31/12/2021

LUZES QUE SE APAGAM Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com Apagaram-se as luzes dos natais de antigamente? A avenida Rio Branco era um corredor resplandecente do Baldo à Ribeira. Abraços, cantos e risos povoavam as calçadas: Boas Festas! Feliz Ano Novo! Era um planeta diferente. Foi pensando e revivendo os velhos natais que ressurgiu na memória o antigo comércio da avenida Rio Branco com suas lojas, magazines, armazéns que constituíam a força do capital da classe produtora potiguar. Era o chamado comerciante da cidade, inscrito na Associação Comercial do Rio Grande do Norte, movido a Banco do Brasil de Otávio Ribeiro Dantas, lá da avenida Duque de Caxias, na Ribeira. Da calçada do Cinema Rex, onde Luís de Barros tocava a cigarra mandando começar o filme, contemplei, olhar acima, olhar abaixo, o mundo desaparecido de estabelecimentos comerciais fundados por natalenses e hoje substituídos por lojas de Pernambuco, Paraíba e Ceará. De frente, onde me achava, me lembrei da Casa Costa que servia o mais saboroso sorvete; Omar Medeiros e Cia., Lojas Setas; os “estrangeiros”: o Novo Continente, CêBarros, Quatro e Quatrocentos e Lojas Paulistas; J. Resende e a Casa Régio dominavam o mercado de eletrodomésticos; Casa Hollywood e Casa Garcia além do Cine-Foto Jaecy que depois foi para a João Pessoa; a resistente e desfraldada Livraria Universitária, vizinhas a Casa Duas Américas e a Formosa Syria; a Casa Tic-Tac e a Casa Rubi sem esquecer a Nova Paris; quase de frente a Casa Rio que ainda sobrevive (Rio Center), em outros locais da cidade, pluralizada e redimensionada; Ótica Brasil, a Farmácia Barbosa e juntinho o bar Granada; a casa Letière, o Armazém Natal e antes do Banco do Brasil, a lembrança mais dolorosa do velho e trágico mercado público da cidade do Natal. Tudo sumiu. As vitrines desse tempo se apagaram e com elas um grupo de comerciantes que desapareceram, permanecendo, apenas, uma foto intacta suspensa no ar e as imagens dos natais de quarenta e cinquenta anos passados. Ao contemplar a Rio Branco sem luz e sem alma da festa natalina, resolvi homenageá-los. Natal não pode esquecer jamais os pastores da noite que fizeram feliz o Natal de tanta gente. Chegam-me alguns que a memória reteve: Fuad Salha, Zé Garcia, Chafic Abou Chacra, Reginaldo Teófilo, Habib Challita, Zé Resende, Walter Pereira, Quim-quim da Farmácia Barbosa, Nagib Assad Salha, seu José e Abess da Formosa Syria, Raimundo Chaves, Heider Mesquita, Jaecy Emerenciano Galvão e Nemésio Moquecho, Quincola (Scope) Luís de Barros, Nivaldo Feitoza Bonifácio, Alcides Araújo e uma lembrança terna da Rádio Trairi do major Theodorico Bezerra que funcionava no alto do Novo Continente. Relembro os locutores: Gutemberg Marinho, Edmilson Andrade e Vanildo Nunes, em nome dos quais homenageio a todos. A cidade de Natal deve um preito de reconhecimento a todos aqueles que diretamente, através do seu ofício, se conscientizaram do seu papel, se fortaleceram e daí surgiram a Federação do Comércio, o Sindicato do Comércio Varejista e o próprio CDL. Ninguém pode contestar o pioneirismo dessas conquistas aos comerciantes da avenida Rio Branco. É preciso reacender as luzes dessa avenida para a história passar. No Grande Ponto, o olhar triste e reminiscente. A procissão de relembranças das melhores figuras de Natal, espiritualizadas no eterno bate-papo, dia e noite, como se, para mim, ali, naquele instante, tudo tivesse se reencarnado. Olhei para o chão sagrado daqueles vultos e deu-me náuseas as calçadas sujas, encardidas pela desfiguração e os pés da modernidade. Mataram o Grande Ponto pletórico e no âmbito do seu quadrilátero, rasgaram a sua história em pedaços e foram transformados os seus habitantes. Daquelas calçadas, com sol matinal batido e quente desse verão sobe as narinas um odor de sebo bovino e inhaca pestilencial. Será que o IPTU não poderia lavar aquelas calçadas onde tanta gente boa pisou antigamente? Djalma Maranhão, Alvamar Furtado, Luís Tavares, José Augusto Varela, Antonio Soares Filho, Luiz Carlos Guimarães, Newton Navarro, Veríssimo de Melo, Ticiano Duarte, Américo de Oliveira Costa, Zé Areia, Gilberto Avelino e tantos outros mortos dignos de lavarmos os pés, sem precisar nem falar nos vivos? (*) Escritor

20/12/2021

Marcelo Alves Juristas balzaquianos Fiquem calmos: não vou relatar confidências de advogadas e advogados de mais de 30 anos. Embora adore essas fofocas (quem não gosta?), a conversa hoje é mais séria. Sou literal, digamos. Refiro-me aos profissionais do direito na obra de Honoré de Balzac (1799-1850). “A Comédia humana”, herdeira do “Code Napoléon”, é pródiga em juristas. Juristas de verdade, grandes nomes da França, alguns deles professores de Balzac na Faculdade de Direito de Paris, como Hyacinthe Blondeau (1784-1854), Louis-Barnabé Cotelle (1752-1827), Charles Toullier (1752-1835) e Raymond-Theodore Troplong (1795-1869) ou os famosos quatro “redatores” do Código, Jean-Étienne-Marie Portalis (1746-1807), François Denis Tronchet (1726-1806), Jacques de Maleville (1741-1824) e Bigot de Préameneu (1747-1825), que são citados ou aludidos pelo autor em seus romances. E juristas imaginados pelo autor. Peirre-François Mourier, em “Balzac, L’injustice de la loi” (Michalon Editeur, 1996), teria contado mais de 50 “homens da lei”, todos com lugares especiais dentro da Comédia. Já em “Imaginar la ley: El derecho en la literatura” (Editorial Jusbaires, 2015), os organizadores Antoine Garapon e Denis Salas lembram: “Ali encontramos figuras de sujeitos de direito como os herdeiros de Ursule Mirouët, o ausente em O coronel Chabert, a falência em César Birotteau. O espelho que essa obra apresenta nos remete aos esplendores dos novos status da sociedade burguesa, como às suas sombras. O romance balzaquiano desvela um mundo de interesses e de crimes. (…). É o mundo de Esplendores e Misérias das Cortesãs, que celebra a mitologia romântica dos fora da lei”. Por outro lado, Balzac muitas vezes abre “um espaço positivo para a lei”, como no procurador-geral Granville, que encarna a nobreza da profissão do direito. Balzac crê nas instituições. Para ele, o juiz é um centro da sociedade, esta cheia de contradições, é vero. E se temos o juiz Popinot de “A interdição”, “pleno de modéstia e grandeza, homem justo e humilhado”, também encontramos o “flexível Camusot”, o juiz de instrução “destinado a uma carreira brilhante”. São personagens tiradas ou postas – depende de olharmos pelo ângulo da inspiração ou da criação – de/em fiéis “cenas da vida jurídica” (inclusive citando decisões reais de cortes francesas). Desses personagens e cenas, tomemos o caso do juiz Popinot, de “A interdição” (1839), talvez o mais “investigado” dos juristas balzaquianos. “A interdição” é um texto seminal. Um romance curto e denso, em que o autor retrata as realidades do quotidiano e do foro. Várias de suas personagens são achadas em outros romances da Comédia, como de estilo no “mundo” de Balzac. A trama gira em torno da busca da Marquesa d’Espard para interditar o seu marido, de quem vive separada há anos. Seria o Marquês um louco pródigo, que impede uma mãe de ver os filhos e desperdiça a fortuna? Ou seria a Marquesa uma mulher inescrupulosa, disposta a qualquer coisa? É para decidir isso que são encarregados o “íntegro” juiz Popinot e o “flexível” juiz Camusot. E, sem crise de consciência, digo mais nada. Balzac teve o seu modelo de magistrado no juiz Popinot, que José Antônio Aguirre, em “Escritores y procesos: casos reales y ficcionales del proceso penal” (Ediciones Didot, 2012), poeticamente define como “a ficção de um juiz real”. O autor retratou “este magistrado como um homem de altíssimos valores, severo, equânime, fiel à sua função judicial e de uma decência inquebrantável”. Mas, embora possuidor de numerosas virtudes, o juiz Popinot tem também defeitos (quem não tem?). O principal, embora não venal, é a sua ingenuidade. E a intromissão desse defeito nas suas qualidades faz desse juiz “uma personagem real, verossímil e crível”. É verdade que Balzac se apropriou de muitas coisas do direito: instituições (casamento, herança, falência, crime etc.), linguagem, cenas/dramaticidade, personagens e por aí vai. Mas também nos deu muito de volta. Basta lembrar a sua contribuição para a preservação de uma história contada do direito, que procuramos inutilmente nos códigos, como lembrou Henri Lévy-Bruhl em “Sociologie du Droit” (PUF, 1981). Ou para a fixação de um vocabulário da nossa ciência. E há, claro, o exemplo do juiz Popinot. Assim, acredito ser “A comédia humana” um monumento da “ficção jurídica”, sem que dois séculos de mudanças prejudiquem a relevância das suas questões de direito. E parafraseio uma advertência constante de “Balzac, romancier du droit” (direção de Nicolas Dissaux, LexisNexis, 2012): “Todo jurista deveria ler Balzac”. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

18/12/2021

O RENASCIMENTO DE CUNHAÚ Valério Mesquita Mesquita.valerio@gmail.com Câmara Cascudo, em sua Acta Diurna publicada em "A República", em 13 de outubro de 1945, dizia: "Não há trecho de terra mais sagrado para nós. Foi o primeiro núcleo industrial da Capitania e a região mais revirada pela guerra e molhada de sangue. Ali viveram os filhos e descendentes do fundador da Cidade do Natal. Ali lutaram Felipe Camarão e Henrique Dias. Ali viveu na tranqüilidade André de Albuquerque. Lutas, festas, crimes, atrocidades, riquezas, alegrias, orgulhos, poderio, tudo passou como poeira ao vento solto. Restam as ruínas negras, guardando a lembrança sem pausa do martírio. Sem túmulo, rondam, no silêncio da noite tropical, as almas dos sacrificados. A Capela era o cemitério aristocrático dos Albuquerque Maranhão. E um altar inteiro, devocionário de religião instintiva, como os heróis que se dedicam ao Deus do Céu e ao Rei da Terra." Em 1985, a Capela de Cunhaú foi restaurada pela Fundação José Augusto com o apoio das Fundações Pró-Memória e Roberto Marinho. A tarde festiva do seu ressurgimento, foi a maior emoção que vivi ao longo dos cinco anos que passei na Fundação José Augusto. Ali há o convívio equilibrado entre o místico e o humano. Território livre da fantasia, Cunhaú é o grande palco onde melhor se revela a alma de uma época e os seus valores essenciais. Numa singular procissão de lembranças, hoje, os gestos, os passos, as silhuetas dos que povoaram o templo e as cercanias se eternizam. Cunhaú exerce sobre nós um poderoso fascínio, uma paixão obscura e recôndita, nunca aplacada nem satisfeita, a conduzir a imaginação em viagens lendárias e míticas, ao universo feudal dos Albuquerque Maranhão, dos fidalgos, dos colonos, dos escravos, dos religiosos, dos índios e dos invasores, como se tudo ainda estivesse suspenso no ar, como nos versos de Manoel Bandeira. A reflexão dessas paredes da Capela de Nossa Senhora das Candeias nos conduz a essa pátria dos sonhos, terra das ilusões, de almas taladas à ferro e a fogo, como se fora um desejado e atingível Paraíso Perdido. Enfim, evoco a Capela de Cunhaú, neste canto de página emergido do escuro nebuloso e mágico, engrandecida na reconstituição de arquitetos, engenheiros, pedreiros e serventes, todos historiadores manuais de sua magnitude esplendorosa. Hélio Galvão, à maneira proustiana, diz que o tempo perdido pode ser procurado. Talvez até recuperado. O poder da evocação pode fazer o milagre de repassar aos nossos olhos a paisagem que desapareceu, as pessoas que já não vivem ou refluir aos ouvidos a voz emudecida e trazer de novo à memória, aos pedaços, episódios, fatos, gestos, modos que não vimos nem participamos. A necessidade da restauração da Capela era um desejo acalentado há muito tempo. A decisão política culminou com a determinação do então presidente da SPHAN-Pró-Memória, Dr. Marcos Vinícius Villaça, através da visita à mesma conosco acompanhado, em princípio de 1985. Adotamos como critério a reincorporação dos elementos antigos constituintes da mesma, como a lápide, a pia de água benta, local do sino e finalmente a imagem de Nossa Senhora das Candeias, sua padroeira, com a finalidade de mantermos acesa, para gerações futuras, a chama que testemunha nosso passado histórico. Ver a Capela hoje é ouvir, é sentir. Por isso, leiamos Cascudo em 1949, pedindo a sua restauração: “O Forte dos Reis Magos e a Capela de Cunhaú tem sido constantes tão vivas e permanentes na minha atividade provinciana como os dois movimentos fisiológicos da respiração. A Capela de Cunhaú é o santuário do Rio Grande do Norte. Lugar de morte pelo ódio e em louvor da fidelidade à tríade antiga consagradora, a Deus, ao Rei e à Família.” Era a antevisão de Cascudo há 72 anos atrás. O apelo emocional depois atendido. A Fundação José Augusto, ao restaurar em 1985, aquele relicário,Es ressuscitou um desfile sonoro, a paisagem das almas, de sonhos, o chão dos túmulos que guarda os espíritos. Enfim, resgatou a memória histórica do Rio Grande do Norte. (*) Escritor

