o “Galo”. Mesmo que outros planos editorias integrem o seu voo reinaugural  na FJA, faça ressurgir o “Galo” como se fosse o primo canto, com a sua marca registrada, com o seu selo, o seu timbre oestano de menino forte, labareda da chama votiva de Mossoró. O voo desse jornal não é de um galináceo. É de condor, sobranceiro, por cima das serras de Martins, Patu, do Alto ao médio Oeste e sobre as dunas do litoral, porque a sua penugem é tecida das cores do arco-íris das cabeças pensantes do Rio Grande do Norte. O meu aceno é honesto, sincero e não tem o condão de interferir nos propósitos e projetos do novo dirigente da política cultural do Rio Grande do Norte.
É apenas, a reflexão de um calejado escriba, ex-presidente da FJA, que pertenceu ao Conselho de Cultura e integra a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras e o Instituto Histórico do Rio Grande do Norte. Faço o meu apelo com o objetivo de contribuir. É uma sugestão, apenas. E acredito que se ouvisse o Conselho de Cultura, a Academia e os intelectuais do Estado o “Galo” cantará tão livre e libertário o quanto cantou e lutou o seu partido na noite negra do regime autoritário.

(*) Escritor


11/06/2019


A legitimidade das decisões judiciais (III)
Como eu seguidamente tenho dito aqui, o grau de legitimidade de uma decisão judicial depende de muitos fatores. Já falei do recrutamento dos juízes, da composição dos tribunais, da imparcialidade e do renome do juiz prolator da decisão, da fundamentação da decisão em si e da sua acessibilidade, assim como da aceitação dessas decisões pelos demais Poderes do Estado.
Hoje eu gostaria de continuar esta série de artigos tratando de mais algumas coisitas que acho fundamentais em prol da legitimidade das decisões judiciais.
Antes de mais nada, penso que devemos exigir da atividade jurisdicional – e, por conseguinte, do seu principal produto, as decisões judiciais – o respeito a determinados valores. Cito aqui, de logo, os seguintes: estabilidade, previsibilidade, celeridade e igualdade.
Um direito estável é salutar para qualquer país. A instabilidade, com regras de direito constantemente reformuladas e aplicadas de maneira inconsistente, prejudica muito a legitimidade de um sistema jurídico. E, infelizmente, sofre o nosso sistema, num grau altíssimo, do problema da instabilidade. No plano jurisprudencial, basta lembrar que, no Brasil, a sorte dos litigantes fica muito ao sabor das frequentes mudanças das composições dos tribunais e das mudanças de entendimento decorrentes disso. Para não falar das meras idiossincrasias do juiz do caso.
Um segundo valor que desejo enfatizar aqui, interligado à estabilidade, é a previsibilidade ou a certeza do direito. Um direito estável estabelece a pretensão de que é uma verdade válida não apenas para hoje, mas também – e aí entra a previsibilidade – para o futuro, em todos os casos iguais ou parecidos. Disse certa vez Eugen Ehrlich (1862-1922), um dos fundadores da jurisprudência sociológica, em “Fundamentos da sociologia do direito” (texto constante do livro “Os grandes filósofos do direito”, publicado pela editora Martins Fontes em 2002), em favor da previsibilidade: “há uma grande necessidade social de normas estáveis, o que torna possível, em certa medida, prever e predizer as decisões e, desse modo, colocar um homem em condições de tomar as providências necessárias de acordo com isso”.
