GILENO GUANABARA, sócio efetivo do IHGRN
Mês de
dezembro de 1968, em Natal. O Cinema Rio Grande apresentou uma das obras primas
de Luís Buñuel: La Belle de jour (A
Bela da Tarde-1967, com Catherine Deneuve). Tratava de uma adaptação do que se chamou “romance
burguês”, escrito por Josefh Kessel que, na visão de Jean-André Fieschi, (La
Nouvelle Critique, n. 58, 1972), comporta a vida de três mulheres – Célestine,
Séverine, e Trinstane. Uma delas, ao mais se aproximar do pecado mais cria
força e personalidade. No caso, a vida dupla de uma mulher, do lar durante a
maior parte do dia e prostituta, ao anoitecer, quando então recebia os clientes
sadomasoquistas num quarto de bordel. Um drama real feminino que retratava a
força que muitas mulheres sentem numa sociedade repressora e em crise de
valores morais. O drama solitário de uma transformista se valoriza pelo rigor da
dúvida com que Buñuell suscita com humor sobre o que faz a trama da vida em cada um.
O viés
pecaminoso individual torna-se maior, na resposta cinéfilo-pantagruélica do
mesmo Buñuel, com o filme Le Charme
Discret de la Bourgeoisie (O Discreto Charme da Burguesia – 1972). Neste, um
Buñuel que aborda os princípios do adultério burguês, no conflito entre o real
e o sonho, quando confessa estar no real,
(mas) estamos no irreal. Buñuel, o moralista, em busca dos falsos
semblantes só comprováveis nas rígidas formas de civilidade burguesa, coisas
próprias da coisificação inerentes ao egoísmo humano, já observado em La Belle
de Jour.
Na Argentina
da atualidade temos a História del Miedo
(A História do Medo), de Benjamím Neishtat, que no circuito brasileiro
recebeu o título de Bem Perto de Buenos
Aires. O autor se arrasta na abordagem do limite humano, o medo, através de
um suspense pesado, tema já observado pela sua conterrânea Lucrécia Mortel, em O Pântano. A fita retrata os efeitos da
conurbação urbana e os grupos sociais, os problemas na violência, presentes em
grandes metrópoles sul-americanas, a que Buenos Aires está incluída.
Brasil e
Argentina, irmãs siamesas dos mesmos problemas, quadro decorrente da crise
econômica que se prolonga anos após anos, lá e cá, revelam o esgotamento atual
de seus projetos políticos mais recentes. Na Argentina contemporânea, em final
do ciclo político kirchneriano, a questão que mais preocupa é a violência, embora
a Argentina não se mostre ainda um palco acirrado de violência urbana. Está
mais entre nós do Brasil, bem próximo
da Argentina, no subconsciente coletivo o poder da violência e do crime.
São questões
atuais da explosão social por que
passam as megalópoles latino-americanas, onde os ricos se resguardam e criam
seu diálogo em condomínios fechados, horizontais ou verticais, cercados de seguranças
e de cercas, luxuosos, verdadeiros subterfúgios, onde trocam a linguagem do
medo. A dimensão do clima de insegurança social entre ricos e pobres contamina também
os excluídos em suas insatisfações, ao verem as suas vidas miseráveis abortadas
de um sem-sentido, o que pode passar a ser moeda político/eleitoral da
linguagem demagógica, já ultrapassada, porém vigente. Foi assim, com efeito, os
“descamisados” do peronismo. É assim com as gangues dos jovens de rua, em Puerto
Rico, menos politizadas do que os camisas pretas fascistas, na Europa do século
passado.
A realidade
urbana atual contrapõe a convivência dessas massas, alocadas em favelas ou
cortiços aproximados de seus locais de trabalho, diante de condomínios
verticais inteligentes, próprios para o apartheid
social, cujos habitantes são detentores de condições econômicas que contrastam com
os seus vizinhos. Desde as transformações posteriores a 1930, no Brasil, o
Estado Social interveio, tendo em vista amenizar o conflito iminente, com o
peso do intervencionismo da burocracia estatal (Ministério do Trabalho;
legislação e Justiça do Trabalho; sindicalismo; instituições de previdência e
assistência social, etc.).
Ao contrário
do esperado, as ações estatais de protecionismo estimularam ainda mais as demandas,
aumentando o número de contendas. A lei trabalhista alavancou, de ano para ano,
um volume cada vez maior de postulações na justiça do trabalho, provocado pelo
conhecimento disseminado dos direitos outorgados. O custo os empregadores agregaram
no valor final da produção, gerando, de um lado, a expectativa de conquista econômica
por parte dos assalariados e, do outro, de ônus transferido para o custo final
a ser pago por todos, via inflacionária.
A partir da
primeira metade dos anos de 1950, o modelo desenvolvimentista/populista começou
a se exaurir, seguindo-se as várias crises políticas, a contar do ano de 1950, com
a nova eleição de Getúlio Vargas, que teve como candidato ao cargo de
vice-presidente, de fragilíssima representatividade nacional, integrante do quadro
do PSP paulista, o então Deputado Federal pelo Rio Grande do Norte, João Café
Filho. O cenário político agitado contaminou governos sucessivos, dado o
confronto entre setores conservadores, liderados pela UDN, e o trabalhismo, aí
incluídos os comunistas. Ao final, o desfecho trágico, o golpe de 1964, após as
variadas tentativas golpistas anteriores, a par de um momento de convivência
pacífica, durante o governo de Juscelino. Restou a industrialização sob a
consagração da Petrobrás e a usina metalúrgica de Volta Redonda; a criação do
polo metalúrgico; a inflação crescente; e a frágil política monetária que, apesar
de tudo, favoreceu o avanço da fronteira econômica, arcando os altos custos da
interiorização da Capital Federal, no Estado de Goiás.
Enquanto isso,
as províncias de outrora se agigantaram, face a migração das massas engalanadas
e atraídas pelo desenvolvimentismo econômico. Através do processo de emigração
rural intenso, dos anos de 1950/60, tornaram-se metrópoles ingovernáveis, tal o
recrudescimento das demandas sociais e da explosão da violência.
Observa-se em
a História del Miedo o cuidado de não
sediar os interesses sociais que visa, em se tratando de uma produção multinacional,
o que facilita serem conduzidos de forma equidistante os personagens comuns e identificáveis
nas grandes cidades sul-americanas e suas populações, com destaque a Argentina. No entanto, a crise urbana que reina nas
grandes metrópoles da América do Sul facilita identificar os verdadeiros atores
ou os seus bufões. Para isso, nada melhor do que lutar pela democracia.
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