15/12/2021

O VELHO COQUEIRO TORTO Por anos e anos ofereci minha sombra, meus frutos e minha imagem que ajudava a embelezar a paisagem da praia da Pipa. Por anos e anos fui testemunha das constantes mudanças na areia da beira mar, que entre aterros e cavações, criava lindas imagens no lugar onde nasci. Por anos e anos protegi e defendi com meu forte tronco e minhas raízes bem fincadas no chão, a frente da casa onde cresci da força das vagas que rebentam com violência durante as grandes marés. Por anos e anos fui envelhecendo e naturalmente perdendo minha resistência, mas não a minha vitalidade, pois ainda continuei a oferecer sombra, frutos e a beleza de minha imagem. Um dia não consegui sustentar o peso de quem, por anos e anos, limpava minhas palhas secas, livrando-me dos fungos e insetos que me atacavam e me enfraquecia. Meus frutos, de tempos em tempos, precisavam ser colhidos, pois ao cair, podiam machucar alguém. Foi aí que tudo aconteceu. No dia 11 de dezembro de 2021, no fim da tarde, meu belo tronco, longo e torto, que a tantos encantou, cedeu ao peso de quem queria só me ajudar a continuar sadio, belo e viçoso. Quebrei e cai sobre a areia onde um dia fixei minhas primeiras raízes quando ainda era semente. Agora sou apenas um velho tronco apontando para o céu. Certamente vão me cortar e não restará nenhuma lembrança do que eu fui a não ser em fotos e filmagens. O meu irmão mais velho, que nasceu a poucos metros de mim, foi criminosamente morto. Por pura maldade, colocaram óleo diesel em seu tronco e logo ele foi definhando, as palhas foram secando até que um dia alguém chegou com um machado e o libertou daquela agonia. Prefiro que façam o mesmo comigo. Não quero ser uma lembrança triste. Prefiro que se lembre de mim como sempre fui belo e viçoso. Minha imagem estará gravada para sempre na memória dos que me apreciavam, nos milhares de fotografias, filmagens e na lembrança daqueles que me contemplava no amanhece do dia ou no cair da tarde onde minha silhueta contrastando com o por do sol, tantas vezes filmado pelo “PASTORADOR DE CREPÚSCULO". Minha imagem, que a tantos encantou, não pode simplesmente se resumir a um velho tronco sem vida apontando para o céu. Não chorem por mim. Eu estarei sempre presente na lembrança de todos vocês, nas fotos e filmagens que fizeram enquanto eu estava vivo e viçoso com minhas palhas balançando ao sabor do vento. Ormuz Barbalho Simonetti Jornalista, escritor, Presidente do Instituto Histórico e Geográfico o RN Morador da Praia da Pipa-RN - Canal no Youtube - "Praia da Pipa O pastorador de Crepúsculos"

07/11/2021

Acla Pedro Simões Neto está com André Felipe Pignataro e outras 33 pessoas . 32c0S dfe o83julhon d5he or2ed0u20 · O ESCRAVO DANIEL André Felipe Pignataro Furtado de Mendonça e Menezes Presidente da ACLA O Diário de Pernambuco, de 17.04.1875, noticiou a história do escravo Daniel, publicada, originalmente, pelo jornal Conservador, de Natal. Além do periódico pernambucano, diversos jornais do Brasil, como no Rio de Janeiro, Minas Gerais e Ceará, também replicaram essa notícia. Daniel é protagonista de uma bela história de coragem e de demonstração de amor ao próximo, mas com um final trágico, ocorrida em Ceará-Mirim. No dia 3 de abril de 1875, pelas duas horas da tarde, José Leão Soares da Câmara, morador no lugar Boa Vista, dirigiu-se até o lugar Capoeira Grande, próximo um do outro, onde morava seu cunhado Felippe Varella Santiago, com o fim de tirar-lhe a vida. Como não o encontrou, José Leão tentou matar a sua própria sogra, mãe de Felippe, de nome Margarida Ignacia do Amor Divino, senhora com mais de 60 anos, que também residia na mesma casa. Ao mesmo tempo em que gritava palavras ofensivas contra D. Margarida, José Leão preparava seu bacamarte (pequena arma de fogo, parecida com um garrucha). Engatilhou e mirou na sua sogra. Daniel, escravo da casa, e que tinha 25 anos, colocou-se na frente de sua senhora, para proteger-lhe a vida. O agressor, furioso que estava, atirou, ao que a bala atingiu a perna esquerda de Daniel, um pouco abaixo do joelho, causando-lhe um grave ferimento. Com o barulho do tiro, os outros escravos correram para casa, tendo conseguido tomar a arma de José Leão, no entanto, ele conseguiu escapar. Daniel foi acudido ali mesmo, dentro do que era possível. O subdelegado João Secundino Pacheco compareceu ao local do crime, tão logo ficou sabendo. Ao se dirigir à casa de José Leão, e lá o encontrando, o subdelegado efetuou sua prisão, recolhendo o criminoso à cadeia de Ceará-Mirim. José Leão Soares da Câmara, ao que parece, tinha um comportamento violento. Aliás, percebe-se, pela leitura dos jornais da época, que havia muita rixa dos senhores de engenho e fazendeiros, entre si, com crimes envolvendo escravos de outros senhores rivais. Um ano antes, José Leão foi preso, em Capoeira Grande (mesmo local onde morava Felippe Varella Santiago), pelo tenente Francisco César do Rego Barros, por tentativa de homicídio, do qual não se tem mais informações do que aquelas noticiadas pelo Diário de Pernambuco de 26.02.1874. Pois bem. Daniel foi conduzido para o Hospital de Caridade de Natal, onde chegou somente na noite do dia seguinte. Na manhã de 05 de abril, a equipe médica, como último recurso para salvar a sua vida, precisou amputar a perna esquerda. Ele resistiu bravamente enquanto pôde, tendo falecido à uma hora da tarde daquele mesmo dia. Em pleno período da escravidão, de poucos valores humanos, foi justamente o escravo Daniel que, com seu ato heroico, ao sacrificar sua vida em defesa de sua senhora, deu uma grande lição de superioridade de espírito, pois, certamente, nenhum dos moradores da casa em que servia se sacrificaria por ele

02/11/2021

OREMOS PELOS QUE SE FORAM Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes O dia 02 de novembro foi escolhido, no calendário religioso, como data de reverenciar os entes queridos que já retornaram para os Domínios do Criador. Recebeu a denominação de Dia de Finados, instituído inicialmente no século X, na abadia beneditina de Cluny, na França, pelo abade Odilo (ou Santo Odilon [962-1049], logo depois do Dia de Todos os Santos. Assim, com integral justiça, homenageio meus saudosos antepassados e, com maior reverência a minha sempre lembrada companheira de 71 anos de cumplicidade Dona THEREZINHA ROSSO GOMES, filha de Rocco Rosso e Rosina Louvisi e, na esfera espiritual, de Maria e José. Com esse carinho especial, renovo minha devoção à Senhora Mãe da humanidade, não tão reverenciada por algumas religiões, desprezando a realidade bíblica quando preconiza (João, 19 25-27): 25. Junto à Cruz de Jesus estavam Sua Mãe e a irmã de Sua Mãe, Maria mulher de Clopas, e Maria Madalena. 26. Ora Jesus, vendo ali a Sua Mãe, e que o Discípulo quem Ele amava estava presente, disse à Sua Mãe, eis aí o Teu filho. 27. Depois disse ao Discípulo: Eis aí Tua Mãe. E desde aquela hora o Discípulo a recebeu em sua casa. Esse procedimento é sagrado, divino e humano ao mesmo tempo, para fixar no tempo permanente o amor e reconhecimento pelos que já se foram e deixaram os frutos. A vida tem continuidade pelos que ficaram, é verdade, mas sem o mesmo brilho e conforto de antes. Nesse descortinar da realidade, busco o consolo na oração, única força capaz de aplacar a tristeza e a saudade. Vamos todos reverenciar nossos mortos, conscientes que eles estão perto de DEUS.

