24/12/2019



O que fazer?
Duas circunstâncias me levaram a este artigo. O Natal e um livro com o qual topei dia desses. No período natalino, é comum fazermos doações – ou aumentarmos, se é o caso da pessoa já doar durante o ano – a quem mais precisa. Algo muito positivo, por sinal. E o livro a que me refiro é “A máfia dos mendigos: como a caridade aumenta a miséria”, de um tal Yago Martins. O autor é pastor batista e teria fingido “ser morador de rua” para explicar “por que nossas tentativas de vencer a pobreza continuam fracassando”. O livro tem até algumas sacadas interessantes. Mas, percorrendo suas páginas, topa-se com uma visão política predefinida e preconceitos de toda sorte. Cita, para não dizer mimetiza, mas num contexto completamente diverso, Theodore Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels, 1949-) e a sua “A Vida na Sarjeta – O círculo vicioso da miséria moral” (“Life at the Bottom: The Worldview that Makes the Underclass”, 2001). É um livro tendencioso. “Biased”, diriam os ingleses. Disso não gostei mesmo.
De toda sorte, lembrei-me de que o assunto – esse das doações a pessoas na rua – é mesmo polêmico. E, assim, lembrei de um filósofo de que gosto bastante e até já citei aqui: Peter Singer (1946-), australiano, autor de “Liberação animal” (“Animal Liberation”, 1975) e de “Ética prática” (“Practical Ethics”, 1979) e considerado o fundador daquilo que hoje chamamos de “direitos dos animais”. Mas Singer não é apenas um defensor dos animais. Ele também estuda a pobreza e o sofrimento no mundo. Quer combatê-los. Por isso, somando-se o fato de também defender o aborto e a eutanásia, ele é considerado um “homem perigoso”.
Para combater a pobreza, Peter Singer é a favor das doações. Mas o é de uma forma bem peculiar. Na década passada, Singer publicou “Quanto Custa Salvar Uma Vida? – Agindo agora para eliminar a pobreza mundial” (“The Life You Can Save – Acting Now to End World Poverty”, 2009), um livro que trata exatamente da polêmica questão das doações como forma de combater a pobreza e o sofrimento no mundo. Embora estejamos diante de uma discussão que perdura há bastante tempo, Singer toma uma posição claramente a favor das doações. Entretanto, ele propõe que isso se dê de forma mais ampla, organizada e regulamentada, através de organizações e organismos humanitários encarregados para tanto. Para ele, bem menos importante – na verdade, menos eficaz – é tirarmos nossos sapatos e darmos na rua a alguém que deles precise do que doarmos o valor desses sapatos, de modo sistemático e organizado, através de agências especializadas, para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade, estejam essas pessoas perto de nós ou mesmo mundo afora. E aqui já enxergamos o caráter utilitarista da filosofia de Singer.
E Peter Singer também parece concordar com o argumento de que dar dinheiro ou comida diretamente, sobretudo nas ruas, gera dependência. Esse tipo de doação deveria se dar apenas em casos de catástrofes, como incêndios, grandes secas, inundações etc. É mil vezes melhor fomentar a produção de alimentos e demais fontes de riqueza pelas próprias pessoas ou pela comunidade, seja essa comunidade a nossa ou mesmo outra a milhares de quilômetros de distância. “Melhor do que dar o peixe, é ensinar a pescar”, já dizia o velho ditado. Mas isso, sabemos, não é tão fácil assim.
O problema é que temos, todos nós, uma tendência de olharmos sempre para o que nos está mais próximo. Nossa família, nossos amigos, nossa comunidade, o momento. “A caridade começa em casa”, é verdade. Ademais, a presença de uma criança faminta na esquina de nossas casas – ou de um animal, para quem é amante da natureza – nos é muito mais tocante do que as estatísticas sobre a pobreza e a fome no mundo, sobretudo se isso diz respeito a comunidades distantes da nossa. Isso sem falar que doações a agências humanitárias podem nos parecer como gotas no oceano, que podem até se perder na burocracia e na roubalheira de estilo, sobretudo se comparadas àquela doação que mata uma fome aqui e agora.
Na verdade, Peter Singer defende um “altruísmo eficaz”, incentivando pessoas a trabalhar com formas mais eficientes de ajudar quem precisa. Ele sabe que doar faz bem também para quem doa. Fazer o bem, já pregava o Buda (Sidarta Gautama, 563a.C.-483a.C.), enche nossos corações de alegria (pelo menos os corações das pessoas normais). Mas Singer aponta evidências concretas de um melhor aproveitamento dos recursos com ações sistemáticas e racionais, defendendo que os resultados – muitíssimo melhores a longo prazo e para um número bem maior pessoas – são mais importantes que a recompensa moral momentânea.
E se a pergunta do título deste artigo é “o que fazer?”, Peter Singer parece simplesmente responder que nossas doações devem se basear menos na emoção e mais na razão. Eu acho a sacada de Singer excelente (muito embora não consiga ficar insensível ao sofrimento próximo a mim, desde já confesso). Só espero que, concordando com ele, pregando a doação para ONGs e agências humanitárias, eu também não seja considerado, nestes tempos bárbaros em que vivemos, um sujeito deveras perigoso.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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