24/02/2015

Marcelo Alves
Marcelo Alves 23 de fevereiro de 2015 15:23
Vai artigo publicado ontem, dia 22 de fevereiro de 2015, no jornal Tribuna do Norte:

Sobre A. V. Dicey

Tendo escrito na semana passada sobre Edward Coke (1552-1634), vou continuar hoje na mesma trilha escrevendo sobre outro grande constitucionalista inglês: A. V. Dicey (1835-1922). Curiosamente - e isso dá um toque pessoal a esta resenha -, é de Dicey o primeiro livro jurídico em inglês que adquiri na vida, sua “Introduction to the Study of the Law of the Constitution” (1885), numa edição de 1982 da Liberty Fund/Indianapolis (baseada na 8ª edição de 1915), que, há mais de dez anos, tentei ler inteirinho. Com um inglês sofrível, penei bastante, confesso.

Nascido no condado de Leicestershire, bem no centro da Inglaterra, Albert Venn Dicey, na juventude, estudou na Universidade de Oxford, vinculado ao Balliol College, onde se bacharelou. Em seguida, estudou direito em Londres e iniciou, em 1863, uma vitoriosa carreira na advocacia (como “Barrister”). Voltou a Oxford em 1882 para ocupar a “Vinerian Professorship of English Law” (prestigiosíssima cadeira cujo primeiro ocupante foi, de 1758 a 1766, William Blackstone) da quase milenar Universidade, restando, desta feita, vinculado ao All Souls College. Sem propriamente deixar a Universidade de Oxford, tornou-se, em 1899, o primeiro professor de direito da “jovem” London School of Economics.

Muito admirado por pensadores e juristas de viés conservador, tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos da América, Dicey foi, acima de tudo, um homem da academia (e isso é digno de nota, já que a maioria dos grandes juristas do “common law” foram, em algum momento de suas vidas, juízes). Deu aulas e escreveu, proficuamente, sobre a teoria e prática constitucional, especialmente sobre a Constituição britânica, mas também com um olhar em direção ao outro lado Atlântico, onde está a América. Dentre suas obras, podem ser destacadas: “Introduction to the Study of the Law of the Constitution” (1885), “A Digest of the Law of England with reference to the Conflict of Laws” (1886), “The Privy Council” (1887) e “Lectures on the Relation between Law and Public Opinion in England” (1905). Todas elas são, como disse Orrin K. McMurray em resenha para Columbia Law Review (Vol. 23, No. 8, Dec., 1923, pp. 793-795), cada qual em seu respectivo ramo do direito, obras de “first class importance”.

“Introduction to the Study of the Law of the Constitution” (1885) talvez seja sua obra-prima. Em um país de Constituição não escrita, ali se encontra uma definição de norma constitucional, que acabou consagrada, como “toda e qualquer norma que afete direta ou indiretamente a distribuição ou o exercício do poder soberano do Estado”.

Nesse trabalho seminal, talvez pela primeira vez, estão delineados, na forma como conhecemos hoje, os fundamentos e os contornos do princípio da soberania do Parlamento, que faz e desfaz a lei, constitucional ou infraconstitucional, tão caro para o direito inglês. Curiosamente, Dicey, apesar do seu papel fundamental no desenvolvimento desse princípio, foi, em “Lectures on the Relation between Law and Public Opinion in England” (1905)”, um dos primeiros defensores do referendo como forma de decisão política no Reino Unido, instituto que, a partir dos anos noventa, tem se tornado cada vez mais comum naquele país.

Dicey também foi ferrenho defensor de um Judiciário forte e independente. Para ele, as liberdades do povo inglês estão fundadas na soberania do Parlamento e na supremacia do “common law”, mas isso supervisionado por um Poder Judiciário livre de qualquer influência política. E aqui, claramente, ele se mostra um advogado do princípio da separação dos poderes e do controle jurisdicional, se não da constitucionalidade das leis, pelos menos da legalidade e da constitucionalidade dos atos da administração.

Por fim, Dicey foi talvez o maior defensor, no campo teórico, da “Rule of Law”, a ideia, tão bem desenvolvida no mundo anglo-americano, de que a lei, a Constituição, o Direito devem “governar” o Estado, prevalecendo à vontade arbitrária do soberano de plantão ou até mesmo do Parlamento eleito. Essa ideia (que não é nova, frise-se), de “governo das leis” em oposição ao “governo dos homens”, com seus vários corolários (igualdade perante a lei, acesso ao judiciário etc.), é prima-irmã da nossa ideia de Estado Democrático de Direito e está indissociavelmente impregnada na base do constitucionalismo moderno. E isso se deve muito a Dicey, pelo menos no que toca ao Reino Unido e aos Estados Unidos da América, onde esse jurista e professor inglês, como já referido, é também muito admirado.

Bom, se Dicey foi um conservador, era esse o tipo de conservador que eu gostaria de ser. Dos bons.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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