29/10/2021

O BAR SEM NOME Tomislav R. Femenick - Jornalista Existia em São Paulo, na Rua Araújo, perto da Rua Major Sertório e da Av. Ipiranga, no Centro Histórico da cidade, um barzinho pequenininho, chamado “NN” (abreviação da expressão inglesa No Name: Sem Nome). Não havia nada escrito em sua fachada. Simplesmente era uma porta larga, aberta. Começava a funcionar às dez horas da manhã e só fechava quando o último freguês ia embora. Josias (não estou certo do nome) era o dono e o único funcionário; bar-tender, garçom, faxineiro e pau para todas as obras. Era um bar de homens. Quase nunca havia mulheres. O ambiente era aconchegante. Sofás de couro, um defronte do outro, separavam suas seis mesas, o ar condicionado controlava a temperatura e um exaustor fazia o ar circular e retirava a fumaça dos cigarros, charutos e cachimbos. As paredes eram cobertas com lambris de madeira escura. Na parede, atrás do estreito e diminuto balcão, ficavam as garrafas de bebidas, sempre em número de três para cada tipo. Na parede do fundo havia um quadro da Rainha Elizabeth II, meio sorrindo, meio séria, com um selo dourado redondo, e um brasão com os dizeres: “By appointment to hm the queen” (por nomeação de Sua Majestade a Rainha). Perguntado sobre o quadro, ele desconversava e não dizia nada. O mais importante era que seu whisky era honesto e os queijos, seu único tira-gosto, eram de boa procedência. Durante a tarde, recebia executivos de bancos, das empresas de turismo e viagens, dos inúmeros escritórios situados na redondeza, principalmente dos Edifícios Itália e os que ainda existiam no Copan. O maior movimento era na hora do happy hour. Fui levado ao NN pelos meus amigos Flávio Pacheco e José Pedro Canovas, na época em que éramos auditores na Deloitte-Revisora. Tempos depois, já trabalhando no Banco Real, como Diretor Adjunto das empresas de seguro, recebi um telefonema de Antônio Sansão, Diretor Geral da organização (na verdade, ele era a segunda pessoa no comando do conglomerado financeiro dirigido por Aluysio Faria), pedindo para eu ir até sua sala, urgente, pois tínhamos um problema delicado para resolver. O problema: demitir (sabidamente por justa causa) um diretor das empresas de seguro do grupo, pessoa a quem eu era formalmente subordinado. O meu espanto foi autêntico. Sansão explicou-me: Primeiro, ele daria a entender que a saída não seria só do diretor demitido, que haveria outras dispensas e que eu poderia ser atingido. Segundo, porque, devido à natureza do demitido, ele poderia ter uma reação indesejável e criar um clima que poderia contagiar outros colaboradores. E, terceiro, ele soube que eu conhecia um lugar adequado para isso. Um barzinho na Rua Araújo, do qual ele soubera por “por ouvir dizer”. Chegamos ao NN por volta das três da tarde, conversamos e tomamos whisky honesto, com tira-gosto de queijos de boa procedência. A demissão aconteceu sem trauma e sem vexame. Saímos de lá perto do encerramento do expediente, pois ainda teríamos de dar ciência da solução do caso ao dr. Aluysio Faria. No outro dia, ao chegar à minha sala, encontrei uma caixa de isopor, com oito embalagem de sorvete de dois litros, sabor chocolate com menta, da La Basque (que também era do dr. Aluysio), e mais 20 barras de chocolate belga, da Godiva. Presentes de Sansão, meu chefe ad hoc, e de todos os que trabalhavam no grupo; menos o mandachuva, é claro. Passado um mês ou mais, voltei ao NN. Tão logo me viu, Josias veio ao meu encontro. Queria que eu lhe ajudasse a resolver um problema: – Lembra daquela última vez em que você esteve aqui? Aquele senhor que estava ao seu lado pagou a conta. Acredito que aquele outro, que estava à sua frente, não viu e pagou de novo; deixou o dinheiro em cima da mesa. O que eu faço? Tribuna do Norte. 27 out. 2021.
MACAÍBA: 144 ANOS DE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA Pesquisa e Texto de Valério Mesquita e Anderson Tavares Os núcleos populacionais mais antigos e conhecidos nas terras onde atualmente ergue-se a cidade de Macaíba foram o arraial e o engenho Potengi (Ferreiro Torto), o segundo da capitania do Rio Grande. Foi construído pelo capitão Francisco Rodrigues Coelho e o seu sócio, o vigário do Natal Gaspar Gonçalves da Rocha. Esse primitivo engenho, bem como o arraial, tiveram vida curta. Foram destruídos e o proprietário massacrado pelas mãos invasoras holandesas em dezembro de 1634. Ato contínuo, tendo em vista a decadência da cidade do Natal, arrasada pelos batavos, estes subiram o rio Potengi e na confluência do rio Jundiaí foi fundado a Nova Amsterdã, a qual chegou a possuir a câmara dos escabinos cujos moradores viviam da pesca, da produção de farinha e do plantio de fumo. Porém, a história oficial do município teve início em 1770, com a demarcação do sitio Coité pelo coronel Manoel Casado. Coité era uma árvore abundante na região que o coronel passou a criar e plantar em sua propriedade. Em 1850, passa a pertencer ao capitão Francisco Pedro Bandeira de Melo, cuja filha, D. Damiana Maria Bandeira, consorciou-se com o comerciante Fabrício Gomes Pedroza, morador no engenho Jundiaí. Fabrício Pedroza, comerciante de alto prestígio e larga visão comercial, notando a boa localização do sítio do sogro, constrói o primeiro estabelecimento comercial à margem do rio Jundiaí , e numa cerimônia em 1855 no quintal do referido estabelecimento onde plantou duas macaíbas, muda o nascente povoado de Coité para Macaíba. E convida amigos comerciantes para instalar-se na localidade. Em 1870, o major Fabrício funda a casa comercial dos Guarapes, importadora e exportadora de produtos, direto do seu porto para os EUA e Inglaterra, com a mudança do velho para Rio de Janeiro: o negócio foi fechado e abalou a frágil economia provincial. A freguesia foi criada pela lei n° 815, de 07 de dezembro de 1877, sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição, santos Cosme e Damião. A lei provincial n° 801, de 27 de outubro de 1877, deu ao povoado da Macaíba o predicamento de vila, ganhando assim autonomia administrativa, sendo transferida à câmara municipal de São Gonçalo cujo presidente era o capitão Vicente de Andrade Lima. Outra lei provincial n° 1.010, de 05 de janeiro de 1889, elevou-a à condição de cidade. Como distrito, ou termo judiciário, Macaíba foi elevada à categoria de comarca do Potengi pela lei provincial n° 845, de 26 de junho de 1882, suprimida, posteriormente, em 1898, restaurada em 1907, foi novamente suprimida em 1914, e afinal restaurada em 08 de abril de 1918. Pioneira em vários aspectos, Macaíba libertou seus escravos em 06 de janeiro de 1888, tendo a frente deste movimento o comendador Umbelino Freire de Gouveia Mello, presidente da sociedade libertadora “Padre Dantas”. A primeira casa bancária do estado foi nesta cidade, fundada pelo deputado Eloy Castriciano de Souza, que financiava as safras de açúcar de grande parte dos municípios do Ceará-Mirim à São José, incluindo o vale do Cajupiranga. Sendo ainda a promotora do trabalho feminino no comércio, uma vez que o senhor Francisco Campos era auxiliado por sua esposa e as quatro filhas em seu comércio no ano 1924. Macaíba hoje tem uma população de mais de 80 mil, uma área de 492 km, mais de 60 escolas públicas municipais, 04 distritos (Traíras, Mangabeira, Cajazeiras e Cana-Brava), 16 comunidades urbanas e mis de 30 comunidades rurais. Tem na mandioca sua agricultura de subsistência. Destacamos, ainda, a cultura do caju e a apicultura como meio de geração de emprego e renda, além da plantação do mamão na zona rural do município. Outro ponto importante para economia do município é a ascendente atividade da carcinocultura, destacando-se como um dos mais promissores do RN. No trinômio comércio, agricultura e indústria tem sua fonte econômica. O abastecimento de água é feito pela CAERN (Companhia de Água e Esgotos do RN) e a energia elétrica é de responsabilidade da COSERN (Grupo Neoenergia). Faz fronteira com 08 municípios (Natal, Parnamirim, São José do Mipibú, Vera Cruz, Bom Jesus, São Pedro, lelmo Marinho e São Gonçalo do Amarante), 17 vereadores integram o poder legislativo municipal. FPM e ICMS são as maiores fontes da receita pública. A população católica representa 73%, com cerca de 60 mil fiéis. A paróquia integra a Arquidiocese de Natal e a festa da sua padroeira é 08/12. As outras denominações religiosas são: a Igreja Assembléia de Deus, Igreja Batista de Macaíba e Batista da Convenção, Igreja Universal do Reino de Deus, Igreja Presbiteriana, Igreja Deus é Amor, Igreja Pentecostal, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, Congregação Cristã no Brasil, Testemunhas de Jeová e Igreja Cristã em Células. Nos cultos de cultura Afro destacamos o terreiro de Dedé de Macambira, terreiro do Mosquito e terreiro de Paulo da Lagoa. Macaíba localiza-se a 18 quilômetros de Natal e é cortado por duas BR's 304 e 226, e pela RN 160. Tem a melhor água da Grande Natal. Possui um distrito industrial composto por cerca de 20 empresas entre pequenas, médias e grandes (a Sam’s, Multidia, Coteminas, Coca-Cola, Rufitos, Tempreros Sandio, Argamassa Potengy, Center Massas, Água Mineral Cristalina, Água Mineral Riogrande, Águia Piscina), entre outras, e como órgão representativo da categoria patronal temos a ASPIM. CDL (Câmara dos Dirigentes Lojistas) e SindComércio (Sindicato do Comércio Varejista) são as entidades representativas do comércio local, com uma média de 2000 mil empregados diretos no ramo comercial em cerca de 400 lojas nos mais diversos ramos de atividade. A empregabilidade está no serviço público (três esferas), comércio, agricultura e industria. Salve a data aniversária de 27 de Outubro e salve Macaíba enquanto é tempo! (*) Escritor

26/10/2021

A DIVINA COMÉDIA VISTA DE NATAL Diogenes da Cunha Lima Nos 700 anos da morte de Dante Alighieri, o mundo intelectual festeja a sua obra. Não hesito em afirmar que, dentre os peritos literários, ele foi o favorito de Câmara Cascudo. O Mestre de Natal foi o primeiro tradutor de Walt Whitman, traduziu Montaigne e, para seu deleite, Shakespeare e Goethe. Apresentou e anotou Miguel de Cervantes e Luis de Camões. “Dante Alighieri e Tradição Popular no Brasil” é paciente pesquisa sobre a criação desse homem de todos os tempos, conservando vivo em nossos hábitos, nossos gestos, em nossas palavras, segundo a expressão de Franco Jasiello, prefaciador da 2ª edição. Para Franco, o gênio atlântico e alísio tinha a primazia da intimidade com o gênio de Florença. Imagine a minha emoção ao receber o exemplar, que assegura eu estar “inteiro e vivo no seu coração”. Sob a dedicatória, a assinatura de Luis da Câmara Cascudo. Para Cascudo, Dante Alighieri é uma síntese genial da cultura erudita e da cultura popular. Tinha todo o conhecimento científico, filosófico e teológico da Idade Média. Também religioso, o etnógrafo do Brasil registrou a presença entre nós da consciência religiosa medieval. A Comédia, denominada Divina por Boccacio, aborda o destino das almas: inferno, purgatório e paraíso. Nos dois primeiros, Dante é levado pela mão do poeta Virgílio. No paraíso, foi guiado por sua amada Beatriz (Virgílio não poderia entrar no céu por não ser cristão). Dante, médico-enfermeiro, participou da política de Florença, integrando o grupo dos Gibelinos que propunha a limitação dos poderes dos papas. Os Guelfos, vitoriosos, condenaram o poeta ao exílio e à morte se voltasse à Florença. Assim, ele se refugiou em várias comunidades e terminou a sua vida em Ravena, que guarda como um tesouro os seus restos mortais. Cascudo anota a curiosidade de que o sumo poeta vislumbrou três papas no inferno: Nicolau III, Bonifácio VIII e Clemente V. Mereceram o suplício eterno pelo desrespeito à função sagrada, vendendo o que seria destinado ao culto. Câmara Cascudo observa a permanência, no Brasil, da Estrela do Destino, Lúcia (que entre nós é Santa Luzia) e ainda do golfinho, o boto que amava e seduzia até os rapazes, fingindo-se de moça. As observações do nosso Mestre atingem limites não suspeitados. Registra a afirmação de Dante de que “o amor move o sol e as outras estrelas”. Destaca, também, que Dante encontrou poucas mulheres no inferno, raras no purgatório, mas muitíssimas no paraíso. Em nosso tempo, é imprescindível ler os dantistas excelentes, como Marco Lucchesi, e reler a “Divina Comédia”, usufruindo dos seus cinco cantos e dos seus tercetos encadeados.
Marcelo Alves
As buscas Stefan Zweig (1881-1942) foi outro grande nome das letras alemãs que viveu no Brasil (digo “outro” porque antes escrevi sobre Otto Maria Carpeaux). Zweig nasceu em Viena, judeu, filho de pais abastados. A educação, desde menino, foi “de primeira”. Cursou e doutorou-se em Filosofia. Ainda estudante, descobriu-se poeta, tradutor e biógrafo. Foi jornalista, dramaturgo e romancista/novelista. Durante a 1ª Guerra Mundial, foi viver na Suíça. Foi pacifista, no grupo de Romain Rolland, Hermann Hesse e James Joyce. Voltou à Áustria. Foi celebrado nas décadas de 1920 e 1930. Com a ascensão do cabo Hitler, foi viver em Londres. Conheceu o Brasil; prometeu voltar. Cumpriu tragicamente o juramento. É o autor do livro/elegia “Brasil, o país do futuro”. Publicado em várias línguas, é título famoso entre nós. Pena que nunca chegamos a esse futuro. Zweig tirou a própria vida (e a esposa também) em 1942, na melancólica Petrópolis, após um Carnaval mais melancólico ainda. A obra de Zweig é vasta. É cumeada pelas novelas e biografias. Outro dia, adquiri “24 horas na vida de uma mulher e outras novelas” (Nova Fronteira, 2018), na qual Alberto Dines, o prefaciador (além de biógrafo de Zweig), afirma: “Amok, Carta de uma desconhecida, 24 horas da vida de uma mulher e Confusão de sentimentos, junto com as biografias de Maria Antonieta, Maria Stuart e Fouché, são os títulos mais lembrados da vasta obra do escritor austríaco até hoje, e não apenas pelas tiragens, mas porque foram adaptadas para o cinema americano e europeu”. Já que escrita no Brasil, à lista eu acrescento a autobiografia “O mundo que eu vi”, de 1942. Mas, hoje, eu quero destacar apenas dois causos da saga de Stefan Zweig. Um é triste; o outro, espero, terminará bem (pelo menos para mim). O causo triste é o destino do intelectual pacifista, Stefan Zweig, num mundo tomado pela barbárie do Nazifascismo. Quanto ao fim do escritor, anota Dines: “Desgostoso, Zweig aluga um chalé em Petrópolis para aguardar o fim da guerra [a 2ª Grande Guerra]. O desespero fabricado pela solidão e a angústia com o irresistível avanço nazifascista o derrubaram. A 22 de fevereiro de 1942, cinco dias depois do Carnaval, Stefan Zweig e a mulher suicidaram-se. O humanista não aguentou o espetáculo de insanidade que a barbárie hitlerista havia desencadeado. No repertório de suas paixões não foi incluído o radicalismo político”. No Brasil, Zweig buscava algo que, mesmo muitíssimo bem recebido, por autoridades e intelectuais, também não encontrou: a sua paz e a paz de todos (encontramos hoje?). E topou, mesmo aprendendo a amar o nosso país – vide sua carta de suicídio –, voluntariamente, com a “indesejada das gentes”. O segundo causo é de outra natureza. É a minha busca por uma novela de Zweig, “O Mendel dos livros”, de 1929 (originalmente publicada no Neue Freie Press), que conta a história de um sebista judeu russo que tinha “escritório” em uma das mesas do Café Gluck, em Viena. A memória do livreiro era espantosa. Enciclopédica. Sabia tudo das obras que comercializava. Era admirado pelo proprietário do café e pela clientela, que faziam uso dos seus serviços. Mas vem a 1º Grande Guerra. Nacionalidades se opõem. Raças também. E o livreiro é considerado um inimigo da pátria. Novela profética, no que toca ao despertencimento à nação em que se vive, do destino do próprio Zweig? Estes dias, topei com essa novela pelo menos duas vezes. Primeiramente, quando escrevia sobre os cafés de Viena. O sebista de Zweig tornou-se personagem clássica na cultura dos cafés da outrora capital imperial. A segunda foi quando trabalhava na publicação de meus livros, em e-books e impressos, na Amazon. Essa dupla conhecença não pode ser coincidência (e aqui inflaciono a minha porção mística). O destino não bate na nossa porta duas vezes. Ou bate? Sei lá. O fato é que, desde então, busco pelo “Mendel dos livros”. Perguntei a sebistas da terrinha. A amigos bibliófilos. Mas ninguém dá conta do dito cujo. A edição achada na Amazon, portuguesa, da Assírio & Alvim, custa R$ 481,00, mais frete. Mui caro. Não estou roubando. Bom, não sei como terminará a minha busca pelo “Mendel dos livros”. Espero que bem. Longe de tragicamente, como no caso Zweig. Não mato nem morro por livros. Ainda. De toda sorte, indago: alguém pode me ajudar? Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

