11/09/2018


 
Marcelo Alves

 

Imitando a vida 

“A vida imita a arte”, diz-se, poeticamente. Pode até ser. 

Entretanto, mais comumente, a “arte imita a vida”. Na ficção policial, por exemplo, é o que se dá com a minha amiga Agatha Christie (1890-1976), que, para escrever algumas das suas mais badaladas obras, teve por inspiração, ao menos como pano de fundo dos seus enredos, crimes de fato ocorridos. 

Tomemos o caso da sua “The Mousetrap”, a peça há mais tempo em cartaz na história do teatro mundial. Desde a sua premiere, em outubro de 1952, com um Richard Attenborough (1923-2014) no papel protagonista do Detective Sergeant Trotter, foram inúmeros recordes, todos devidamente registrados pelo Guinness Book. A estória se passa em um hotel/pensão (Monkswell Manor) um pouco afastado de Londres. Recém-inaugurado, é administrado familiarmente pelo casal de proprietários, Giles e Mollie Ralston. No início da peça, a rádio informa a ocorrência de um homicídio em Londres e, mais ou menos ao mesmo tempo, no princípio de uma nevasca, as personagens/hóspedes vão chegando. Um jovem arquiteto, de comportamento afetado e confuso, chamado Christopher Wren. Mrs. Boyle, uma senhora extremamente desagradável que a tudo põe defeito. O Major Metcalf, militar aposentado. Miss Casewell, uma jovem de aparência masculina. Mr. Paravicini, com seu sotaque estrangeiro e pretensiosamente irônico. Por fim, o Detective Sergeant Trotter, que oficialmente se apresenta com o fim de investigar o homicídio acontecido em Londres. Monkswell Manor é tomada por uma nevasca. A comunicação telefônica é cortada. Ninguém mais entra ou sai. Mrs. Boyle é assassinada. Os dois homicídios estão interligados por um fio que leva a uma triste história familiar, de morte e sofrimento de crianças, passada há muitos anos. E, claro, o duplo homicida está entre as personagens restantes. 

Para quem não sabe, a história/estória de “The Mousetrap” está relacionada com o badalado “Caso O’Neill”, uma história de assassinato que, numa Inglaterra dedicada à vitória no fim da Segunda Guerra Mundial, roubou a atenção da população pela crueldade do acontecido. Como consta de um livro que comprei em um supermercado na Índia (isso mesmo, na Índia), “Agatha Christie: Shocking Real Muders behind her Classic Mysteries” (publicado pela HarperCollins Publishers/Índia em 2017), o garoto Dennis O’Neill, que ainda não havia completado 13 anos, em 9 de janeiro de 1945, “foi encontrado morto em seu lar adotivo no condado inglês de Shropshire, onde vivia com seu irmão mais novo Terence. Sua mãe adotiva havia telefonado para o médico local afirmando que Dennis estava tendo algum tipo de ataque. Mas quando o médico chegou ao local, às 15 horas e 30 minutos, já encontrou Dennis morto e em péssimas condições físicas. O exame pós-morte revelou que ele sofreu uma parada cardíaca como resultado de fortes pancadas no peito. Ele também foi gravemente espancado nas costas, tinha os pés cobertos de úlceras e estava severamente malnutrido”. Os pais adotivos, Reginald (de 31 anos) e Esther Gough (de 29), foram presos menos de um mês depois. Eles foram processados e condenados pelo ocorrido. O pequeno Terence, de apenas 10 anos, foi testemunha dos fatos e do caso, o que marcou sua vida para sempre. E está aí, no trauma real dessa criança, que na ficção de Agatha Christie explode anos depois, a inspiração de “The Mousetrap”. 

Todavia, o crime mais famoso a ter pulado da vida para um romance da Rainha do Crime foi o “Caso Lindbergh”, que serviu como inspiração para o maravilhoso “Assassinato no Expresso do Oriente” (1934, “Murder on the Orient Express”), romance que, registre-se, foi adaptado para a grande tela com reconhecido sucesso. Prefiro a superprodução de 1974 de Sidney Lumet (1924-2011) à de 2017 de Kenneth Branagh (1960-), confesso. 

“Assassinato no Expresso do Oriente” é um romance detetivesco que se passa na Europa do leste. Hercule Poirot está a bordo do Expresso do Oriente. Devido a uma nevasca, durante a noite, o trem para no meio dos Bálcãs. Na manhã seguinte, um dos passageiros, o Senhor Ratchett (na verdade o fugitivo Cassetti), é encontrado morto. Foi esfaqueado 12 vezes. Os ferimentos no cadáver, feitos com uma só faca, não combinam. Embora o crime tenha sido premeditado para parecer realizado por alguém de fora, o criminoso está certamente entre os passageiros. Todos os passageiros estão mentindo. Todos são suspeitos. O crime no Expresso do Oriente está relacionado com o sequestro e assassinato, nos EUA, de uma garotinha pelo tal Ratchett/Cassetti. E Poirot é encarregado de investigar isso tudo. 

O fato é que a personagem Ratchett/Cassetti e a sua história de vida, em torno do que gira a trama, têm como inspiração um dos mais famosos crimes do século XX, o do sequestro e assassinato, em 1932, do bebê filho do aviador e herói norte-americano Charles Lindbergh (1902-1974). O registro do “The Daily Mirror” de 13 de maio de 1932, quando os restos do bebê Lindbergh foram achados, dá uma noção da crueldade da coisa: “O filho de 20 meses do Coronel e de Mrs. Lindbergh, sequestrado da casa dos seus pais em Hopewell, New Jersey, em 1º de março, foi encontrado morto próximo à propriedade dos pais. Mrs. Lindbergh, grávida novamente, está devastada pela trágica notícia. Apenas o esqueleto da criança foi encontrado. Ele foi visto primeiramente por dois homens que estavam caminhando pelo bosque. Eles deram inadvertidamente com o esqueleto quase coberto por uma pilha de folhas e terra. Havia no crânio, logo acima da testa, um buraco quase do tamanho de uma moeda. Aparentemente, havia se tentado enterrar o corpo. A teoria da polícia é que o bebê foi morto a certa distância de Hopewell e foi levado de carro às imediações da propriedade e ali enterrado num último ato de vingança da parte do assassino ou dos assassinos não atendidos (...)”. 

Esse crime bárbaro mudou, dramaticamente e para sempre, a vida de inúmeras pessoas, não só as dos familiares. Uma jovem que trabalhava na casa, amedrontada pela investigação, suicidou-se. O jardineiro, que até o final alegava inocência, foi considerado culpado e eletrocutado. E o sucedido com o pequeno Charles Augustus Lindbergh Jr. também chocou e inflamou as pessoas do outro lado do Atlântico. Entre elas, coincidentemente quando da redação do romance (publicado em 1934), Agatha Christie, que, como sabemos, até pelas crises emocionais que passou pela vida – vide o caso do seu desaparecimento em 1926 – era (quase) gente como a gente. 

Marcelo Alves Dias de Souza 
Procurador Regional da República 
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL 
Mestre em Direito pela PUC/SP

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