05/08/2019


O grande francês
Dentre os juristas franceses do passado, um papel de absoluto destaque deve ser dado a um magistrado e professor de Orleans: Robert-Joseph Pothier (1699-1772). Pothier é, de fato, um forte candidato a maior jurista da França.
Pothier nasceu (no seio de uma família burguesa) e viveu toda sua vida em Orleans. Seu avô e seu pai haviam sido magistrados (conselheiros) nessa agradável cidade do norte da França, outrora libertada do jugo inglês pelas mãos de Santa Joana d’Arc (1412-1431). Ali Pothier também exerceu, por mais de cinquenta anos, o mesmo cargo de conselheiro no “Présidial” da cidade. A partir de 1749, foi também professor de direito francês da prestigiosa Universidade de Orleans.
Magistrado e professor até seus últimos dias, Pothier escreveu e publicou abundantemente. Era infatigável. “Um beneditino do direito”, como chamaram, poeticamente, os autores do “Dictionnaire historique des juristes français (XIIe-XXe siècle)” (publicado pela PUF – Presses Universitaires de France, sob a direção de Patrick Arabeyre, Jean-Louis Halpérin e Jacques Krynen, em 2007). Produziu, como era de praxe à época, “Comentários” aos costumes de sua cidade. Sua obra de maior destaque é, sem dúvida, as “Pandectae Justinianae in Novum Ordinem Digestae”, publicadas entre 1748-1752, mas que lhe tomaram, de trabalho, pelo menos vinte anos da sua vida. Mas ele também publicou inúmeros tratados sobre o que hoje chamamos de direito civil (sem prejuízo de haver escrito sobre outros ramos do direito de então).
Na verdade, se as “Pandectae Justinianae in Novum Ordinem Digestae” podem ser consideradas a obra-prima de Pothier, a fama desse grande francês deve-se mesmo, como lembra Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF Martins Fontes, 2014), “aos numerosos tratados de direito privado – sobre a propriedade, sobre os direitos régios, sobre as sucessões, sobre as obrigações, sobre a venda, sobre a locação, sobre o câmbio, sobre o matrimônio e outros temas mais – nos quais soube conjugar de modo magistral a disciplina do direito comum de vertente romanística com os mais válidos elementos de tradição consuetudinária francesa”. A obra de Pothier, diz-se, praticamente condensa e torna acessível ao público a quintessência do pensamento jurídico do “Antigo Regime” de então.
Mas não é apenas o conteúdo dos escritos que explica o sucesso de Pothier. É, também, uma questão de escolha e de estilo.
Pothier era um homem muito culto, familiarizado com a literatura e as instituições da Antiguidade clássica. Era um romanista. Todavia, como lembra Paulo Jorge Lima (no seu “Dicionário de filosofia do direito”, publicado pela editora Sugestões Literárias em 1968), à semelhança “de vários outros famosos jurisconsultos dos séculos XVII e XVIII, procurava conciliar a tendência historicista e excessivamente teórica da Culta Jurisprudência do Renascimento com as questões da prática jurídica, contribuindo, através de uma construção de caráter normativo, para a formação da moderna ciência do Direito”. O ecletismo e a pluralidade de fontes de Pothier, condensando as diferentes correntes do pensamento jurídico de então, são amplamente reconhecidas, e isso já explica, em parte, o sucesso de sua obra.
Doutra banda, deve ser enfatizada a acessibilidade do seu estilo de escrita. Como anota o já citado Antonio Padoa Schioppa, “os dotes de clareza, a utilização castiça da língua francesa, a tentativa simplificadora e unificadora de suas análises destinadas não tanto à ciência, mas à prática do direito e a sua aplicação explicam não apenas a grande e duradoura acolhida de seus tratados, mas também o fato de os codificadores napoleônicos terem se inspirado neles em grande medida, mesmo sendo anti-histórico considerar Pothier (assim como, com mais razão, Domat) uma espécie de codificador ‘ante litteram’ ou também simplesmente um potencial reformador. Seus tratados sobre as diferentes partes do Direito Civil influenciaram a feitura do Código de Napoleão”.
Diz-se – e li isso no “Dictionnaire” acima referido – que “ao menos um quarto dos artigos do Código provêm de Pothier”, reinterpretando suas lições ou mesmo reproduzindo, textualmente, suas opiniões. Não posso confirmar essa conta. Mas que Pothier pode ser considerado como um dos “pais do Código”, isso eu garanto.
E a coisa não para por aí. Pothier foi muito reeditado. Em vida e depois da sua morte. De forma condensada, como no conhecido “Pothier des notaires”. Ou em edições de suas obras completas, em vários volumes, sobretudo no decorrer do século XIX. Para a felicidade dos que vieram depois e dos que moravam ou moram longe da sua Orleans. Como registra o já citado “Dictionnaire”, “sua influência não restou limitada à França: ela acompanhou, talvez precedeu, a difusão do Código pela Europa napoleônica, na Itália, na Alemanha, nos Países Baixos, na Polônia, pela península ibérica onde várias de suas obras foram traduzidas para o espanhol e para o português; e mesmo além, pois essa influência foi exercida em todos os países do mundo onde, durante o século XIX, se fez sentir a influência intelectual do direito francês, até no Japão, na Argentina e nos países do Common Law, na Inglaterra e nos Estados Unidos, onde o Tratado das Obrigações, traduzido para o inglês, conheceu várias edições”.
Eu mesmo, na época em que estudava o direito civil com alguma profundidade, ouvi muito falar de Pothier. Bons tempos de bacharelado na UFRN e de mestrado na PUC/SP.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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