20/10/2021

ACOMODAÇÕES DA 25ª HORA Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com A frase do ex-deputado federal pernambucano Thales Ramalho de que “maior que a ilusão política só a ilusão do amor” é de uma verdade tão cristalina que me fez refletir mais ainda sobre os últimos dias de Pompéia. A deterioração dos costumes políticos, as debandadas, as infidelidades à 25ª hora, a substituição das coligações eleitorais pela proliferação de legendas partidárias, as adesões no varejo e no atacado em tom promocional e de liquidação; a troca de legendas antes mesmo de o candidato assumir o mandato, tudo conduz o eleitor ao descrédito da vida pública, estarrecido com a conduta pérfida dos seus protagonistas. Em nome da mudança, do novo, do diferente, alguns agentes políticos estão destruindo a própria biografia no jogo vantajoso das premissas e das facilidades dos governos que estão por vir. Nunca a flauta mágica do fisiologismo tocou tão alto desbotando clichês, ruborizando os céticos e dissolvendo bancadas tal e qual o efeito sonrisal. O que está acontecendo hoje com a chamada classe política? Deu a louca no mundo? É tão grande assim o impacto das dívidas e das dúvidas pendentes da campanha que passou? Dir-se-á que os partidos vencedores quando trocaram a ideologia pela convivência dos contrários, os partidos de direita e de centro perderam o pudor e se misturaram no mais estranho e promíscuo hibridismo partidário da história política do país. Já que não posso entender, após exaustivas reflexões, espero que tanta gente junta dê certo, tanto aqui quanto alhures, como diria o nosso saudoso Paulo Macedo. Talvez isso tudo seja mesmo uma fogueira das vaidades. E ponto final. Tudo é mesmo ilusão. Nada além de uma ilusão, sobre a qual nos falava o saudoso ator e comunista Mário Lago. Refletir sobre os fatos e factóides da vida talvez seja a melhor postura diante do mar de Cotovelo. O dom da observação é importante para aprender a viver e dissipar os contrapontos insurgentes. Ergui-me da rede para repensar o imponderável. Vamos devagar com o andor que o santo é de barro e não faz milagre. Para o conhecimento do crítico de cinema Valério Andrade, o cenário é o mesmo, os figurantes idem. Mudam os atores, os diretores, produtores e roteiristas. A trilha sonora continuará sendo o hino nacional de Fafá de Belém, e por aqui a velha e ilusória marchinha carnavalesca “mamãe eu quero, mamãe eu quero mamar...”. E o filme? O filme é o mesmo para que muitos, mais tarde, possam repetir novamente: já vi essa fita antes. Está escrito que, na história da humanidade, todos haverão de passar e que o Messias prometido só existiu um. E uma Cleópatra, também. Política, enfim, é mais do que circunstância. É ilusão, mesmo. E muita vaidade. É ilusão gratulatória. (*) Escritor.
A PRIMAZIA DA INSENSATEZ Tomislav R. Femenick – Mestre em economia, com extensão em sociologia e história Alguns psicólogos, neurocientistas e outros estudiosos da mente e do comportamento humano admitem que a cosmovisão e a maneira de agir dos indivíduos têm origens em três fatores: a) a genética, isto é, o conjunto de qualidades transmitidas dos pais aos seus descendentes; b) o meio ambiente em que eles vivem, considerando, também, o lugar e a época; e c) a autodeterminação, ou seja, o dom de decidir por si mesmo, fazendo livre escolha para sua forma de pensar e agir perante fatos e ideias. Os pensadores divergem entre si sobre qual determinante é mais preponderante. Entretanto, é aceito que esses elementos – a genética, o meio ambiente e a autodeterminação – são a base da inteligência (do latim “intelligens, entis”, que compreende, que conhece), a capacidade que as pessoas têm para formulações lógicas, para a abstração e, principalmente, para a compreensão das narrativas e dos fatos. Recentemente, a revista Veja publicou uma matéria sobre o assunto, em que constata um fato constrangedor. Depois de décadas em que a inteligência humana (medida pelo QI) evidenciava um crescimento constante, desde o início deste século o quadro se inverteu. Se antes os filhos se mostravam mais argutos que seus pais, hoje eles são menos interessados e mesmo alheados sobre assuntos do mundo em sua volta. Por outro lado, o jornalista Spike Dolomite, do site norte-americano “Medium Daily Digest” (spikedolomite.medium.com) publicou uma matéria intitulada “O Desfile dos Idiotas” (tradução livre) na qual ele cita alguns exemplos: embora o Texas tenha ultrapassado quatro milhões de casos de covid, aquele Estado e mais vinte e três outros estão planejando processar Presidente Biden pela obrigatoriedade das vacinas. Isso só vem a comprovar que, desde a eleição de Trump, houve uma regressão cognitiva lá “pras bandas dos states”. Diz ele: “Nunca seremos capazes de superar a Covid, a menos que esses estados admitam que estão errados e mudem seus caminhos. Latinos e negros americanos estavam relutantes em tomar a vacina, por razões culturais, mas, desde a obrigatoriedade, ambos os grupos alcançaram o grupo caucasiano em números. O único grupo indiferente são os republicanos. O número de republicanos que foram vacinados é de pouco mais de 50%. Os democratas são mais de 90%. Os democratas usam máscaras e são vacinados para proteger a si mesmos e aos outros de um vírus mortal. Os republicanos se recusam erroneamente e deliberadamente a usar máscaras e a se vacinar porque querem que o mundo inteiro saiba que eles não estão evoluídos e não dão a mínima para outras pessoas”. Como lá, aqui por estas plagas abaixo da linha do Equador, onde nada é pecado, temos um presidente negacionista, ministros se vacinando escondido (para não contrariarem de Sua Excelência), a primeira-dama recebendo a vacina em Nova York, e mais de seiscentos mil óbitos atribuídos à covid 19. No entanto, o senhor presidente continua achando que quem toma vacina pode virar jacaré. Isso tudo enquanto o Conselho Federal de Medicina e alguns planos de saúde se apegam à autonomia médica, para justificar receituários fora da ciência, tão somente por convicção política ou por obstinação pessoal. E tome entrevistas em rádios e TV’s, aparições de vídeos nas redes sociais, tudo em busca de se transformarem em celebridades; se possível recebendo uns trocados, miúdos ou graúdos. Realmente este é um país da consagração das idiotices. Será que esse é o Brasil em que eu nasci? Basta ver as notícias do cotidiano escalafobético. Dois esteios do liberalismo econômico pátrio, ocupantes de altos cargos da administração federal foram pegos “em arapuca de pegar gambá”. O Ministro da Fazenda e o presidente do Banco Central, responsáveis por dar credibilidade à política econômica do governo, têm dinheiro aplicado em paraísos fiscais. É legal? É. É moral ou pelo menos recomendável que assim ajam? Não. Como esperado, o Congresso fez alarde, convocou os maljeitosos agentes públicos, etc. e tal. E nós? Nós vamos esperar os próximos capítulos dessa horrenda novela mexicana. Tribuna do Norte. Natal, 20 out. 2021
Meritocracia e mediocridade Padre João Medeiros Filho Hoje, é frequente a decepção com vários líderes, parlamentares, administradores, magistrados e religiosos. Nomes – tampouco partidos – não bastam para convencer. Urge a presença de autênticos gestores para nosso povo, desprezando amadores, oportunistas, aventureiros e arrivistas. Infelizmente, o coronelismo ainda não foi abolido. Reaparece travestido de ideias democráticas, mas com iniciativas e ações autoritárias e autocráticas. Há carência de cidadãos verdadeiramente carismáticos, isentos de discursos maquiados e despidos de sofismas. É premente a presença marcante de indivíduos e grupos, imbuídos de ética, justiça, trabalho e sensibilidade social. Necessita-se de pessoas qualificadas, que atuem nas esferas nacional e regionais, voltando-se para os diversos segmentos da sociedade. Sem o surgimento de lideranças legítimas, as instituições permanecerão órfãs e não se ajustarão às necessidades contemporâneas. Isso não significa simplesmente ter esperança neste ou naquele chefe ou sigla. Ao contrário, aspira-se à articulação de pessoas com propósitos sérios e dedicação às instituições. Gente que possa servir e não se utilizar delas para seus projetos individuais. Muitos buscam guarida nos entes públicos, privados e até religiosos, com intuito de ocupar um lugar que lhes garanta vantagens e benesses. Procuram blindar-se, pois almejam cobranças em suas ações. Acomodam-se e contentam-se com resultados pífios, decorrentes de suas opiniões e atuações. A sociedade hodierna está rejeitando estes velhos costumes e métodos. Ela vem tecendo uma dinâmica cultural, na qual não se aceitam conchavos e barganhas, onde predominam benefícios pessoais ou de grupos. A carência de líderes comprometidos com o bem comum e o progresso da nação é consequência de uma insuficiente formação humanística e cívica. Outrossim, as religiões devem fazer o “mea-culpa”. Sem isto, corre-se o risco de se deixar conduzir por princípios duvidosos e envolver-se nas malhas da injustiça e desonestidade. Neste ponto, o papel das crenças religiosas é urgente e essencial. No Brasil atual – salvo engano e verificadas as exceções – consolidam-se hegemonias medíocres. Está se tornando habitual na sociedade a presença de governantes e legisladores incapazes de oferecer soluções aceitáveis para os mais comezinhos problemas. E o pior: muitos se destacam no voo livre do despreparo e improviso. E deste modo, relega-se ao desprezo a valorização dos méritos. Os pseudolíderes são habilidosos em ocultar seus interesses e erros. Há quem ouse, à sorrelfa ou às claras, defender as maquinações de desvio do dinheiro público e enriquecimento ilícito. Assemelha-se a uma ética de guerra, na qual os fins justificam os meios. Uma característica relevante dos medíocres consiste em não admitir seus erros e perceber suas limitações. Os despreparados são ousados e candidatam-se, sem pejo, a funções de grandes responsabilidades, sem a mínima condição de exercê-las. Os probos, muitas vezes, se abstêm, pois são imbuídos do exercício da autocrítica, imprescindível à renovação. As entidades brasileiras, inclusive religiosas, necessitam de uma nova onda de sérias lideranças. Jesus já alertava contra o perigo dos remendos: “Não se põe conserto de pano novo em roupa velha.” (Mt 9, 16). O país exige outras dinâmicas para superar estorvos obsoletos. A população está saturada de discursos teatrais e inócuos. Um político, já falecido, ao dirigir-se à tribuna do Senado, assim se expressou: “Não suporto mais essa pletora de palavras vazias, desprovidas de ideias e propostas de soluções”. É-nos lançado um grande desafio: modificar a cultura da mediocridade, que contamina indivíduos, instituições e lugares. Esse processo requer a dedicação de todos à autocrítica e ao compromisso de fazer escolhas bem fundamentadas. É indispensável agir com sabedoria no exercício das responsabilidades. Não se deve permitir espaços àqueles que escondem a própria superficialidade, dominando pessoas, grupos e entidades. É hora de prevalecer o mérito, a partir de uma ação inteligente e inovadora, dedicada à vida, paz e justiça. Cristo, usando metáforas, desaprovava as atitudes de seus contemporâneos, comparando-as a cegos que conduzem outros deficientes visuais. “Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão no precipício.” (Mt 15, 14). E o profeta Isaías, oito séculos antes do cristianismo, alertava seus contemporâneos: “Vários de seus responsáveis são míopes. Muitos são como cães mudos... Seu prazer é dormir e permanecer insensíveis ou incólumes a tudo!” (Is 56, 10).

