12/08/2019


O novo intérprete
François Gény (1861-1959), filósofo e jurisconsulto, nasceu em Baccarat, cidadezinha no nordeste da França, já perto da fronteira com a Alemanha. Estudou com os jesuítas em Metz e obteve um “baccalauréat”, aos 17 anos de idade, pela Universidade de Nancy. Foi estudar direito, “sem nenhuma vocação hereditária ou preparação especial, mas com uma simples curiosidade laboral”, teria dito, segundo reza a lenda. Em direito, na respectiva faculdade da Universidade de Nancy, obteve a licenciatura em 1882; o doutorado, em 1885. A partir de 1887, dedica-se, exclusivamente, à carreira de professor. Primeiramente na Argélia francesa. Depois em Dijon. Direito romano, direito penal e, sobretudo, direito civil. Em 1901, volta a Nancy, onde, cada vez mais prestigiado, décadas depois, encerra sua brilhante carreira. Mas seu prestígio atravessou fronteiras, sendo ele agraciado com títulos de doutor honoris causa por várias universidades europeias.
Com essa vida dedicada ao magistério, tomando parte na renovação cultural e doutrinal da Belle Époque, suas obras são caracterizadas pela atemporalidade e pela unidade. E dois dos seus trabalhos merecem destaque: “Méthode d‘interprétation et sources en droit privé positif: essai critique” (1899) e “Science et technique en droit privé positif” (1914-1924).
François Gény foi um filósofo do direito e, como tal, foi influenciado pela filosofia intuitiva de Henri Bergson (1859-1941), muito em moda àquela época. Com anota Paulo Jorge Lima (no seu “Dicionário de filosofia do direito”, publicado pela editora Sugestões Literárias em 1968), Geny, “partindo da afirmação de que os métodos puramente racionais haviam amiúde incorrido em falsificações da realidade no campo do Direito, entendia, sob a influência da filosofia de Bergson, ser necessária uma operação complementar de natureza intuitiva para a apreensão total dessa realidade. O Direito abrange duas categorias: o dado, isto é, os elementos irredutíveis e anteriores a qualquer ordem jurídica; e o construído, ou seja, o mecanismo pelo qual o dado é posto normativamente em ação por obra de uma vontade artificial. (…). Aceitando o princípio da ‘livre investigação científica’ do Direito, afirmava Gény que não deveria ser ele, porém, uma criação arbitrária do julgador ou do intérprete, mas um trabalho científico destinado a extrair os dados da realidade social”.
Como pontos centrais da doutrina jurídica de Gény estão a natureza e método do direito positivo. Não que ele fosse um cultor da letra da lei à moda da Escola da Exegese. Pelo contrário. Em 1889, essa Escola recebeu de Geny um forte ataque com o ensaio “Méthode d‘interprétation et sources en droit privé positif: essai critique”. E, assim, ele se torna o pai – ou, pelo menos, o mais badalado representante – da escola ou doutrina da “livre investigação científica”.
É exatamente nessa obra seminal de Geny que o sistema das fontes do direito recebe talvez a sua mais “aprofundada e inovadora” análise, como anota Antonio Padoa Schioppa (em “História do direito na Europa: da Idade Média à Idade Contemporânea”, edição da WMF Martins Fontes, 2014). Em “Méthode d‘interprétation”, François Gény propugna “a insuficiência da postura tradicional que pretendia resolver qualquer questão de direito recorrendo às técnicas da exegese dos textos legislativos, a começar pelo Código Civil, supondo uma espécie de vontade implícita da lei também para os casos concretos e para situações novas e portanto estranhas às previsões do legislador. Sem negar de modo algum a obrigatoriedade dos Códigos, Gény ressalta que as inevitáveis lacunas que todo texto legislativo deixa abertas deveriam ser preenchidas recorrendo a um duplo canal. Antes de tudo, através da fonte consuetudinária, presente em todo ordenamento e ineliminável manifestação de vida da sociedade; em segundo lugar, através da ‘livre pesquisa científica’, ou seja, recorrendo, com a análise doutrinal, tanto ao mundo das informações sobre os fatos sociais quanto à esfera das ideias e dos valores da justiça”.
Mais à frente, em “Science et technique en droit privé positif”, que se mostra quase como um “guia” à atividade do jurista, a questão é desenvolvida. Aqui, num viés notadamente naturalista, Geny identifica no direito um substrato de regras já dadas, predeterminadas pela natureza das coisas, pela história e pela razão, que são ou podem ser diferentes daquilo que é construído pela formalização técnica da atividade legislativa ou mesmo pelo costume aceito. Ele, assim, denuncia o grande risco que é reduzir o papel do intérprete – e, em especial, o intérprete juiz – a um mero “fetichismo da lei”. Para Geny, como lembra Antonio Padoa Schioppa, o respeito à lei deve vir acompanhado da “consciência de que as mudanças sociais e os valores da justiça não podem ser alheios ao trabalho do jurista, em seu necessário trabalho de intérprete e de operador: um papel não meramente recognitivo, mas também criativo”.
Essas ideias de Geny tiveram considerável repercussão na França e para além dela, da vizinha Alemanha aos países da família do Common Law (vide o realismo jurídico americano), durante todo o século XX. Foram refinadas. Chegaram até nós. E foram, de fato, uma grande sacada.
Muito embora, de um tempo para cá, elas tenham sido hiperinflacionadas, muitas vezes descambando para uma tal “livre criação do direito”, à moda de uma tal “Escola do Direito Livre”. Tempos estranhos. Mas isso é outra história.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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