28/08/2019







O mundo noir
Tomislav R. Femenick – Jornalista

A minha aproximação com o mundo “noir” deu-se antes mesmo de terminada a minha infância. Infância, diga-se de passagem, nada tradicional. Nos primeiros anos de vida conheci as agruras do campo de concentração que existia em Jundiaí, aqui mesmo perto de Natal, onde hoje fica a Escola Agrícola de Macaíba; igual a música de Dorival Caymmi, peguei um Ita (o Itanagé) e fui morar no Rio de Janeiro; por ordem da polícia política de Getúlio Vargas fique internado em um colégio – isso tudo antes de completar cinco anos de idade e simplesmente porque meu pai era estrangeiro e um figurão queria comprar por um preço vil um terreno que meu avô tinha aqui em Natal. Como era de se esperar, fiquei com sequelas; embora compreendesse tudo, somente comecei a falar aos sete anos de idade; falar, ler e escrever tudo ao mesmo tempo, mas tudo errado. 
Somente havia um jeito de corrigir: falar, escrever e ler, o mais que pudesse. Falar era só seguir os meus primos e primas, uma multidão de dezenas (meus avós maternos tiveram vinte e um filhos). Para escrever, tive ajuda de minha mãe, e das professoras Donas Maura e Guimar. Ler é que era o problema, as histórias infantis com “contos de trancoso” eram chatas de mais. 
Aí deu-se o milagre. Certo dia me deparei com um exemplar da revista “Mistério Magazine de Ellery Queen”. Foi amor à primeira vista. Eram contos policiais escritos em estilo “noir”, cujos personagens eram retratados sem muita sofisticação, bem próximo à “realidade da vida real”. Amores, ciúmes, brigas, interesse, vinganças; temas de trato e entendimento fácies, sem firulas, sem contorções. Essa temática floresceu nos Estados Unidos entre as duas guerras mundiais. Contos e livros eram publicados em edições impressas em papel barato, com capas mal preparadas e geralmente com baixa tiragem. Muitas dessas obras permanecem fazendo sucesso até hoje, com sucessivas reedições.  
Da revista foi apenas um salto para os livros policiais mais sofisticados de Agatha Christie, Arthur Conan Doyle, Georges Simenon, Raymond Chandler, Dashiell Hammett, Rex Stout. Mas foi o mundo noir da revista que criou raizes. Tudo a haver com um menino que não gostava de literatura infantil. Já adulto, catei todas as edições da Mistério Magazine nos sebos do Brasil inteiro. Era meu passatempo favorito, enquanto viajava o país inteiro fazendo auditoria. Hoje tenho a coleção completa, editada pela editora Globo, quando era gaúcha. 
Foi graças à literatura policial que me interessei pelos filmes noir, que assistia nas matinés ou nas soirées do Cine Pax, lá em Mossoró – assistia os firmes impróprios, mesmo não tendo idade para tanto, por um acordo tácito entre meu tio Mota Lima e ser Jorge Pinto, um dos donos do cinema. O Falcão Maltês, com Humphrey Bogart; O Cidadão Kane, de Orson Welles; Laura, com Gene Tierney; Um Retrato de Mulher, com Edward G. Robinson; Gilda, com Rita Hayworth (a mulher que não precisava tirar a roupa para ser sensual, bastava tirar as luvas ou fumar um cigarro) e Glenn Ford; o neo noir Casablanca com Humphrey Bogart e Ingrid Bergman, e um monte de outros. Os filmes que se baseavam naquela literatura “não formavam propriamente um gênero, mas um estilo visual”, pois quase todos eram em preto e branco com acentuado grau de contraste, com temática que se desenrolava em ambiente opressivo, corrupto, urbano e noturno.
Os heróis masculinos eram todos anti-herói, que habitavam o submundo, uns quase criminosos que eram seduzidos por mulher que os levavam ao crime. Já as mulheres eram os pontos centrais das narrativas, embora enfrentando um mundo de homens, eram “femmes fatales”, quase nunca heroínas recatadas. 
Vira e volta, o clima noir invade nossa vida. No início desta década o mundo da moda voltou-se para o clima do cinema dos anos 40. Editoras, estilistas de grandes grifes, revistas e desfiles se inspiraram na atmosfera dos filmes em preto e branco para lançar suas coleções e novidades, com as modelos assumindo os ares de olhar esfumaçado daquela época, porém tudo com a máxima elegância, é claro. 
Eu prefiro ficar com as luvas de Gilda.

Tribuna do Norte. Natal, 28 ago. 2019.

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