15/10/2021

O DIA DO PROFESSOR Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes Hoje é um dia especial, pois que consagrado a uma das mais nobres profissões do universo, em todos os tempos. Impossível enumerar o nome de todos aqueles ou aquelas que me ensinaram o be-a-bá - isso estou resgatando em um livro que estou escrevendo, dando conta da minha passagem por esta dimensão da existência. A minha admiração pela profissão me concedeu a graça de ensinar, de uma maneira geral, por cerca de 50 anos, entre universidades, escolas e instituições, fazendo da minha vida um prazer sem tamanho. Hoje, já distanciado das salas de aula, fico emocionado quando vou, esporadicamente a um desses lugares onde ensinei e quando convivo com inúmeros professores atuais ao ser convidado para participar de algum seminário. Tudo o que eu possa dizer sobre a profissão será sempre pouco. Por isso, prefiro trazer a transcrição de alguns depoimentos lúdicos, poéticos e emocionais:

13/10/2021

CENTENÁRIO DE ALUÍZIO ALVES Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com A memória do ex-governador, deputado federal, ministro e jornalista Aluízio Alves jamais deixará de despertar em todos nós, novas reflexões sobre a sua vida e obra. É o mesmo que afirmar que sempre se dirá dele a penúltima palavra mas nunca a última. Assim foi e continuará sendo com relação a vultos da estirpe de homens públicos como Juscelino Kubitschek, Getúlio Vargas e Carlos Lacerda. Isso tudo porque efetivamente Aluízio foi um líder porque inovou, recriou, reinventou e redimencionou a máquina, os métodos e as práticas político-administrativas que imperavam desde a Velha República. Assim ocorreu nas lutas que abraçou como deputado federal e governador do Rio Grande do Norte quando desafiou e derrubou as estruturas arcaicas da administração pública por um novo modelo na educação (método Paulo Freire); na industrialização, o progresso social através da energia de Paulo Afonso, além de inúmeras obras estruturais sob o timbre da modernidade. Foi líder porque despertou os acomodados. Apaixonou o povo pelas suas causas. Dividiu opiniões sem medo do julgamento dos apressados. Como jornalista revelou-se o criador de empresas de comunicação. Como político sensível e hábil criou o seu próprio marketing, o seu estilo e a sua logomarca. Das sombras do eclipse da democracia brasileira optou pela cambiante concretude do processo da industrialização do novo nordeste, apesar da mordaça política. Por isso, como líder nato, permanente, eu não o comparo. Eu o separo. Ele tinha o selo e a marca da exclusividade. Ninguém foi como ele. Como empresário, no curso dos dez anos da cassação, trouxe para o Rio Grande do Norte inúmeros investimentos, os quais geraram empregos, e se não tivessem sido implantados naquele tempo, não seriam hoje continuados por outros investimentos. Como Ministro da Integração deixou o legado maior: o projeto de transposição do Rio São Francisco. Dir-se-á que Aluízio Alves conquistou o futuro. Ao lado de suas ideias e sentimento, ele possuía a convencedora energia da palavra, eloquente e ágil. Ninguém na vida pública do Rio Grande do Norte, a não ser ele, sabia fazer de forma tão mágica e carismática. Era um vocacionado desde adolescente em 1934, quando discípulo de José Augusto Bezerra de Medeiros. Em 1946, com 25 anos já é constituinte da República, convivendo com os luminares da redemocratização do país. Aluízio foi um predestinado que empreendeu uma cruzada digna e necessária em prol do desenvolvimento do Rio Grande do Norte, tanto como deputado federal, governador, líder popular, ser humano, desprendido, abdicando de ser senador para acolher companheiros de partido (PMDB). Tudo o mais já foi dito sobre ele e reproduzido em todos os jornais. Falar mais é repetir-se. O que importa, é que nenhuma instituição pública, nem as gerações futuras deixem de reconhecer e proclamar os seus méritos que estão gravados no bronze da história político-administrativa do nosso Estado. Político nos seus defeitos comuns e humano nas suas contradições naturais. Aluízio Alves foi o ícone de todas as lideranças políticas do Rio Grande do Norte, de todos os tempo. Permita-me narrar um fato que elucida a sua visão superior de homem público. Em 1951, o município de Macaíba foi assolado por rigoroso inverno que derrubou a ponte da cidade, dividindo-a ao meio. O então deputado estadual Alfredo Mesquita procurou a bancada federal do seu partido (PSD) a fim de obter os recursos necessários, visto que, o governo do Estado (José Varela) não dispunha de verbas. O Ministério de Obras e Viação, ante a demora burocrática, recebeu o apoio integral do udenista Aluízio Alves que conseguiu locar e liberar os recursos necessários. Neste 2021, são decorridos setenta anos e a ponte permanece intacta. Ninguém possuirá em mais alto grau, a força de vontade, tenaz e formidável, a magia política, a capacidade de trabalho e a extraordinária flexibilidade do seu talento. Foi jornalista, escritor e orador, tanto no palco iluminado do Congresso Nacional daquele tempo, como em qualquer ruazinha modesta do Rio Grande do Norte no lampejo das antigas passeatas vindas lá do sertão do Cabugi. Neste dia 11 de agosto de 2021, fará cem anos e como dói a sua ausência. Não há mais líder como tal no Rio Grande do Norte. Mas hoje, ele é uma lembrança que o tempo não desfez. (*) Escritor
A OUSADIA DE CRIAR Valério Mesquita* mesquita.valerio@gmail.com Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão nasceu em Macaíba, em 02 de outubro de 1872 e faleceu em Angra dos Reis (RJ) no dia 1º de fevereiro de 1944. Um meteoro de luz incandescente, que já aos 20 anos de idade colava grau na Faculdade de Direito do Recife. Ocupou inúmeros cargos: promotor público, secretário de governo, deputado federal por dois mandatos e governador do Rio Grande do Norte, por duas vezes. Intelectual, publicou livros e colaborou com diversas revistas literárias. Fundador do Instituto Histórico e Geográfico do RN, em 29 de março de 1902. Era filho de dona Feliciana e Amaro Barreto de Albuquerque Maranhão. Teve irmãos que também se notabilizaram como ele na história. De compleição altiva, olhar sobranceiro, Alberto conduzia na palavra e nos gestos toda a obstinação de uma inteligência que escolheu a cultura como altar de sua crença. Naquele limiar do novo século era o homem esculpido, de ritmo inimitável de ascensão para a luz que surpreendeu até o irmão primogênito e líder Pedro Velho. E como primeiro impulso em favor das artes e da literatura, através da Lei 145 de 06 de agosto de 1900, proposta por Henrique Castriciano, estabeleceu a premiação de livros produzidos por autores domiciliados no Rio Grande do Norte. E, logo em seguida, inaugurou o teatro Carlos Gomes, hoje Alberto Maranhão, cuja renda do seu espetáculo inaugural foi revertida em favor dos flagelados da seca que se concentravam em Natal. O seu humanismo e nobreza de caráter alçaram-no à estatura de um Péricles de Atenas, tão expressiva foi a sua afirmação cultural com a obra administrativa que realizou. No segundo mandato, fundou o Conservatório de Música, o Hospital Juvino Barreto, a Casa de Detenção, além da implantação da luz elétrica e dos bondes em Natal. Sem esquecer, ainda, a criação da Escola Normal e a reforma da educação, bem como, a edificação do Palácio do Governo na Praça 07 de Setembro. Uma visão global da obra de Alberto Maranhão me leva a dizer que ele foi um intelectual arrojado com uma intuição administrativa admirável, ao mesmo tempo que um dirigente operoso com uma visão cultural futurista para o inicio do século vinte. Conseguiu, até os nossos dias, irradiar uma luz tão forte sobre a sua personalidade política, ao ponto de merecer o respeito unânime de várias gerações, eternizado no tempo e no espaço. Por tudo isso, no dia 04 de outubro de 2005, os restos mortais dele e de sua Inês, por iniciativa da Casa da Memória do Rio Grande do Norte, apoiada pelo Governo do Estado e pelo Conselho Estadual de Cultura foram trasladados para Natal. O homem não passa de uma extensão do espírito do lugar. Tudo se desfaz, menos os elos nativos que o prendem à terra. O homem será sempre prisioneiro de sua origem. Alberto Maranhão foi capaz de compreender o legado dos seus ancestrais e apaixonou-se pela causa pública no firme desiderato de dar glória ao seu Rio Grande do Norte. Nele se resume a dimensão da política no seu sentido aristotélico. Cito Pablo Neruda: “Ele sabia compartilhar conosco o pão e o sonho”. E a ousadia de criar. (*) Escritor

