16/07/2019


O caso antropofágico
Já escrevi aqui especificamente sobre o jurista norte-americano Lon Fuller (1902-1978), que, entre outras posições, foi professor na Universidade de Harvard por mais de três décadas. Seus muitos alunos, entres eles o também jurista Ronald Dworkin (1931-2013), ganharam o mundo. E os seus inúmeros livros e artigos – “Law in Quest of Itself” (1940), “Basic Contract Law” (1947), “The Case of the Speluncean Explorers” (badalado artigo de 1949), “Problems of Jurisprudence” (1949), “The Morality of Law” (1964), “Legal Fictions” (1967), “Anatomy of Law” (1968) e por aí vai – fizeram história no direito.
Dia desses, terminei a leitura do seu pequenino, mas clássico, “O caso dos exploradores de cavernas” (“The Case of the Speluncean Explorers”, no original, como citado acima), numa publicação da Livraria e Editora Universitária de Direito – LEUD, de 2008. A tradução não é boa, registro logo (e que me desculpem os responsáveis pela obra).
Mas o livro – falo aqui do que pensou e escreveu originalmente Lon Fuller – é muito bom.
Embora parcialmente inspirado em casos reais – U.S. v. Holmes (1842) e Regina v. Dudley & Stephnes (1884), com naufrágios em alto-mar e homicídio/canibalismo nos respectivos botes salva-vidas –, “O caso dos exploradores de cavernas” é uma obra de ficção.
O ano é 4300. E a coisa se passa na (fictícia) Suprema Corte de Newgarth, que julga um recurso de apelação dos réus contra a condenação, à morte por enforcamento, pelo Tribunal de Primeira Instância do Condado de Stowfield. Cinco exploradores de uma tal Sociedade Espeleológica ficaram presos em uma caverna após um grande deslizamento de terra. São resgatados, mas apenas quatro deles, após trinta e dois dias ali presos. O custo financeiro e humano do resgate, com dez operários mortos, é enorme. Descobre-se em seguida que os exploradores firmaram um contrato entre si, para que um deles fosse sorteado e sacrificado para servir de comida aos demais, evitando assim a morte de todo o grupo por inanição. O pacto foi sugerido por um tal Roger Whetmore, que veio a ser morto (e comido), mesmo tendo proposto, posteriormente, a anulação do pacto. Segundo a letra da lei do país, está-se diante de um homicídio, com previsão de pena de morte. Assim decidiu o júri de primeira instância. Pede-se clemência ao chefe do Poder Executivo. Apela-se à corte superior. Cinco magistrados – o presidente Truepenny e os seus colegas juízes Foster, Tatting, Keen e Handy – são encarregados de revisar o caso.
Antropofagia ou canibalismo não é um tipo penal autônomo no direito brasileiro. Todavia, nada mais repugnante ao homem (civilizado, aqui suponho), talvez até mais que o homicídio em si, do que esse “estranho” comportamento de alimentar-se da carne do seu semelhante. Como anota o nosso Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira” (Livraria José Olympio Editora, 1946), sobre quem também já escrevi aqui, “apesar de toda a sua perversidade o homem não admite que um seu semelhante, civilizado, e normal de espírito, se alimente de carne humana, como um carnívoro irracional, e, mais ainda, que mate para comê-la”. E “mesmo entre os selvagens raras são as tribos que a praticam, e, ainda assim, entre essas muitas o fazem por sentimento de vingança contra os vencidos que lhes caem em mãos ou em holocausto a seus deuses bárbaros”. Até na ficção, a antropofagia não é um tema fácil. Na literatura brasileira, registra o mesmo Lemos Britto, “a não ser na própria história, será difícil encontrar um trabalho literário em que se tome por tema o canibalismo. Só um escritor, creio, nos dá um caso desses, com todos os indícios, aliás, de verossimilhança. Trata-se de Rodolpho Theophilo, no conhecido romance da seca nos tempos do segundo império, A Fome”.
Entretanto, em “O caso dos exploradores de cavernas”, para a aplicação do direito ao caso concreto, a coisa não parece assim tão preto no branco. O homicídio seguido do canibalismo é temperado pelo estado de necessidade e a falta de esperança dos envolvidos. A escolha da vítima contratualmente e pela sorte dá um toque a mais ao caso. A desistência contratual é válida? Qual o peso da simpatia para com os réus e da comoção popular em tais casos? A condenação pelo júri tem sempre um quê de discricionariedade. Qual a lei aplicável? Qual o precedente aplicável? O perdão cai bem no caso? E tudo isso é analisado levando em consideração as muitas escolas da filosofia do direito – o jusnaturalismo, o positivismo, o historicismo, o consequencialismo e por aí vai –, o que empresta ao caso as mais diversas nuances.
É-nos apresentado, enfim, um caso em que diferentes veredictos se mostram possíveis. Essa diversidade de julgamentos escancara ao leitor a amplitude do direito e a dificuldade da sua aplicação. O nosso próprio “julgamento” é sucessivamente posto à prova toda vez que nos vemos diante de distintas interpretações dos fatos e de diferentes soluções para o caso, todas porém convincentes, constantes dos votos proferidos pelos cinco juízes da Corte Suprema.
E aí, acredito, está a lição deste livrinho: no direito, assim como na vida, existem meias verdades e verdades e meia. Ambas têm os seus pecados. Uma lição que deve ser aprendida pelos “donos do direito” de hoje. Aqueles com títulos, que fazem um uso indevido dos poderes do Estado. E, também, pelos chamados “idiotas da aldeia”. Eles que vivem canibalizando a opinião diferente, jurídica ou não, dos outros.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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