Sobre H. L. A. Hart
Como prometido na semana passada (vide artigo “Sobre John Austin”), chegou a hora de conversarmos sobre o filósofo e jurista inglês H. L. A. Hart (1907-1992), o expoente maior da corrente jusfilosófica de pensamento denominada “jurisprudência analítica” (“analytical jurisprudence”). A contribuição de Hart para o estudo sistemático e aprofundado do Direito é enorme. Eu mesmo tenho uma grande dívida para com Hart, pois, em minha tese de PhD no King's College London – KCL, “The Brazilian Model of Precedents: a New Hybrid between Civil and Common Law” (2013), usei e abusei do conceptualismo e dos métodos da jurisprudência analítica em geral como ferramentas para sistematizar o modelo de aplicação de precedentes adotado no Brasil.
De ascensão judia, Herbert Lionel Adolphus Hart nasceu na pequena cidade balneário de Harrogate, situada no condado Yorkshire, no norte da Inglaterra. Estudou no New College da Universidade Oxford. Exerceu a advocacia, como “Barrister” (um dos dois tradicionais tipos de advogados ingleses, de par com os “solicitors”), de 1932 a 1940. Durante a 2ª Guerra Mundial, trabalhou no MI5, a agência do serviço secreto inglês para segurança interna. Após a grande Guerra, voltou à Universidade de Oxford, mais uma vez vinculado ao New College, mas desta vez para dar aulas. Em 1952, foi eleito “Professor of Jurisprudence” (“Catedrático de Filosofia do Direito”, entre nós) dessa multissecular Universidade, cadeira que ocupou até 1969. Publicou vários livros, sobretudo na década de 1960, entre eles: “Causation in the Law” (1959, em coautoria), “The Concept of Law” (1961, que é considerado sua obra-prima), “Law, Liberty and Morality” (1963), “The Morality of the Criminal Law” (1964) e “Punishment and Responsibility” (1968). Hart se autointitulava um “esquerdista não comunista”.
Os estudos de Hart, principalmente sua obra magna, “The Concept of Law”, revitalizaram o positivismo jurídico, que andava em baixa por aqueles tempos.
O Direito está mais conectado com a linguagem, e é dela mais dependente, do que nós normalmente pensamos. Hart, seguindo uma trilha aberta por John Austin (embora faça críticas a vários aspectos do pensamento deste) e por filósofos da linguagem como Ludwig Wittegenstein (1889-1951), disso se apercebeu e trabalhou com as ferramentas da linguística para resolver os principais problemas conceituais do Direito como entidade autônoma. Com imenso sucesso, a “jurisprudência analítica” de Hart foca no Direito, isolando-o em relação aos outros ramos do saber, analiticamente elucidando, construindo, definindo, distinguindo, sintetizando, catalogando, classificando, comparando e relacionando, em busca de referências seguras para o jurista, as principais categorias dessa ciência, tais como “direito”, “norma”, “regra”, “faculdade”, “obrigação”, “dever”, “sanção” etc.
É verdade que, às vezes, a “jurisprudência analítica” é confundida com a mera análise linguística ou a elucidação de conceitos abstratos da ciência jurídica. Embora essa tenha sido (e ainda seja) uma das principais preocupações dos “juristas analíticos”, o fato é que a filosofia de Hart foi bem mais longe. Como lembra William Twining (1934-), em “Have Concepts, Will Travel: Analytical Jurisprudence in Global Context” (artigo publicado em 2005 no International Journal of Law in Context – IJLC), ele tratou também de temas como o raciocínio e argumentação jurídica, a forma e estrutura dos sistemas legais, entre muitos outros, pavimentando, assim, uma estrada segura para os juristas que depois dele vieram.
Para se ter uma ideia, Hart buscou, a exemplo das tentativas empreendidas por John Austin (cujo pensamento ele criticou abertamente) e Hans Kelsen (1881-1973), estabelecer um “conceito do Direito”. Considerado um pensador moderado no positivismo jurídico, seu “conceito de Direito” é refinadíssimo e, por óbvio, seria uma grande petulância minha tentar explicá-lo razoavelmente aqui. Entretanto, é possível pontuar algumas “sacadas” de Hart. Antes de mais nada, ele reconheceu a grande variedade de formas como o Direito é criado e exigido (em uma crítica direta a teoria do “comando do soberano” de Austin). Em segundo lugar, “criou” uma distinção entre normas primárias e normas secundárias, afirmando que um sistema jurídico é composto por esses dois tipos de normas. As primeiras são as normas que governam a vida em sociedade, como, por exemplo, as normas que formam o direito civil e direito penal. As normas secundárias disciplinam a criação, a alteração, a revogação, o reconhecimento (pelos cidadãos) e o cumprimento (incluindo a via judicial) das normas primárias. E, nesse ponto, dissecando as normas secundárias, classificou-as em “rules” de “change”, “recognition” (exercendo esta espécie de norma um papel semelhante, mas não igual, ao da norma hipotética fundamental de Kelsen) e “adjudication”.
A filosofia do direito de H. L. A. Hart tem suscitado, ao longo dos anos, inúmeros debates. Ele mesmo participou pessoalmente de alguns. Aqueles com Lon Fuller (1902-1978) e Ronald Dworkin (1931-2013), por exemplo, são famosos. Mas é inegável a influência de Hart nas gerações seguintes, especialmente entre os mais afamados jusfilósofos contemporâneos do Reino Unido, como William Twining (aqui já citado), John Finnis (1940-, curiosamente um jusnaturalista), Neil MacCormick (1941-2009) e, sobretudo, Joseph Raz (1939-). Eu mesmo, como dito no começo deste riscado, “bebi” da filosofia de Hart, com a diferença que minha fama por lá é nenhuma.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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