05/10/2021

Marcelo Alves Os alienistas jurídicos Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) foi um escritor suíço de língua alemã. Nasceu numa pequena cidade do cantão de Berna. Sua família era conservadora e protestante. Foi cedo morar na belíssima capital de facto do seu país. Estudou filosofia, filologia, literatura e até “ciências” nas universidades de Zurique e Berna. Logo abandonou a vida acadêmica. Foi escrever romances e, em especial, teatro neoexpressionista. Dürrenmatt não era engajado partidariamente, mas tinha uma posição político-filosófica de vida. À moda do grande Bertolt Brecht (1898-1956), embora mais desmascarador do que didático, suas peças (e seus romances também) visam menos o entretenimento da plateia/leitor e mais fomentar o debate público sobre temas fundamentais. É denúncia. E é bastante original. Dürrenmatt foi também pintor. Mas, cá entre nós, foram os seus leitores e espectadores que tiveram mais sorte. Sua primeira peça foi “Está escrito” (“Es steht geschrieben”, 1947), que estreou com grande polêmica. A trama gira em torno de uma “batalha” entre um cínico carreirista e um fanático religioso, que leva as escrituras ao pé da letra, tudo isso acontecendo enquanto a cidade em que vivem está sob um cerco. A noite de estreia foi um furdunço. E aí já dá para se ter uma ideia do tipo de “denúncia” de que estamos falando. O primeiro grande sucesso foi a peça “Rômulo, o Grande” (“Romulus der Grosse”, 1950). Segundo Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em “A história concisa da literatura alemã” (Faro Editorial, 2013), aqui, “ideias expressionistas, modernizadas up to date”, inspiram essa tragicomédia pseudo-histórica, “em que o último imperador romano, alvo do escárnio de milênios, é homenageado como grande estadista que não quis ‘salvar a civilização’, porque é impossível salvar civilizações. E que civilização!”. Sua obra-prima possivelmente é “A Visita da Velha Senhora” (“Der Besuch der alten Dame”, 1956), uma mistura grotesca de comédia e tragédia sobre uma mulher rica que oferece ao povo de sua cidade natal uma fortuna se eles executarem o homem que a abandonou no passado. Em “A Visita da Velha Senhora”, como anota Carpeaux, “o desfecho é a morte trágica de um ‘herói’ nada trágico, causada pela vingança patológica de uma velha senhora e pela cobiça patológica de todos”. Já no drama satírico “Os físicos” (“Die Physiker”, 1962), “a ameaça trágica da bomba atômica é uma intriga de manicômio e levará ao poder um governo universal, encabeçado por uma louca”. Quão atual! Entretanto, para nós, cultores da literatura e do direito, talvez (e enfatizo a dúvida, uma vez que o autor escreveu outras peças e romances “jurídicos”) a mais interessante obra de Dürrenmatt seja “O Casamento do Senhor Mississippi” (“Die Ehe des Herrn Mississippi”). Como registra Carpeaux, o louco promotor público dessa peça, “que manda centenas de sujeitos à forca para moralizar a vida pública, é personagem tipicamente expressionista”. É, assim, peça de pleno desmascaramento. Pondo de lado as relações pessoais entre as personagens, a peça tem como centro o radicalismo do promotor Mississippi, que se acredita um lutador pela “justiça do céu”. Ele internalizou de uma maneira muito peculiar os ditames da Bíblia, especialmente as chamadas “Leis de Moisés”. Convidado a simpatizar com a “esquerda”, ele refuga. É infenso a qualquer moderação. Após uma revolta popular abortada, ele vai para um manicômio. De lá foge. Num ritual macabro de envenenamento recíproco, Mississippi morre ainda na crença de que o homem pode ser mudado por punições inumanas. Tem doido para tudo. Ao final, na peça, as personagens retornam à ribalta e fazem um balanço dos acontecimentos. Bom, e que balanço nós podemos fazer disso aqui? Há um meramente literário. “O Casamento do Senhor Mississippi” me lembra bastante “O Alienista” (1882), do nosso Machado de Assis (1839-1908), cujo protagonista da confusão é o médico psiquiatra Simão Bacamarte, o dono da Casa Verde, o seu próprio manicômio, até porque acabou internado lá. Mas eu prefiro aqui meditar sobre uma observação do multicitado Carpeaux. O teatro expressionista/fantástico de Duerrenmatt “denuncia o absurdo na atualidade, que lhe garante sucesso universal”. Desmascara tragédias. Mas “o que parece tragédia, no mundo de hoje, é na verdade uma farsa, apenas de desfecho trágico”. Vimos isso entre nós, não vimos? Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
A CANÇÃO DE NINAR Diogenes da Cunha Lima É a primeira e mais terna comunicação, depois do útero, segredo íntimo entre mãe e filho. A canção tem andamento suave, ritmo lento que favorecem o adormecer. A música é feita com harmonia simples para induzir ao sono. A criança sente (e creio incorporar) o afeto da sonoridade, música e letra. Para mim, não foi assim. A minha mãe ajudava a trabalhar no comércio, cuidava de seis filhos buliçosos e dava atenção à saúde do marido. Assim, atarefada, contratou uma babá para mim e meu irmão Daladier, cujo nome era Lúcia Antero de Oliveira. Ela nos protegia, mas contava histórias de assombração, cantava e nos fazia medo com um boi de cara preta que vinha nos pegar. Desconfiado, eu olhava para as frestas das telhas para conferir a presença do bicho-papão. Herdamos de Portugal canções infantis, algumas têm mensagens negativas. Lembro “A Canoa virou / deixa ela virar / coitada da (menina) / que não sabe nadar”. Outra, noticia a briga do cravo com a rosa, em que ele sai ferido e ela despedaçada. Talvez por isso, dediquei-me a fazer canções que refletissem o amor aos meus filhos, netos, sobrinhos e também a filhos de amigos. Foram mais de cinquenta. Tive o privilégio de contar com o talento de parceiros musicais como Oriano de Almeida e Roberto Lima, além dos arranjos geniais de Eduardo Taufic. O surgimento das canções de ninar é imemorial. Há uma tablita de barro, babilônica, com cerca de 4 mil anos, que registra uma delas. Mas não é amável. A mãe adverte o filho do perigo. O seu choro poderia aborrecer o deus do lar. As canções de ninar de Chopin, Brahms ou Mozart são maravilhas musicais. A de Chopin é a mais conhecida e sedutora. Brahms comove. Mozart transmite uma energia que conduz o sentimento ao pensar. Outra bela canção é a de Stravinsky, inserida em sua peça para o balé “O Pássaro de Fogo”. O príncipe Ivan liberta treze princesas enfeitiçadas. A canção é tão poderosa que faz adormecer eternamente o rei feiticeiro e seus ogros malignos. São cantadas e bem conhecidas na Espanha as canciones de cuna (berço), as berceuses na França, e a lullaby nos países de língua inglesa. O Brasil tem maravilhosas invenções e aproveitamento de músicas tradicionais por Villa-Lobos e Waldemar Henrique, entre tantos. As canções de ninar são cantadas para acalmar os meninos na primeira infância. As letras, geralmente, são positivas, transmitem segurança, esperança de um futuro feliz, além do valor da bondade. Retrata a importância do sonho e a beleza da vida. A canção de ninar é fundamental à construção de uma família integrada e feliz.
Um salmo para os nossos dias Padre João Medeiros Filho O romancista e poeta François Mauriac, prêmio Nobel de Literatura em 1952, escreveu: “Há pensamentos que são verdadeiras orações. Em dados momentos, a alma está de joelhos, seja qual for a postura do corpo.” Isso é válido também neste tempo em que estamos ainda mergulhados num oceano de incerteza, angústia e desapontamento. Vivemos atônitos numa sociedade vitimada pela pandemia e inverdades, pelo radicalismo político, social e até religioso. Padecemos com as contradições e manifestações ideológicas antagônicas, acarretando mais sofrimento para o nosso povo. No conjunto bíblico veterotestamentário é bem conhecido o Livro dos Salmos, lido e meditado por muitos. Trata-se de um manual de orações em forma de hinos e cânticos composto por nossos ancestrais, séculos antes de Cristo. Ali, estão contidas aspirações profundas do ser humano diante de si mesmo, da vida e do desconhecido. A oração – para quem acredita – tem por objetivo levar o finito da terra até o Infinito do Céu. E em cada salmo, está a alma do poeta perseguido, angustiado e carente. Dentre tantos, há um, em particular, apropriado para os dias de hoje, que assim começa: “Aquele que habita sob a proteção do Altíssimo descansará à sombra do Onipotente. Ele dirá ao Senhor: Meu refúgio, minha fortaleza, meu Deus, em quem confio.” (Sl 90/91, v.1) É o desabafo de um fiel em busca de socorro à sombra de Deus, procurando proteção e forças para superar as dificuldades pelas quais passa. Deus é o refúgio (não fuga ou alienação) do ser humano, o qual no seu íntimo pressente que é amado por Ele. Manifesta sabedoria ao buscar auxílio junto a quem pode proteger e ajudar. Nele podemos confiar totalmente, pois nos garante: “Porque se apegou a mim, eu o livrarei e protegerei, pois conhece o meu nome.” (v. 14). Apesar do filósofo Immanuel Kant ter afirmado que “o valor da oração é apenas subjetivo e o desejo de falar com Deus é absurdo”, a criatura humana reza e, mormente nas horas difíceis, pois tem consciência da presença e compaixão divina. Os momentos de prece e recolhimento conduzem-nos à humildade bíblica, ignorada por pretensos sábios, os quais rejeitam Deus e fazem tudo para ocupar o seu lugar. O Salmo 91/90, além de seu conteúdo poético, é uma reflexão sobre o tempo que passa e o que vai acontecendo ao ser humano. Fala de nossa condição terrena, através de imagens. Compara a vida do homem à efemeridade de uma planta. Alude à nossa história, cheia de contradições e sofrimentos, ao tempo cósmico e à perpetuidade de Deus. “Tudo passa. Só Deus permanece”, afirmara a poetisa e mística Santa Teresa d´Ávila! O Salmo, aqui citado, demonstra que todo poder e sabedoria pertencem a Deus. Descreve metaforicamente a existência de um quarteto sinistro (v.4 e 6) que poderá se aplicar aos tempos hodiernos de violência e pandemia: a) a flecha (bala) que voa de dia sem que saibamos seu percurso; b) o terror noturno a trazer insegurança; c) a peste que desliza nas trevas e d) a mortandade que se alastra à luz do dia (v. 5-9). No entanto, o Senhor acalma, promete sua proteção e dará vitória a quem crê e reza: “Andarás sobre cobras e serpentes e pisotearás leões e dragões.” (v. 11). E continua o salmista, tranquilizando o suplicante: “O mal não se aproximará de ti nem a praga chegará à tua casa.” (v.10). “Porque ele me ama, eu o salvarei. Clamará por mim e eu o atenderei, com ele estarei na tribulação” (v.14-15). Assim, Deus assegura-nos a defesa contra os perversos e as desgraças. E enviará seus anjos que oferecerão refúgio e mostrarão o caminho. Finalmente, a salmodia arremata a prece com o consolo divino: “Eu o saciarei de longos dias e lhe mostrarei a minha salvação” (v. 16). Neste tempo de perplexidades, peçamos confiantemente ao Senhor que venha amenizar este “vale de lágrimas”. Ponhamos nosso coração em nossas orações, pois “as palavras sem sentimentos não chegarão aos ouvidos do Eterno”, como escrevera William Shakespeare.

01/10/2021

NOSSA LUTA EM FAVOR DA CULTURA JUNTO AO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RIO GRANDE DO NORTE, PERMITIU O ACESSO DE 283893 PESSOAS AO BLOG DO IHGRN, QUE COM MUITA HONRA EU MOVIMENTO, COM AS DIFICULDADES PRÓPRIAS DE UM CIDADÃO DE 82 ANOS. OBRIGADO A TODOS.
Antuérpia 1920 e Tóquio 2020 Daladier Pessoa Cunha Lima Reitor do UNI-RN Ao se comparar as recentes Olimpíadas do Japão e as realizadas em 1920, na Bélgica, nota-se que algo similar envolveu as duas: as pandemias virais causadas pelo SARS-Cov-2, com a Covid-19, e pelo H1N1 , com a gripe espanhola. Em ambos os Jogos houve protestos, tanto dos belgas quanto dos japoneses, para que a grande festa esportiva não ocorresse em seus países, com receio de se agravarem as condições de saúde de suas populações. Porém, no caso dos Jogos de 1920, um outro fator contra o evento foi até pior, pois o armistício que pôs fim à Primeira Guerra mal acabara de ser selado. Um estudo feito na Universidade Gent, da Bélgica, aponta a Guerra como o principal fator nas barreiras para as Olimpíadas de 1920, apesar da gravidade da gripe espanhola. Veja-se, por exemplo, a ausência dos países derrotados, Alemanha, Áustria, Hungria, Bulgária e Turquia, além da URSS, que preferiu ficar de fora. No rastro da Guerra, restou a pobreza em escala mundial e a consequente restrição de gastos com as Olimpíadas, a começar pelas acomodações dos atletas, que dormiam em camas sem colchões e em salas para 15 pessoas. A alimentação foi à base de pão, sardinha e café, ficando outras despesas por conta das delegações. Consta que grande parte da equipe dos Estados Unidos viajou para a Europa no mesmo navio usado para devolver corpos de soldados americanos mortos em combate, meses antes. O forte odor de formol muito perturbou a viagem dos atletas daquele país. Essas enormes dificuldades servem para mostrar a força do esporte, capaz de promover a paz por meio de competições renhidas e saudáveis. Tanto nos jogos de Antuérpia quanto nos de Tóquio, o COI apostou e ganhou com as decisões de manter os dois grandes eventos. Uma matéria na Folha de S. Paulo, assinada pela jornalista Anna Virgínia Balloussier, aborda esse assunto de forma bem interessante. Começa com uma foto da atleta norte-americana Ethelda Bleibtrey (1902- 1978), vencedora de todas as provas de natação, em 1920. Ela foi presa por retirar as meias que usava para nadar em uma piscina, até então uma prática obrigatória, e a sua ousadia venceu o atraso. As Olimpíadas de Antuérpia 1920, cidade histórica da Bélgica, terra natal do grande pintor Peter Paul Rubens (1577-1640), marcaram a estreia do Brasil nos Jogos. Os 21 atletas brasileiros fizeram uma viagem no navio a vapor Curvelo, numa travessia que durou quase um mês, sem conforto e desgastante. Os patrícios ganharam três medalhas, todas no tiro, inclusa uma de ouro, do tenente Guilherme Paraense. Foi na Bélgica que, pela primeira vez, tremulou a bandeira olímpica com os cinco aneis, houve a revoada de pombos da paz e ouviu-se o juramento dos atletas. Em Tóquio, a tecnologia dominou, haja vista os belos espetáculos na abertura e no encerramento, inclusive com a beleza dos origamis de papel no lugar e para o sossego dos pombinhos brancos. Texto publicado na Tribuna do Norte, em 30/09/2021