Um outro valor, não menos importante, é a celeridade na condução dos processos e na apresentação do seu produto final, a decisão judicial transitada em julgado. Não haverá o devido acesso à justiça se a prestação jurisdicional é dada tardiamente. E isso, de tão óbvio, nos soa até um clichê. Mas a busca da celeridade não é um interesse apenas do jurisdicionado. É também em prol da própria legitimidade das decisões proferidas pela Justiça que o processo deve encerrar-se no menor lapso de tempo possível. E esse é um objetivo que deve ser perseguido pelo Poder Judiciário diuturnamente com a adoção dos mais variados institutos, mecanismos e critérios que lhe poupem tempo e energia na solução dos seus inúmeros casos.
Por fim, quanto a esses valores, quero ressaltar aqui a questão da igualdade, que alguém já chamou de o “fundamento último” da justiça. O princípio da igualdade perante a lei – proclamado em termos jurídicos na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), art. VII – vem sendo consagrado, como um verdadeiro dogma político e jurídico, nas mais diversas constituições, dos mais diversos países, como é o caso da Constituição brasileira de 1988. Mas é preciso ter em mente que o princípio da igualdade perante a lei, até por uma questão de psicologia social, não pode ficar apenas no plano normativo. Dar soluções diferentes a situações iguais ou parecidas não pareceria direito, mas sim pura arbitrariedade. O valor igualdade, portanto, deve ter lugar de destaque na solução dos casos concretos na vida em sociedade. Afinal, como José Alberto dos Reis (1875-1955) certa vez indagou (apud Roberto Rosas e Paulo Cezar Aragão, em “Comentários do Código de Processo Civil”, editora Revista dos Tribunais): “que importa a lei ser igual para todos, se for aplicada de modo diferente a casos análogos?”. A desigualdade na aplicação da lei, podem ter certeza, fere de morte a legitimidade da atividade jurisdicional.
Bom, eu sempre digo que não conheço uma regra de ouro para a aplicação do direito. Mas, se quisermos fomentar esses quatro valores (estabilidade, previsibilidade, celeridade e igualdade), em prol de uma maior legitimidade das decisões judiciais, um excelente caminho é realmente adotarmos e respeitarmos uma doutrina geral de precedentes vinculantes. Faria muito bem, asseguro. Mas isso – a doutrina dos precedentes – é um outro (e longo) assunto.
Por enquanto, já finalizando, apenas introduzo, ainda na temática da legitimidade das decisões judiciais, as questões que vou abordar no próximo artigo (o último desta série, prometo): a necessidade de que realmente fundamentemos as nossas decisões judiciais nas leis e na Constituição do país (e não naquilo que é a nossa convicção ou no que são os nossos pré-conceitos) e, claro, a questão final (e deveras problemática) da aceitação popular propriamente dita.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

