As contradições (I)
As contradições normativas – ou, mais precisamente, as antinomias – são
muito comuns no direito. De fato, o ordenamento jurídico de qualquer
país é composto por um grande conjunto de normas (incluindo regras e
princípios), oriundas das mais variadas fontes, que podem apresentar,
num âmbito de validade aparentemente idêntico, oposições de conteúdo
entre si que as tornam incompatíveis. Sob o ponto de vista da lógica das
normas, a chamada “lógica deôntica”, teríamos, em um mesmo ordenamento
jurídico e supostamente sob um mesmo plano de validade, grosso modo,
situações do tipo: (i) uma norma obriga e outra proíbe; (ii) uma norma
obriga e outra permite; (iii) ou uma proíbe e outra permite um
determinado tipo de comportamento.
Esse tipo de situação,
entretanto, não é desejável. Mais do que isso, não deve ser admitida. Um
ordenamento jurídico, por caracterizar-se como um sistema, não pode
conter normas incompatíveis. Um sistema, por definição, há de ser
coerente. Nele, existindo normas incompatíveis, uma delas (ou mesmo
ambas, em uma situação limítrofe) deve ser “eliminada” ou ao menos posta
de lado na resolução do caso concreto.
Aqui é importante que se
frise a “transitoriedade” da inaplicabilidade, da norma assim tida, em
hipótese de antinomia normativa. Entre nós, tirando o caso da declaração
de inconstitucionalidade no controle abstrato pelo Supremo Tribunal,
com sua eficácia “erga omnes” (leia-se: força de lei), a norma
desconsiderada em caso de conflito não será extirpada do ordenamento
jurídico, mas, tão somente, inaplicada no caso concreto.
Como
ensina Victoria Iturralde Sesma, em “Aplicación del derecho y
justificación de la decisión judicial” (Editora Tirant lo Blanch, 2003),
uma das tarefas fundamentais do intérprete ou aplicador do direito é
verificar se há ou não antinomia entre as proposições aparentemente
aplicáveis a um caso concreto e, havendo, resolver satisfatoriamente
essa contradição. E o juiz – e aqui tomo esse operador do direito como
exemplo, uma vez que ele é o derradeiro resolutor dos conflitos de
interesses – deve fazer valer uma das normas ou proposições
justificadamente, usando dos conhecidos critérios para a solução das
antinomias jurídicas (hierárquico, de competência, cronológico e de
especialidade).
Entretanto, antes de adentrarmos propriamente no
trabalho do intérprete/aplicador do direito para a resolução das
antinomias normativas, é de bom alvitre classificarmos estas (as
antinomias) a partir de pontos de vista identificados pela doutrina
especializada.
De início, as antinomias normativas podem ser
classificadas, quanto ao grau de incompatibilidade existente, em reais
ou aparentes.
Diz-se que uma antinomia normativa é real se, após a
correta interpretação das normas em conflito e o adequado uso dos
critérios para a solução das antinomias, a incompatibilidade entre elas
não for de forma alguma resolvida. Teríamos, num mesmo ordenamento
jurídico, duas normas, oriundas de autoridades igualmente competentes,
com o mesmo plano de validade, que deixariam o intérprete/aplicador do
direito numa situação invencível para a escolha de uma delas. Sem
critério de solução razoável no ordenamento jurídico até então posto, a
solução passaria pela edição de uma terceira e nova norma, que
eliminasse o conflito.
Diz-se, ainda, que a antinomia real é
raríssima, uma vez que o direito possui tanto a via aberta da
interpretação das normas em conflito como um suficiente conjunto de
critérios para a solução de quase todas as possíveis antinomias. Eu vou
mais longe, entretanto. Arrisco dizer que no direito não existem
antinomias reais. O intérprete/aplicador do direito, trabalhando com os
atributos de unidade e coerência do sistema (leia-se: do ordenamento
jurídico), com a ferramenta multiúso da interpretação e com os critérios
para a solução da antinomias, sempre pode e deve encontrar uma solução
interpretativa que necessariamente resolva o conflito. Em outras
palavras, em direito, a solução sempre existe e todo conflito é apenas
aparente. Aliás, no que toca aos princípios – e aqui faço uso da
classificação das normas em regras e princípios, segundo a lição de
Robert Alexy (1945-) –, muitos sequer admitem a existência de antinomias
entre eles, uma vez que a ideia, na ponderação de princípios, é
exatamente fazer com que a aplicação de um não signifique o completo
aniquilamento do outro. Na verdade, eu considero o direito um sistema
que labora por meio de uma “lógica paraconsistente”, que desafia o
princípio da não contradição, mais ou menos nos moldes daquilo que foi
imaginado pelo nosso Newton da Costa (1929-). Mas isso é assunto para
uma tese de doutorado.
Por hoje, já tendo falado demais, rogo
deixarmos as demais classificações das antinomias normativas para a
próxima semana. Um tico de paciência, por favor.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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