30/09/2021

O REPENTE NORDESTINO Diogenes da Cunha Lima Nenhuma região do país é tão pródiga na inventividade como o Nordeste. A arte do repente identifica a nossa região. É o exercício da poética popular, do sertão ao litoral, com versos de fazer inveja a poetas eruditos. O repente nordestino é duelo verbal de cantadores com o acompanhamento de viola, rabeca ou pandeiro (embolada). Em todas as suas formas, participa do rico Patrimônio Imaterial do Brasil. É o diálogo do improviso e da liberdade vocabular. Muito se discute sobre a sua origem. Como sempre, Câmara Cascudo vai mais longe. Para ele é o desafio oriundo do canto amebeu, grego, do tempo de Homero. É canto alternado, obrigando resposta às perguntas do companheiro. Muitos poetas cantadores tornaram-se célebres. Pinto do Monteiro (sempre considerado o mestre da cantoria), um dia, recebeu Lourival Batista, crescente em versos quentes. Glosaram os dias da semana com o humor produzido por trocadilho. Pinto: “No lugar que Pinto canta/não vejo quem o confunda. / Que o rio da poesia/o meu pensamento inunda. /Terça, quarta, quinta e sexta, /sábado, domingo e segunda”. Lourival respondeu: ”Sábado, domingo e segunda, /quarta e quinta. / Na sexta não me faltando/a tela, pincel e tinta/pinto pintando o que eu pinto. /Eu pinto o que o Pinto pinta”. Ninguém sabe dizer melhor das coisas da região do que o poeta mossoroense Antônio Francisco. É sempre expressiva a sua linguagem para fazer pensar. Brevíssimo exemplo: Falando sobre a fome, ele começa: “Engoli três vezes nada...”. Fabião das Queimadas, escravo que tangia bem o verso e a rabeca, foi provocado para falar sobre a paga dos seus vinténs arrecadados. Que seria um poeta? Ele explicou: “Canta longe um passarinho/do outro lado do rio, /uns cantam porque têm fome, /outros cantam por ter frio. /Uns cantam de papo cheio, /outros de papo vazio”. Não era cantador, mas poeta popular, popularíssimo. Aliás, Renato Caldas foi um lírico, improvisador, bem-humorado. Pediram-lhe que fizesse saudação ao escritor e pintor Newton Navarro. Versejou: “Adão foi feito de barro/mas você Newton Navarro foi feito de inspiração. / Dos passarinhos, das cores/da noite feita de amores/do luar do meu sertão”. Certa vez, o poeta tomou café em uma residência na cidade de Angicos e ao guardar suas coisas, distraidamente, incluiu uma colherinha. Já na sua cidade, em Assu, verificou o equívoco e voltou. Desculpou-se dizendo: “Eis aqui, dona Chiquinha, /devolvo sua colher. / De coisa que não é minha/eu só aceito mulher”. Na função de conselheiro do Iphan, esforçar-me-ei para que o Repente Nordestino seja reconhecido como Patrimônio Imaterial Brasileiro.
Umarizal e a devoção ao Coração de Jesus Padre João Medeiros Filho Eis uma das devoções mais antigas do catolicismo. Nasceu aos pés da Cruz, quando “um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança, jorrando sangue e água.” (Jo 19, 34), simbolismo da Eucaristia. No século XVII, a freira Margarida Maria de Alacoque deu impulso ao culto, posteriormente difundido pelos jesuítas e membros do Apostolado da Oração. Este, desde 2013, integra com o Movimento Juvenil Eucarístico (Cruzada Eucarística) a Rede Mundial de Oração do Papa, cujo símbolo é o Coração de Jesus, ícone do amor de Deus pela humanidade. “Eis o coração que tanto amou os homens”, segundo a visão de Santa Margarida, em Paray-le-Monial (França). O Apostolado da Oração originou-se em Vals-les-Bains (França), num colégio jesuíta, dirigido por Padre Gautrelet, em 1844. No Brasil, o seu primeiro núcleo foi fundado na Igreja de Santa Cruz do Recife, em 20 de junho de 1867. Entretanto, foi em 1871, na cidade de Itu (SP), que o movimento religioso se solidificou, graças ao empenho de Padre Bartolomeu Taddei, S.J. O Cardeal Dom Sebastião Leme, quando arcebispo do Rio de Janeiro, assim se expressou: “O renascimento espiritual do Brasil é obra do Apostolado da Oração”, o qual intensificou a vida eucarística com a prática sacramental das primeiras sextas-feiras. Marcou a espiritualidade e vivência litúrgica de muitas paróquias. Revitalizou a prática religiosa individual e familiar, por meio da consagração dos lares ao Coração de Jesus. O Brasil também lhe foi dedicado por ocasião do XXXVIº Congresso Eucarístico Internacional, celebrado em 1955, no RJ. A solenidade litúrgica do Coração de Jesus é celebrada na sexta-feira, oito dias após a festa de “Corpus Christi”, entre maio e junho. Todavia, várias comunidades católicas comemoram-na, no mês de setembro. Isso acontece há cento e vinte anos em Umarizal, onde se mantém forte apelo devocional ao Sacratíssimo Coração. Existe uma explicação histórica para isso. Entretanto, cabe primeiramente lembrar que o Brasil conta com dezesseis dioceses que têm o Sagrado Coração como padroeiro, sediadas em diversos estados. No Rio Grande do Norte, existem cinco paróquias e dezenas de templos com esse orago. A primeira paróquia potiguar com tal título foi erigida em Mossoró, em 1926, por decreto do bispo diocesano de Natal, Dom José Pereira Alves. Em 1964, Dom Gentil Diniz Barreto a suprimiu, incorporando parte de seu território à recém-criada freguesia do Alto de São Manuel. Deste modo, a paróquia de Umarizal passou a ser no RN a mais antiga e tradicional com esse patrono, criada em 04 de janeiro de 1959, no episcopado de Dom Eliseu Simões Mendes. No entanto, a antiga capela com tal invocação data de 1902, construída no lugarejo Gavião por Padre Abdon Odilon Malibeu de Lima. No ano de 1901, em sua primeira desobriga pastoral naquela localidade introduziu a devoção ao Coração de Jesus. Aquele sacerdote (também bacharel em Direito) era natural de Campina Grande (PB). Recém-ordenado, fora nomeado pároco de Piancó e, pouco tempo depois, transferido para Martins, onde permaneceu, até 1904. De lá, foi exercer o sacerdócio em Cametá (PA), a convite de seu conterrâneo Dom Santino Maria da Silva Coutinho, escolhido bispo de Belém (PA). Dentre as comunidades que celebram a festa do Coração de Jesus, em setembro, Umarizal é fiel aos fatos, à história e tradição. Há um acontecimento determinante. Aos 18 de setembro de 1864, Pio IX beatificou Margarida Maria. Seus devotos brasileiros começaram a rezar uma novena, rogando a Deus pela sua canonização, ocorrida em 1920. O novenário era coroado com uma missa solene, no dia 28 do referido mês. Assim, explica-se a centenária festa do Sagrado Coração de Umarizal, em setembro. Acrescente-se a esta motivação histórico-religiosa o período da safra nos sertões nordestinos, perdurando até o último trimestre do ano. Isso facilitava os festejos do padroeiro, pois proporcionava maior poder aquisitivo à população. Bíblica e liturgicamente o Coração de Jesus é a expressão do amor misericordioso, da solidariedade e ternura de Cristo. “Vinde a Mim vós todos que estais sobrecarregados e eu vos aliviarei. Meu fardo é leve, meu jugo, suave.” (Mt 11, 29).

27/09/2021

Marcelo Alves Um inimigo dos loucos Henrik Ibsen (1828-1906), o genial dramaturgo, nasceu numa pequena vila portuária da Noruega. Mas o seu teatro (ele foi também diretor) e a sua poesia não mimetizaram a gelidez da sua terra natal. Ao contrário, ele foi um dos precursores do realismo e do modernismo nas artes cênicas. Fez escândalo, na verdade. Era um “denunciante” de falsos moralismos e coisas que tais. Algumas de suas peças são conhecidíssimas: “Peer Gynt” (1867), “Casa de Bonecas” (1879), “Um Inimigo do Povo” (1882), “O Pato Selvagem” (1884) e por aí vai. Alguns dizem ser ele, no seu métier, o segundo, apenas atrás de Shakespeare (1564-1616). E gigantes do teatro, gente como Gerhart Hauptmann (1862-1946), George Bernard Shaw (1856-1950), Oscar Wilde (1854-1900) e Eugene O’Neill (1888-1953), lhe pagaram tributo. Ibsen perambulou muitos anos pela Europa. Sobretudo pela Itália e Alemanha. Quem viaja, se sabido, enxerga longe. Faleceu, em glória mas já inválido, na capital Oslo. Para se ter uma ideia do tamanho de Ibsen, colho um trecho do “Ensaio sobre Henrik Ibsen”, de Otto Maria Carpeaux, que consta de um pequeno livro de bolso, intitulado “Seis Dramas” (parte 1), coleção “Mestres Pensadores”, da Editora Escala: “Henrik Ibsen é o maior dramaturgo do século XIX. O superlativo – superlativos têm sempre qualquer coisa de exagero – justifica-se desta vez, com toda facilidade. Goethe, Schiller e Alfieri pertencem inteiramente, ou pela maior parte da obra, ao século XVIII; Tchekov significa um crepúsculo melancólico; Strindberg já é o século XX. E na época entre o começo e o fim do século? Os epígonos não contam; a glória do teatro romântico francês já passou. Kleist, Georg Buechner e Gogol, três gênios dramáticos, que não se realizaram inteiramente. Quem há mais? O teatro realista francês, Augier, Dumas Filho, só tem hoje interesse como precursor de Ibsen, que lhe tomou emprestados os processos cênicos e os ambientes burgueses; Hauptmann e Shaw já confessam que o próprio Ibsen foi o ponto de partida das suas obras. Ficam ainda dois grandes nomes: Hebbel e Bjørnson. Em Hebbel a crítica literária reconhece hoje a substância ibseniana, prejudicada pelos artificialismos do epigonismo classicista; Hebbel desapareceu do palco onde apareceu Ibsen. Bjørnson, o patrício de Ibsen, e seu companheiro e inimigo inseparável durante a vida inteira, empalideceu cada vez mais ao lado do rival maior; dia virá – já veio talvez – em que a vida e a obra de Bjørnson servirão apenas para esclarecer melhor a vida e a obra de Henrik Ibsen”. O genial dramaturgo participa de todas as virtudes (e dos defeitos também, claro) do seu século. Um século, o XIX, que se orgulhava de ser o “século da ciência e da técnica”. Ibsen se preocupava com as descobertas da ciência, com as maravilhas e as angústias que os processos científicos provocam, e tinha a esperança, em razão das intervenções da ciência, num futuro melhor para a humanidade. E aqui jogo luz sobre a peça “Um Inimigo do Povo”, de 1882, cujo protagonista é um médico local que casualmente descobre e investiga a contaminação das águas de um balneário de uma pequena cidade norueguesa. O médico imagina ser aclamado por haver descoberto, através da ciência, a verdade. Por salvar a todos, locais e turistas, da infecção/doença generalizada. Mas “algo” fala mais alto. Do negacionismo a outros interesses menos confessáveis. Os habitantes se viram contra ele, o “inimigo do povo”. E a desgraça, individual e coletiva, está feita. Pelo menos para os de bom-senso, lembrando que a ciência, dizia o nosso Rubem Alves (1933-2014), nada mais é que o bom-senso organizado. Se evitar contaminação e doenças parece bom-senso – pelo menos para os de bom-senso –, isso não se mostra tão óbvio para aqueles outrora chamados de fanáticos loucos, e hoje, eufemisticamente, apenas apelidados de negacionistas. Se na fábula de Ibsen foi assim, hoje, quem alerta para a gravidade da nossa situação sanitária, para o número absurdo de mortes, para o charlatanismo de remédios ineficazes, para o impacto atual e futuro da política/visão negacionista, inclusive sob o ponto de vista econômico, é taxado por alguns de torcer pelo “quanto pior, melhor”, pelo “vírus” ou de outras baboseiras/loucuras mais. É luta. Afirmar a dura verdade e a ciência, ou simplesmente o bom-senso organizado, nos torna “um inimigo dos loucos”. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL 0 comentário