05/06/2019



MACAÍBA: APELIDOS


Valério Mesquita*


01) Joaquim de Juvêncio foi policial militar da reserva. E como tal serviu em quase toda a sua vida no destacamento da Polícia de Macaíba, onde residiu. Como atleta de futebol era o ponta de lança Quincas que corria feito bala pela esquerda. Atuou pelo Cruzeiro, Humaitá e Rio Branco, sempre na mesma posição tática que lhe valeu o apelido de Sapo de Rabo, porque quando corria empinava o bumbum. Joaquim foi o terror da garotada que jogava “pelada” no “campo da prefeitura”. Naquele tempo, soldado usava apito e, nos primeiros sopros, a turma colocava Joaquim no “quadrado” para não tomar a bola. Mas, como soldado, Quincas nos legou um fato pitoresco quando, nos idos de cinquenta, uma patrulha do Exército tomou de assalto a Delegacia de Macaíba para liberar três recrutas e prendeu os PMs no jipão verde-oliva. Após muita confusão e com a chegada do chefe político e deputado Alfredo Mesquita (o delegado se escondera no quintal de Né Macena) para conferenciar com o capitão e líder da operação, os soldados da polícia foram desembarcados logo do caminhão. Mas os recrutas queriam levar um de refém para Natal. Com muito esforço, na carroceria, Joaquim esgueirou-se, amedrontado, entre os soldados de Caxias e indagou aflito: “E eu, Seu Mesquita?”. “Desça. O que é que você ainda está fazendo aí?”.
02) Um personagem de apelido misterioso e bastante popular em Macaíba foi o motorista Manoel “Dedo Melado”, irmão de José Distinto, outra figura singular que já descrevi anteriormente. Manoel pontificou em Macaíba nas décadas de 40, 50 e 60, até ir residir em Natal. Mas o seu apelido até hoje é um mistério. Por que “Dedo Melado”? Que história esquisita marcou um dos dedos da mão de Manoel e que material produziu o mau cheiro? Ao que me consta, ele não se sentia incomodado por assim ser chamado. Talvez, de tão repetido o apelido, tenha se resignado. E os personagens misteriosos são fascinantes.
03) Outro apelido interessante emoldurava o perfil de um velho soldado PM que conheci, alcunhado de “Bico Doce”. Servia no povoado de Mangabeira. Os intérpretes da zoologia macaibense, após exaustivas pesquisas, deduziram que “Bico Doce” gostava de um “ganho extra”, daí o carinhoso epíteto. Um “cientista” mais ousado chegou a descrever uma cena supostamente vivida por “Bico Doce” quando conduzia para o xadrez um individuo: “”Teje” preso!”. “Pegue cinco”, disse-lhe o detido. “Tá solto!”, respondeu o doce bico do soldado. Aí pegou a fama.
04) A longevidade atlética e futebolística foi o traço dominante da vida desse paraibano de Cuité, que chegou a Macaíba menino, em 1920. Funileiro, residente à rua Rodolfo Maranhão, negociava os produtos do seu fabrico artesanal na feira livre da cidade. Mas, o palco maior de sua vida foram os campos de futebol, nos quais exerceu a sua arte indômita: o futebol. Praticou esportes além dos sessenta anos, defendendo as camisas do Cruzeiro FC, Rio Branco, Olímpio FC e Leão de Ouro (Igreja Nova), nos quais se inseriu como um dos fundadores. Diria que Zé Caíco se constituiu na figura emblemática do futebol de Macaíba porque atravessou gerações e viveu as grandes fases da evolução do próprio esporte. Quando jovem era muito magro e possuía um “fôlego de peixe”. Como chegou a Macaíba aos cinco anos de idade fugindo das águas que invadira Cuité (PB), na cidade de Auta de Souza se fartou com as cheias do rio Jundiaí. E como atleta nadador pulava de cima de um poste sobre a ponte para somente recuperar fôlego no velho cais, distante a trezentos metros, levado pela correnteza. Daí o apelido de Caíco, uma espécie comum de peixe.

(*) Escritor.

