O novo intérprete
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
François Gény (1861-1959), filósofo e jurisconsulto, nasceu em
Baccarat, cidadezinha no nordeste da França, já perto da fronteira com a
Alemanha. Estudou com os jesuítas em Metz e obteve um “baccalauréat”,
aos 17 anos de idade, pela Universidade de Nancy. Foi estudar direito,
“sem nenhuma vocação hereditária ou preparação especial, mas com uma
simples curiosidade laboral”, teria dito, segundo reza a lenda. Em
direito, na respectiva faculdade da Universidade de Nancy, obteve a
licenciatura em 1882; o doutorado, em 1885. A partir de 1887, dedica-se,
exclusivamente, à carreira de professor. Primeiramente na Argélia
francesa. Depois em Dijon. Direito romano, direito penal e, sobretudo,
direito civil. Em 1901, volta a Nancy, onde, cada vez mais prestigiado,
décadas depois, encerra sua brilhante carreira. Mas seu prestígio
atravessou fronteiras, sendo ele agraciado com títulos de doutor honoris
causa por várias universidades europeias.
Com essa vida
dedicada ao magistério, tomando parte na renovação cultural e doutrinal
da Belle Époque, suas obras são caracterizadas pela atemporalidade e
pela unidade. E dois dos seus trabalhos merecem destaque: “Méthode
d‘interprétation et sources en droit privé positif: essai critique”
(1899) e “Science et technique en droit privé positif” (1914-1924).
François Gény foi um filósofo do direito e, como tal, foi influenciado
pela filosofia intuitiva de Henri Bergson (1859-1941), muito em moda
àquela época. Com anota Paulo Jorge Lima (no seu “Dicionário de
filosofia do direito”, publicado pela editora Sugestões Literárias em
1968), Geny, “partindo da afirmação de que os métodos puramente
racionais haviam amiúde incorrido em falsificações da realidade no campo
do Direito, entendia, sob a influência da filosofia de Bergson, ser
necessária uma operação complementar de natureza intuitiva para a
apreensão total dessa realidade. O Direito abrange duas categorias: o
dado, isto é, os elementos irredutíveis e anteriores a qualquer ordem
jurídica; e o construído, ou seja, o mecanismo pelo qual o dado é posto
normativamente em ação por obra de uma vontade artificial. (…).
Aceitando o princípio da ‘livre investigação científica’ do Direito,
afirmava Gény que não deveria ser ele, porém, uma criação arbitrária do
julgador ou do intérprete, mas um trabalho científico destinado a
extrair os dados da realidade social”.
Como pontos centrais da
doutrina jurídica de Gény estão a natureza e método do direito positivo.
Não que ele fosse um cultor da letra da lei à moda da Escola da
Exegese. Pelo contrário. Em 1889, essa Escola recebeu de Geny um forte
ataque com o ensaio “Méthode d‘interprétation et sources en droit privé
positif: essai critique”. E, assim, ele se torna o pai – ou, pelo menos,
o mais badalado representante – da escola ou doutrina da “livre
investigação científica”.
É exatamente nessa obra seminal de
Geny que o sistema das fontes do direito recebe talvez a sua mais
“aprofundada e inovadora” análise, como anota Antonio Padoa Schioppa (em
“História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”,
edição da WMF Martins Fontes, 2014). Em “Méthode d‘interprétation”,
François Gény propugna “a insuficiência da postura tradicional que
pretendia resolver qualquer questão de direito recorrendo às técnicas da
exegese dos textos legislativos, a começar pelo Código Civil, supondo
uma espécie de vontade implícita da lei também para os casos concretos e
para situações novas e portanto estranhas às previsões do legislador.
Sem negar de modo algum a obrigatoriedade dos Códigos, Gény ressalta que
as inevitáveis lacunas que todo texto legislativo deixa abertas
deveriam ser preenchidas recorrendo a um duplo canal. Antes de tudo,
através da fonte consuetudinária, presente em todo ordenamento e
ineliminável manifestação de vida da sociedade; em segundo lugar,
através da ‘livre pesquisa científica’, ou seja, recorrendo, com a
análise doutrinal, tanto ao mundo das informações sobre os fatos sociais
quanto à esfera das ideias e dos valores da justiça”.
Mais à
frente, em “Science et technique en droit privé positif”, que se mostra
quase como um “guia” à atividade do jurista, a questão é desenvolvida.
Aqui, num viés notadamente naturalista, Geny identifica no direito um
substrato de regras já dadas, predeterminadas pela natureza das coisas,
pela história e pela razão, que são ou podem ser diferentes daquilo que é
construído pela formalização técnica da atividade legislativa ou mesmo
pelo costume aceito. Ele, assim, denuncia o grande risco que é reduzir o
papel do intérprete – e, em especial, o intérprete juiz – a um mero
“fetichismo da lei”. Para Geny, como lembra Antonio Padoa Schioppa, o
respeito à lei deve vir acompanhado da “consciência de que as mudanças
sociais e os valores da justiça não podem ser alheios ao trabalho do
jurista, em seu necessário trabalho de intérprete e de operador: um
papel não meramente recognitivo, mas também criativo”.
Essas
ideias de Geny tiveram considerável repercussão na França e para além
dela, da vizinha Alemanha aos países da família do Common Law (vide o
realismo jurídico americano), durante todo o século XX. Foram refinadas.
Chegaram até nós. E foram, de fato, uma grande sacada.
Muito
embora, de um tempo para cá, elas tenham sido hiperinflacionadas, muitas
vezes descambando para uma tal “livre criação do direito”, à moda de
uma tal “Escola do Direito Livre”. Tempos estranhos. Mas isso é outra
história.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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