21/09/2021

Marcelo Alves Embora seja sua face mais brilhante, no que toca à presença do direito, não é só de Franz Kafka (1883-1924) e do seu “O processo” (1925) que é feita a literatura em língua alemã. Outros rostos devem ser iluminados, como o de Jakob Wassermann (1873-1934), em especial pelo seu romance “O Processo Maurizius” (1928). Jakob Wassermann nasceu em Fürth, cidade industrial próxima de Nuremberg, na Alemanha. Era filho de modestos comerciantes judeus. Abandonou o comércio e foi viver sua juventude aventureiramente. Começou a escrever artigos, contos e pequenas novelas. Era um democrata. Como judeu, sofreu bastante com o antissemitismo da época. Com o nazismo, foi para o exílio, sendo também destituído de sua cadeira na então Academia Prussiana de Letras. Faleceu em Alt-Aussee, na Áustria. Wassermann é considerado um representante maior da ficção psicológica. Seu primeiro romance foi “Os Judeus de Zindorf”, de 1897, no qual ele trata da história judaica na Alemanha, o que vem, claro, a ser uma temática comum nos seus primeiros textos. Mas é sobretudo uma “segunda fase” na carreira literária de Wassermann que nos interessa, esta focada na relatividade e nos problemas da Justiça. Começa com “Caspar Hauser ou A Preguiça do Coração”, de 1900. E “Christian Wahnschaffe”, de 1918, obra já à moda de Dostoiévski (1821-1881), coloca seu nome definitivamente nos círculos intelectuais de então. É dessa segunda fase, já em 1928, a sua obra-prima “O Processo Maurizius”, que, em síntese, cuida da estória de um erro judicial e do empenho de um jovem idealista (Etzel Andergast) para libertar o homem (um tal Otto Leonardo Maurizius, que dá título à obra) condenado injustamente, há quase duas décadas, à pena de prisão perpétua, pelo seu próprio pai (o íntegro promotor/magistrado Wolf Andergast). O jovem Etzel não admite o contraditório. Ele quer a justiça perfeita (e ela existe?) em lugar da justiça possível. E, sobretudo, sua luta padece de uma ilegitimidade original: sua motivação principal não é fazer justiça, mas se vingar do pai, a quem atribui os males do mundo, inclusive os padecimentos da mãe adúltera. Para o direito, “O Processo Maurizius” é interessante por incontáveis aspectos. De logo, segundo registra a minha edição do dito cujo (Abril Cultural, 1982), “o romance constitui um soberbo retrato da época da República de Weimar”, e sabemos nós a importância dessa república na história do direito, sobretudo pela sua célebre Constituição, tida pioneira na previsão dos direitos fundamentais sociais e cujo legado acabou se espalhando mundo afora. Ademais, é obra inspirada por um grande senso ético e de Justiça (perfeita ou imperfeita). Como anota Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em “A história concisa da literatura alemã” (Faro Editorial, 2013), trata-se de “um romance deliberadamente tendencioso, ético, como o são de tendência ética todos os grandes romances da literatura universal”. E mais: “Der Fall Mauritius [seu título no original] precede por pouco a ruína da sociedade alemã pelo nazismo”. Não obstante as nuanças da trama, sobretudo as motivações e intransigências das personagens, “O Processo Maurizius” deve ainda ser interpretado como uma advertência – e mais do que isso, como um libelo – contra o erro judiciário, que é tão desprezado por um certo grupo de pessoas, sejam juristas ou só idiotas da aldeia, que passam a vida ruminando ódio. Erro judicial, proposital ou não, isso não importa, devemos repeli-lo, já que ninguém – ninguém mesmo – deve ser condenado, assim privado de sua liberdade, ainda mais levado à morte (da qual, que eu saiba, não há volta), injustamente. Por fim, de interesse mais geral, temos os aspectos geracionais e os motivos psicológicos que condicionam a trama/processo, condições que o autor conhecia e fabulava tão bem. Duas mentalidades. Duas motivações. Duas faces da Justiça? Dois direitos? E tudo forjado por um drama familiar na forma de diversos conflitos. Mas isso aí já lembra outro grande russo, Tolstói (1828-1910), e a sua Ana Karênina (1877): “Todas as famílias felizes são iguais, mas as infelizes o são cada uma à sua maneira”. Marcelo Alves Dias de Souza Procurador Regional da República Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
A DANÇA DEMOCRÁTICA Diogenes da Cunha Lima Não vou tratar da dança política que, geralmente, é feia, sem graça. Cuido de autêntica dança, verdadeiramente popular, participativa, que expressa a identidade nordestina, brasileira. A Ciranda Nordestina acaba de ser reconhecida como Patrimônio Imaterial do Brasil pelo Instituto Histórico do Patrimônio Nacional- Iphan. A decisão baseou-se em primorosa resenha de pesquisadores da Instituição e da exata relatoria da Conselheira Ângela Gutierrez. A ciranda tem a sua primazia pernambucana, brilha também na Paraíba e em Alagoas, mas se manifesta em diferentes modalidades de ritmo e melodia nos demais estados nordestinos. A nossa ciranda tem origem portuguesa e chegou aqui, no início do século XIX, trazida pela Corte Real. Em Portugal, inicialmente, não era uma dança de roda, mas em fila com dançarinos infantis. Os cortesãos dançaram suas lembranças afetivas. É dança de roda em que os participantes se dão as mãos e movimentam-se ao ritmo de variados instrumentos de percussão: zabumba, ganzá e caixa. Às vezes, soam triângulos, pandeiros e raramente sanfona e instrumentos de sopro. É canto, dança e palavra. As pessoas entram na roda e saem dela à vontade. Não há vestimenta especial. Os passantes são, normalmente, convidados a entrar na roda e ser bailarinos (há improvisos de passos e poemas). Canta um mestre: “Por isso, dona Rosa, /entre dentro dessa roda, /diga um verso bem bonito, /diga adeus e vá se embora”. Semelha a sardana da Catalunha também dançada em roda na rua, musicada por instrumentos de sopro. A sardana migrou para as artes plásticas, como no famoso quadro de Henri Matisse. O nosso bailado também se trasladou aos melhores artistas plásticos. O povo carece de alegria, divertimento. A dança é vadiação nas praias, na cidade, no campo. Em ciranda recifense, o cantor avisa: “Estou aqui pra vadiar”. A Ciranda tem sido poderoso instrumento da educação. Pelo seu exercício nas escolas, as crianças aprendem a arte da convivência, além de música e poesia. É estimulada na sua afetividade e percebe o encanto da participação comunitária. Dançar junto é pertencer. A criança sente-se pertencer à terra comum, a nosso país. Porque cirandar é estar por dentro do seu grupo. No Rio Grande do Norte, estado eminentemente musical, a ciranda multiplica-se em composições musicais. A Missão de Pesquisas Folclóricas, inspirada em Mario de Andrade, registrou a presença da ciranda no Piauí, no Ceará e no Maranhão. E de outras danças populares. Já naquela época, ficou comprovado o acerto de Mario de Andrade: “O Brasil realmente não conhece a sua música nem seus bailados populares, porque, devido a sua enorme extensão e regiões perfeitamente distintas umas das outras, ninguém se deu ao trabalho de coligir essa riqueza”. Não distinguindo a condição social, cor, sexo, idade de seus múltiplos participantes, a Ciranda é prova da vocação democrática do Brasil.
O Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa Padre João Medeiros Filho Há algumas semanas, foi lançada a sexta edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa – VOLP, atualizando as palavras do idioma nacional e sua grafia, somando agora 382 mil verbetes. A publicação anterior – que data de 2009 – voltava-se especialmente para a escrita correta das palavras, em obediência ao Acordo Ortográfico Internacional, firmado pelas nações integrantes da comunidade de língua portuguesa. A atualização revela a dinâmica do vernáculo e a inclusão de neologismos úteis aos lusófonos brasileiros. Demonstra o zelo da Academia Brasileira de Letras – ABL, como guardiã da língua pátria. Houve acréscimo de mais de mil novos vocábulos ao português que falamos e escrevemos. Desde a quinta edição, a equipe do filólogo Evanildo Bechara – coordenador da Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, responsável pela redação do trabalho – vinha se dedicando a reunir novos termos (e significados), colhidos em textos científicos, literários e jornalísticos. Houve também sugestões enviadas por linguistas. Não basta o surgimento de uma palavra para que ela seja automática e oficialmente incorporada ao VOLP. Para tanto, necessita ganhar consistência linguística, bem como ser compreendida e largamente usada. Vários termos adicionados ao Vocabulário dizem respeito à Covid-19. Inegavelmente, a pandemia mudou a vida de muitos brasileiros, inclusive no emprego cotidiano de expressões. Além de palavras técnicas, geradas em decorrência do Sars-Cov-2, foram adicionados estrangeirismos, como “home office”, “lockdown” etc. De acordo com o professor Bechara, “nos últimos anos houve uma aproximação dos países, não só em termos políticos, sociais e econômicos, mas também por conta da pandemia.” Tal proximidade abriu a porta para o acréscimo de vocábulos, oriundos de vários idiomas, especialmente do inglês. Verifica-se o caso de “necropolítica” e “necropoder”, expressões cunhadas pelo filósofo camaronês Achille Mbembe. O momento político vivido pelo Brasil gerou para o nosso idioma novas acepções de vocábulos, tais como: negacionismo, terraplanice, lacração, pós-verdade, invertida etc. Das pautas ideológicas – alheias à semântica latina e à história do vernáculo – vieram feminicídio (assunto abordado em artigo já publicado neste jornal) e sororidade, em oposição a fraternidade. No entanto, em latim, “frater” (do qual se origina fraternidade) não significa somente o consanguíneo masculino. Para indicar este familiar a genuína palavra latina seria “germanus”, originando em português irmão – “hermano”, em espanhol e “germain” (hoje pouco usual em francês) – do qual provém irmandade. Sororidade torna-se um termo redundante, por conseguinte, desnecessário, expressando mais uma carga ideológica do que semântica. O mundo digital legou-nos também criptomoeda e ciberataque. Eis apenas alguns exemplos de étimos incorporados ao VOLP. Consoante os antropólogos, a sociedade é pautada pela cultura, que varia ao longo do tempo. Por vezes, surgem mudanças comportamentais e morais, modificam-se juízos de valor, influenciados pela tecnologia. A língua segue a cultura e tende a acompanhar as suas variações. Alguns períodos da história – como o que atravessamos – apresentam mais reviravoltas. Inegavelmente, há momentos de maior estabilidade, provocando menos novidade quanto à criação de termos. Há épocas caracterizadas por transformações bruscas. Nem sempre os étimos existentes descrevem acuradamente a realidade presente e vivida. Daí, a necessidade de criar vocábulos, importar ou ressignificar palavras antigas. Isto ocorreu, por exemplo, após a Primeira Guerra Mundial e, mais recentemente, com o advento da globalização, na década de 1980. Causou estranheza a certos estudiosos do idioma nacional a demora em atualizar o Vocabulário. Argumentam que em doze anos de pós-modernidade muita coisa aconteceu. Verificam-se várias modificações individuais e sociais, causadas pelos avanços tecnológicos. Além das transformações sociopolíticas, vive-se uma transição do modelo de sociedade industrial para uma pós-industrial, desencadeando uma alteração estrutural bem mais profunda. A variação nos padrões éticos ocasionou situações difíceis de descrever pelas terminologias vigentes. Isso repercutiu sobre a cultura e, portanto, sobre a língua. Sociólogos, cientistas políticos, jornalistas e antropólogos falam de uma ressaca da globalização, proporcionando o retorno de uma fase mais conservadora e nacionalista, enfatizando maior respeito e defesa de valores morais e culturais dos quais a língua é integrante. Dessa luta resulta igualmente uma alteração na linguagem acadêmica, social e religiosa. A palavra da Sagrada Escritura faz-nos refletir: “A língua tem poder sobre a morte e a vida!” (Pv 18, 21).