Decorativas e descritivas
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
No artigo da semana passada, eu lembrei que a arte, frequentemente,
imita a vida. E tem sido assim com esse pedacinho da vida que é o
direito. Há uma infinidade de temas jurídicos, sobretudo de direito
criminal, de que a arte faz uso: justiça, sistema judicial, prisões,
crimes não explicados, homicídios, sequestros, fraudes, corrupção e por
aí vai. Há as personagens – policiais, advogados, promotores, juízes,
partes, criminosos e testemunhas – em torno das quais pode sempre girar
uma boa estória. E, por fim, há a dramaticidade que o mundo do direito
criminal, representado nas ruas ou perante um tribunal do juri, pode
emprestar à ficção.
Entretanto, se a arte nunca está muito
distante da realidade, parece haver uma certa distinção – a melhor
palavra talvez fosse “desproporção” – entre o que se dá com as artes
decorativas (e falo aqui da pintura e da escultura) e as artes
descritivas (sobretudo o romance e o teatro). Enrico Ferri (1856-1929),
em seu “Os criminosos na arte e na literatura” (Ricardo Lenz Editor,
2001), passando em revista o mundo artístico dos “tipos criminosos”,
categoricamente afirma: “é sua maior frequência nas artes descritivas –
literatura ou drama – do que nas artes decorativas – pintura e
escultura”. Sendo que, “em cem quadros (e a proporção é ainda menor para
as estátuas), não há mais do que um ou dois tendo um criminoso por
assunto principal ou por figura de segundo plano; enquanto que, em cem
dramas ou comédias (a proporção é ainda maior que a proporção para os
romances), não há menos de noventa, cujo enredo não contenha um ou mais
crimes”. E lembra que, um quadro como “O assassino perseguido pela
vingança da justiça”, de Proudhon, em exposição do Louvre, é algo bem
raro.
Ferri aponta duas razões para tanto.
Em primeiro
lugar – e aqui repito as suas palavras um tanto poéticas –, “o pincel e o
cinzel se recusam a imobilizar um ato tão repugnante como é o crime e
que, por isso, nossos artistas, constrangidos a se curvarem ao gosto do
público, ou ao menos àquele de seus clientes prováveis, escolhem os
temas de quadros ou estátuas suscetíveis de agradar ao mundano, ao
comercialmente enriquecido e à aristocrata de raça. Ora, a imagem do
crime é banida dos boudoirs elegantes e das salas de refeição
principescas onde ela poderia gelar os sorrisos na esgrima do amor e
arruinar digestões já laboriosas”.
Em segundo lugar, afirma
Ferri: “se a pintura e, com mais forte razão, a escultura evitam a
figuração do criminoso, é que uma e outra, sobretudo a escultura por
causa do número sempre restrito de corpos modeláveis, não podem
imobilizar senão um momento da vida de uma ou de várias pessoas. A
instantaneidade da expressão opõe-se à representação estética do crime.
Porque, se ele nos interessa e nos revolta, é sobretudo pela descrição
evolutiva e sugestiva dos diversos momentos psicológicos da
premeditação, a qual todavia não é um sintoma infalível de perversidade
maior, mas prova também, às vezes, uma resistência do senso moral entre a
primeira ideia do crime e o seu epílogo sangrento ou fraudulento. Esta
primeira ideia pode nascer repentinamente num clarão do pensar, depois,
lentamente, invadir e ocupar toda uma consciência; ela pode também, sob a
aparência de um desejo novo, provir do foco duvidoso de um instinto
hereditário desenvolvido e morto por um meio propício. Ora, a análise do
romance ou a síntese do drama – as artes descritivas enfim – podem,
unicamente, mostrar-nos esta série de estados da alma. Eis porque os
tipos criminais são mais raros nas artes decorativas”.
Tendo a concordar com Enrico Ferri. Mas não inteiramente.
Relembro aqui que Ferri, junto com Cesare Lombroso (1835-1909) e
Raffaele Garofalo (1851-1934), é um dos três grandes da chamada Escola
Positiva do Direito Penal. Ferri foi, inclusive, aluno de Lombroso.
Em razão disso, em sua análise da coisa (falo da presença dos tipos
criminais nas artes decorativas), Ferri dá um grande destaque à ideia do
criminoso nato, com seus traços fisionômicos característicos, da
antropologia criminal lombrosiana. Para ele, os traços de fealdade
descritos pelo seu professor, “verdades muito recentemente conquistadas
pela ciência”, nunca escaparam à clarividência dos grandes pintores.
Segundo Ferri, “a propósito dos criminosos nas artes decorativas,
podemos concluir com Lefort: – ‘Os artistas de todos os tempos
deixaram-se guiar pela ideia de que a fealdade do corpo devia
corresponder à fealdade da alma, e de que o criminoso devia ter uma
fisionomia estranha, repugnante, inspirando desconfiança. Os pintores
das escolas italiana, flamenga, espanhola e francesa chegaram a criar,
empiricamente, um tipo cujos caracteres principais são: a face muito
larga para um crânio geralmente pequeno, algumas vezes em forma de pão
de açúcar (oxicefalia), ou muito desenvolvido na parte posterior
(braquicefalia occipital). A fronte é fugidia, achatada, limitada em
baixo pelos ss dos supercílios; os olhos, assimétricos, salientes e
redondos; o olhar, fixo, duro ou vítreo; as faces, grossas, com zigomas
enormes, fazendo desaparecer a saliência do nariz frequentemente
achatado, arqueado (arqueado como o bico das aves de rapina) e torto
para um dos lados. Os maxilares prognatas, os lábios grossos e revirados
para fora, o queixo muito grande e quadrado. As orelhas em asa são mal
feitas, pontiagudas em cima e com o lóbulo pouco destacado ou quadrado.
Os cabelos são abundantes; não há sinal de barba’”.
Dizer que
isso (de reconhecer a correção da tal teoria do criminoso nato) é
baboseira pseudocientífica seria muito grosseiro de minha parte. Mas,
definitivamente, nesse ponto, não concordo com o grande Ferri.
Afinal, nunca fui um lombrosiano. Nem quando aprendi um pouquinho de
criminologia na querida Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
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