03/06/2019


A legitimidade das decisões judiciais (II)
Como eu disse no artigo da semana passada, o grau de convencimento – leia-se, aqui, de legitimidade – de uma decisão judicial depende, podem ter certeza, de muitos fatores. À forma de recrutamento dos juízes, à composição dos tribunais, à imparcialidade e ao renome do juiz da decisão, já tratados aqui, some-se a excelência da motivação em si, sua acessibilidade, a aceitação pelos demais poderes, o respeito a determinados valores (estabilidade, previsibilidade, celeridade, igualdade), sua expressa fundamentação na Constituição e nas leis do país, desaguando tudo isso na própria aceitação popular.
Analisaremos mais alguns desses fatores no nosso papo de hoje.
Sobre a fundamentação – e talvez tivesse sido melhor dizer aqui “motivação” – das decisões judiciais, a nossa Constituição Federal, no seu art. 93, inciso IX, expressamente dispõe que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)”. E o nosso Código de Processo Civil, como não poderia deixar de ser, no seu art. 11, caput, repetindo a redação da CF, seguiu a mesma trilha. Na verdade, o CPC foi até mais longe, pois, especialmente no seu art. 489, § 1º, prevê hipóteses em que a exigência constitucional e legal da fundamentação das decisões restará desatendida.
Lembremos que o juiz motiva sua decisão sem interesse algum na causa – pelo menos era para ser assim –, apenas imparcialmente elencando, nas palavras de Víctor Gabriel Rodríguez (em “Argumentação jurídica: técnicas de persuasão e lógica informal”, editora Martins Fontes, 2005), “elementos que devem convencer as partes de que seu raciocínio é o mais correto, é o decorrente da lei, e de que seu livre convencimento não provém da arbitrariedade, mas sim de uma boa avaliação de todas as provas e de todo o ordenamento legal”.
Se todas as decisões judiciais devem ser fundamentadas ou motivadas, assim o é primeiramente como elemento essencial do processo, mas também como condição de legitimidade da decisão propriamente dita e da atividade jurisdicional como um todo. Diante de uma decisão motivada e transparente, qualquer jurisdicionado e a sociedade como um todo – além das partes, dos seus advogados e dos demais atores envolvidos na lide específica – têm condições mínimas de aferir a imparcialidade do Poder Judiciário e se as decisões deste são pautadas pelo direito ou se são frutos de arbítrio dos julgadores. Uma motivação clara, transparente e acessível – aos profissionais do direito e, na medida do possível, abolindo tecnicismos desnecessários, aos leigos também – é o que minimamente se pede.
E se falei de acessibilidade às decisões judiciais é porque considero a transparência como um dos mais importantes valores do direito. Ela é exigida pela famosa “rule of law” e em qualquer estado democrático de direito, como instrumento de equilíbrio nas relações entre os jurisdicionados e entre estes e o Estado. O Direito – e falo aqui tanto do direito legislado como do direito “judicial” – deve ser devidamente publicizado e o acesso à informação facilmente garantido, proporcionando o controle da atividade jurídica estatal tanto por instituições oficiais (a exemplo do Ministério Público, dos Tribunais de Contas, das Corregedorias, das Ouvidorias etc) como pelo cidadão comum.
Aqui eu acho que mandamos bem. Apesar da grande quantidade de decisões judicias proferidas no Brasil, um sofisticado sistema oficial de decisões (confiável e de fácil acesso) foi e está sendo progressivamente desenvolvido com a participação decisiva dos tribunais e demais órgãos jurisdicionais brasileiros. Os tribunais brasileiros têm pessoal especializado para revisar, consolidar e publicizar suas decisões, relatando todos os aspectos necessários das mesmas. Embora ocorram ocasionalmente pequenas falhas, os tribunais alcançaram um excelente know-how para esse tipo de publicização com o suporte de ferramentas digitais e on-line que, atualmente, são bastante confiáveis. Os profissionais do direito no Brasil ou as próprias partes consultam esses repertórios oficiais – de tribunais específicos ou do tipo “Jurisprudência Unificada” do Conselho da Justiça Federal –, motivados pelo fato de que eles são atualizados e sua estrutura é muito racional, sem mencionar que esses relatórios jurídicos estão mesmo facilmente disponíveis na rede mundial de computadores, o que torna a busca sempre muito mais fácil. O acesso on-line oficial e gratuito brasileiro às decisões judicias deve, de fato, ser elogiado.
E não vou nem falar aqui das transmissões dos julgamentos do nosso Supremo Tribunal Federal – e, de resto, frequentemente, de outros tribunais do país –, ao vivo, pela TV Justiça. Temos aqui uma superexposição. Talvez mais do que o devido. Tenho minhas críticas. Muitas. Começando pela vaidade, um pecado que se acha ao nosso lado. Daria alguns artigos.
Por fim, encerro o texto de hoje tratando de um ponto que acho fundamental na temática: a aceitação das decisões judiciais pelos demais Poderes do Estado. O Executivo e o Legislativo, deixo claro, mesmo correndo o risco de ser redundante. Peguemos o exemplo da Suprema Corte dos Estados Unidos da América. Desde o famoso caso Marbury v. Madison 5 US 137, 1 Cranch 137, 2 L.Ed. 60 (1803), no qual, segundo convencionado, está a origem do “judicial review of the constitutionality of the legislation” (que chamamos de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis – modelo difuso), a U.S. Supreme Court tem conquistado e consolidado, pregressivamente, o reconhecimento e a aceitação de suas decisões pelos demais Poderes daquela grande Federação. Desde o tempo de John Marshall (1755-1835) até os dias atuais, mesmo havendo, como é normal na história, alguns momentos de crise.
Espero que se dê – ou continue se dando – o mesmo no Brasil. Assustam-me muito algumas iniciativas em sentido contrário. Sobretudo vindo de onde estão vindo. Essas coisas às vezes a gente até sabe como começa, mas não sabe como termina.
Quanto à aceitação popular e outras coisitas mais, conversarmos no nosso encontro da semana que vem.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP