25/06/2014

A viagem de Leão Veloso (II)




João Felipe da Trindade (jfhipotenusa@gmail.com)
Professor da UFRN, membro do IHGRN e do INRG

Continuemos o relato de Francisco Othílio, iniciado no artigo anterior. Preparados que foram as cousas, partimos para a Vila do Príncipe (Caicó), chegando nós às 9 horas à fazenda São Paulo, do Sr. Rodrigo de Medeiros Rocha, onde passamos a força do sol.

Aquele lugar merece que eu faça dele especial menção, não só pela notável afabilidade com que fomos obsequiados, mas pelo indizível prazer que mostraram todas as pessoas da família do Sr. Rodrigo com a nossa chegada.

Com efeito, o Sr. Rodrigo, de quem tanto se não esperava, não pela falta de bons desejos, mas em razão de suas circunstâncias pouco lisonjeiras, obsequiou-nos a nada deixar a desejar.

A Vila do Príncipe não há dúvida que é hoje uma das melhores do sertão; e apesar de ser o seu solo nimiamente árido, todavia ali não faltam recursos; porque os seus habitantes empregam todos os seus esforços a fim de lhes serem menos difíceis e penosos os meios de subsistência.

O terreno sobre que se acha ela plantada nada tem de agradável, e ao contrário é feio e bastante pedregoso, porém muito nova e boa a sua edificação. A sua matriz é antiga, porém de boa construção; tem menos cômodos do que a de nossa capital, e é mesmo alguma coisa diferente em sua divisão interior, mas excede-a em asseio. Há um gosto extraordinário na festa da padroeira e tem ela tanta nomeada que muitas pessoas do centro do Ceará, Paraíba e até mesmo de Pernambuco vão ali passá-la com suas famílias. 

Um povo imenso assiste sempre às novenas e às missas cantadas, que ali celebram-se durante dez dias de festas. 

Calculou-se em quatro mil pessoas que acompanham a procissão, inclusive muitas senhoras, que por esse ato não são censuradas em razão de ser costume antigo.

O madamismo apresenta-se sempre com muito luxo, mas esse luxo pouco brilhava, porque muitos dos seus vestidos ainda são feitos por usos que por aqui vão sendo esquecidos.

O bom acolhimento, que prestaram os senhores Vigário Rafael Fernandes, e o Dr. Paulino Ferreira da Silva, é digno do maior elogio.

Depois de quatro dias de folganças passados entre o bulício de uma numerosa população, que igualmente gozava dos prazeres da festa, voltamos ao nosso primitivo estado de insipidez e de incômodos, sócios inseparáveis daqueles que viajam pelos sertões em épocas já um pouco inconvenientes.

E qual não foi a tristeza que infundiu em meu coração o dia 29, em que pela manhã muito cedo vi deixar aqueles lugares tantas famílias que haviam abrilhantado a festa com a sua assistência. A nossa viagem estava destinada para a tarde do dia acima referido. E de feito às 4 horas encetamos a jornada com destino à Serra do Martins, servindo-nos de guia até aquele ponto o Sr, José Bernardo de Medeiros, um excelente companheiro. Ao sairmos acompanharam-nos muitas pessoas, algumas das quais nos fizeram companhia até a – Saudade – Fazenda do comandante superior Mariz, onde pernoitamos e fomos recebidos cavalheiramente. Ali chegamos às 7 da noite.

No dia 30 pela manhã continuamos nossa marcha tocando na povoação de Jardim de Piranhas às 9 horas pouco mais ou menos. Demoramo-nos um pouco enquanto sua excelência examinava a Capela daquela povoação, e depois seguimos. Às 11 horas do dia estávamos na Fazenda Pilões (Distrito da Paraíba), fazenda de uma viúva cujo nome não tivemos a curiosidade de perguntar. Ali descansamos, recebendo-nos ela belissimamente. Às 5 horas da tarde tivemos de partir.

Ainda se viam perfeitamente no horizonte os coloridos raios de sol quando avistamos na eminência de um longo campo dois edifícios; eram a casa do major José Batista Saraiva e uma capelinha que acha-se ainda em obra. Estávamos na fazenda Cachoeira também na Paraíba, uma das mais bonitas que encontramos pelo Centro.

Naquele lugar passamos uma noite bem divertida. Depois de uma lauta ceia, que foi presidida por três filhas e sobrinhas do mesmo major, levamos até uma hora da noite ouvindo-as cantarem várias modinhas; dando eu também nessa ocasião uma prova de que não era muito hóspede no violão.

No dia 31 pela manhã muito cedo estávamos de marcha, passando às 7 horas na povoação de Belém (ainda na Paraíba) e chegando-se ao Patu de fora às nove e meia.

Tomamos a casa do capitão José Severino de Moura, que preventivamente havia mandado um próprio à Cachoeira com uma carta convidando ao Sr. Presidente para descansar lá, no caso de passar por aquele lugar. O Sr. José Severino tratou-nos como permitiam as suas circunstâncias, e convenço-me de que ninguém de nossa comitiva ficou descontente.

Antes de encerrar este artigo, alguns comentários: o dono da fazenda Saudade, citado por Othílio, não era o comandante superior das Legiões da Guarda Nacional da Vila do Príncipe e Acari, Antonio Álvares Mariz, como pensou Câmara Cascudo, pois faleceu em 1854, mas o filho dele, Manoel Monteiro Mariz, comandante superior da comarca do Seridó, que faleceu em 1864; José Bernardo de Medeiros era avô dos ex-governadores Dinarte Mariz e José Augusto; O vigário citado por Othílio devia ser Padre Francisco Rafael Fernandes, sobrinho do senador, Padre Francisco de Brito Guerra; Dr. Paulino Ferreira da Silva, bacharel, foi promotor e deputado da Assembleia Provincial; Havia um Rodrigo de Medeiros Rocha (Rodrigo Gordo), dono da Fazenda São Paulo, mas que em 1834 já era falecido. Talvez o Rodrigo, citado por Othílio, seja descendente daquele; O presidente Pedro Leão Velloso tinha 33 anos de idade, nessa época.





ALEJURN





ACADEMIA DE LETRAS JURÍDICAS DO RIO GRANDE DO NORTE
A L E J U R N

COMUNICADO

A Diretoria da ALEJURN, ao tempo em que cumprimenta todos os seus Acadêmicos, comunica que o Presidente Adalberto Targino ficará ausente do Estado até os meados do mês de julho vindouro e, por necessidade administrativa, assumimos a direção da entidade e, desde logo, por convite formulado pelo eminente confrade Diógenes da Cunha Lima, conclamamos a todos a prestigiarem hoje, pelas 17 horas, na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, o lançamento da nova edição da Revista da ANRL, sob a responsabilidade dos escritores Manoel Onofre Júnior e Thiago Gonzaga.
Oportunamente faremos a divulgação das ações programadas para o período de substituição.
Natal, 25 de junho de 2014
ZÉLIA MADRUGA
Presidente, em exercício
Carlos Roberto de Miranda Gomes
Secretário-Geral

24/06/2014


MIGUEL JOSINO

Jurandyr Navarro
Do Conselho Estadual de Cultura

De um tempo para cá a Advocacia modernizou-se. Antes, era um sufoco sair à pro­cura duma legislação aplicável ao caso concreto ou um texto jurisprudencial adequável para dar sustentáculo à tese esposada.
Daí, vir a propósito, a citação de Seabra Fagundes, em trabalho apresentado à 3ª Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção federal, em Recife (1968), sob o título "As imperfeições da elaboração legislativa e o exercício da Advocacia :
"Atualmente é tal o tumulto de legislação abundante e mal elaborada, que o exercício da Advocacia exige, na maioria das vezes, seja ela de empresa, seja forense, virtualidades além do comum. Por vezes a simples localização e identificação da norma aplicável, em meio a múltiplas leis que interferem com o mesmo assunto, um emendando ou revogando parcialmente as outras, exige horas e horas de pesquisa e estudo. Eis porque já se disse, com espírito satírico, porém veraz, que hoje é mais penoso para o advogado achar a lei ajustável a uma relação de direito do que interpretá-la ".
A evolução da Informática modernizou os Escritórios advocatícios, o trabalho dos Cartórios e o desempenho dos Tribunais.
A Justiça, hoje, anda mais célere e julga melhor. O advogado, o promotor, o procu­rador e o juiz são mais preparados profissionalmente que os seus colegas de antanho, salvante exceções. Para isto contribuiu muito o progresso tecnológico e a metodologia de ensino. Os cursos de pós-graduação são mais acessíveis, a especialização por áreas, os congressos, as palestras e conferências são facultados a um maior número de interessa­dos; sendo também, mais objetivos e práticos. O próprio Curso de Direito mudou. No nosso tempo tínhamos noventa por cento de aulas doutrinárias. No presente, as aulas práticas são dominantes, com a Prática Jurídica implantada, entre nós, pelo Professor Edgar Smith Filho, cujo pioneirismo no Nordeste tem sido aplaudido.
O telefone (DDD), o Fax, a Xerox, o gravador, o computador e outros instrumentos revolucionários no campo da técnica e da cibernética, são instrumentos preciosos e utilíssimos, enfim, a automação, possibilita o rápido desempenho e a mais perfeita tramitação processual e julgados da Justiça.            Miguel Josino Neto foi um advogado moderno e avançado nesse sistema informatizado, além de talentoso e competente profissional. Formando ainda, fez estágio na Consultoria Geral do Estado, recebendo apreciáveis ensinamentos.
O aprendizado em Direito Administrativo deu-lhe os meios imprescindíveis à sua  atuação na Procuradoria Geral do Estado, assim como na área judicial onde defendeu as  causas do Estado com diligente capacidade. Tudo fazendo jus ao título de primeiro lugar em concurso de provas e títulos para Procurador do Estado.
Em plena juventude, Miguel Josino já despontava como um dos melhores causídicos do Rio Grande do Norte. Nos dias que passam os moços se adiantam cedo na jornada intelectual.
O soberbo "batalhão sagrado " que Péricles criou a sua Atenas - a Mocidade, é que as pátrias depositam a sua esperança.
São dois pronunciamentos merecedores de meditação por parte daqueles que têm sen­so de responsabilidade: o primeiro, expresso por um pensador de renome internacional; e, o outro, de um mandatário espiritual de visão profética.
O dever e o exercício advocatício é dos mais importantes para a salvaguarda do Estado de Direito, porque, sem ele, tudo resvala para o governo da ignorância, das decisões apressadas e deliqüescentes, sem o imprescindível amparo jurídico.
"O governo de homens " — o que empurra o Legislativo com a barriga para dar azo ao seu ego paranóico - "é o governo do arbítrio"; o outro, "o das leis" - e da juridicidade - "é o Estado de Direito ", enfatizou o constitucionalista pátrio Luís Pinto Ferreira.
Diante da situação político-administrativa do Brasil, em que os escândalos se suce­dem na telinha da mídia eletrônica, o Direito deve resguardar a sua ética, a sua sisudez, o seu caráter deontológico. É o que se impõe, para o momento, a fim de neutralizar os efeitos deletérios do atraso em que se encontra a máquina administrativa dos Estados brasileiros; em sua maioria, dirigida por pessoas de formação técnica incompatível com o trato de maté­ria de direito administrativo.
O grande Hauriou foi um dos precursores a pregar a moralidade administrativa. Alu­de Cármen Lúcia Rocha, em trabalho especializado - Princípios Constitucionais da Admi­nistração Publica, 1994:
"A moralidade administrativa tornou-se não apenas Direito, mas direito público subjetivo do cidadão: todo cidadão tem direito ao governo sério e honesto".
Infunde-se, portanto, tais considerações, acima relacionadas, para a aplicação cor­reta do vero Direito atualizado nas questões estatais, exigindo-se o dever a ser cumprido consoante as normas jurídicas embasadas pela égide da moral.
E por essa diretiva prudente que é pautado o trabalho de Miguel Josino Neto, na Advocacia e na Procuradoria Geral do Estado.
Declarou José Ribeiro de Castro Filho, antigo Presidente do Conselho Federal da OAB:
"O advogado tão necessário como a justiça e como ela tão antigo, colocado entre os homens e a lei, deve ser o combatente armado, a palavra em luta, onde quer que o chame o direito ameaçado ".
Dos mais desgastantes o ofício advocatício. O culto advogado Levi Carneiro, certa vez, foi a um médico em Paris. Sem saber quem era o cliente, o clínico o examinou e disse: - "O senhor é Advogado ". - "Por quê? ", indagou Levi, admirado, já que não dissera a sua profissão. Respondeu-lhe o médico francês: - "O seu fígado está martirizado pelas coisas da vida ocasionadas pela profissão: o senhor tem "um fígado jurídico".
Como se vê, o advogado paga oneroso tributo à saúde pela sua atividade estressante, embora haja uma compensação, na sua tarefa nobilitante para a sociedade: é ele, o juris­ta, um criador de bens culturais, no dizer de Miguel Reale.
Orador eloquente da sua geração, Miguel Josino foi um Advogado para o terceiro Milênio da Era da Cristandade, porque abeberou-se das fontes cristalinas da cultura do Direito.
Atuante e competente o seu desempenho como Procurador Geral do Estado. Exorbitava, às vezes, das atribuições do cargo, a fim de melhormente servir ao Estado e aos cidadãos.


23/06/2014

A PRIMEIRA SANTA-CASA NO BRASIL

Por: GILENO GUANABARA, sócio do IHGRN


            No Relatório que fez o então provedor da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de Santos, Cláudio Luís da Costa, em junho de 1857, consta a informação de que o português Braz Cubas fundou, no ano de 1548, uma Santa-Casa, nas proximidades do povoado de São Vicente, o primeiro hospital do Brasil e da América, ao qual foi dado o nome de Casa dos Santos. Na mesma época, a sua mantenedora, a Confraria da Misericórdia, fora criada e também por sua iniciativa. A par e no entorno do hospital, com a contribuição dos primeiros habitantes, Braz Cubas edificou também uma igreja, a de Nossa Senhora da Misericórdia. Dada a similaridade com a Casa dos Santos (ou Hospital de Todos os Santos, como também era chamada) e a sua mantenedora, Confraria da Misericórdia, fundadas em Lisboa no ano de 1498, e para que servisse de referência o até então conhecido Porto dos Escravos, passou a constar o nome – Porto dos Santos - nas correspondências trocadas com a corte. Em face da sua importância comercial/marítima, ficou o nome da atual cidade de Santos, na baixada paulista.
            No relato histórico de João Luís Promesse – in Reminiscências de Santos, D. João III, Rei de Portugal, em Almeirim, no ano de 1551, concedera à Casa dos Santos igual tratamento dado por seu pai, D. Manuel, as casas de misericórdia instituídas em Portugal. A mesma informação também se encontra nos escritos do beneditino e paulista Gaspar da Madre de Deus (Memórias para a História da Capitania de São Vicente-1797).
            O português Braz Cubas havia chegado em São Vicente no ano de 1532, na comitiva de Martim Afonso de Souza, donatário-mor da Capitania, de quem recebeu em doação uma gleba de terra, onde atualmente se acha encravado o perímetro urbano do litoral, escoadouro de índios escravizados para as minas do Peru, atual cidade de Santos. Conhecedor da experiência da Casa dos Santos, fundada em Lisboa, bem como passando a conviver com a situação precária dos patrícios aqui residentes, vítimas das doenças que atingiam os primeiros povoadores, se propôs fundar nos limites de sua propriedade uma casa de socorro público, nos moldes da experiência da metrópole.
            Edificada a sede e organizada a lista dos confrades, enviaram carta ao rei de Portugal, com pedido de facilidades para a instituição que fundaram. A publicação conservada no Arquivo Nacional (Documentos Históricos), na referência à Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência de Santos, traz a informação de que o rei, D. João III, em setembro de 1548, solicitara esclarecimentos sobre o pedido de regalias e licença que os subscritores teriam requerido e obtido para a fundação daquela Casa, portadores que foram os integrantes do Conselho Ultramarino, Rafael Pires Pardinho e Antônio Henriques.
            Ainda hoje é mantida no arquivo da Santa-Casa de Santos o termo de Compromisso, tal como foi originariamente lavrado: - Compromissos e privilégios pelos quais a Irmandade ordena sejão cumpridas todas as obras de Misericórdia e espirituais, no quanto fôr possível, para socorrer as tribulações e miseria que padecem nossos irmãos em Christo, que recebem gozo do Santo Baptismo, a qual Confraria foi instituída no anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Crhristo de mil quinhentos e quarenta e oito, no mês de agosto, na Sé Cathedral desta mui sempre leal cidade de Lisboa, por permisso e consentimento da Illustrissima Senhora Rainha D. Leonor, a segunda que Santa é, a qual, aos tempo da instituição da dita confraria e irmandade, governava os Reinos e Sonhorios de Portugal, pelo muito alto, Excelentissimo e muito poderoso Senhor Rei D. Manoel Nosso Senhor...
Segue-se anexo à cópia do Compromisso o da Confraria da Misericórdia, com seus 21 capítulos que serviram de estatuto, tal como observado aqui, na colônia vicentina. Dispunha: Das obras de Misericórdia; como serão ordenadas e compostas para o serviço; como hão de ter ao entrar de confrades e em repreenderem os que não forem de forte condição; da eleição dos oficiais; do provedor e dos mordomos de cada mês e os da capela; dos pedidores de pão; das propriedades da Confraria; dos condenados à morte; a repartição dos cargos; de como visitar os presos e os envergonhados; da arrecadação das esmolas; Da confirmação e aprovação do compromisso por El-Rei; e os privilégios que sejam concedidos por El-Rei Nosso Senhor.
            O modelo da instituição Santa-Casa adotado em São Vicente copiou o modelo de Portugal. A piedosa rainha, casada com D. João II, instituíra no ano de 1498, a Casa dos Santos, a primeira Santa-Casa de Portugal. Coube ao seu confessor e esmoler, Frei Miguel Contreiras, influir para que se adotasse ali o espírito das confrarias de misericórdia fundadas em Florença, no ano de 1350, as quais se destinavam a dar guarida aos desamparados, abrigo e educação aos órfãos, dotes as donzelas desprevenidas, remédio aos enfermos, esmolas aos necessitados, pousada aos retirantes e sepultura aos mortos. Já em Portugal, as confrarias serviam também para dar apoio e manutenção financeira àqueles hospitais beneficentes.

            A rainha Leonor, irmã de D. Manuel I e viúva de D. João II, dera apoio material àquele primeiro hospital público instalado no claustro da Sé de Lisboa. Pela ordem, o rei e a rainha eram o primeiro e o segundo confrades, a que se seguiam os membros da nobreza que obrigatoriamente aderiam ao gesto de caridade e, por isso, eram chamados irmãos de misericórdia, motivo de orgulho de seus portadores. A fim de angariar fundos, para os fins filantrópicos a que se propunham, organizavam-se festas e se realizavam comemorações religiosas. Numa delas, no Natal de 1518, ficou famosa a fala de Gil Vicente. Nas presenças do rei, da rainha e das Damas da Corte, o escritor, doublé de comediante e ourives, declamou pela boca de um dos seus personagens, vivente no purgatório: “ – Vêdes outro perrexil/ e marinheiro sedes vós;/ ora assim me salve Deus,/ e me livre do Brasil.” (Auto da Devoção – Obras Completas, 1572). O dramaturgo satirizava as contradições, contabilizava o medo que causava o Brasil e as personagens pitorescas da sociedade da época. Era tempo da acumulação comercial que se expandia nos mares à distância; da linguagem satírica dos autos pastoris/medievais; do renascimento europeu e da prática salvadora da filantropia misericordiosa.

21/06/2014

Conversas com Manoel Onofre Jr

“Manoel Onofre Júnior foi um dos primeiros autores potiguares que li. Conheci a literatura desse importante escritor potiguar através de…

“Manoel Onofre Júnior foi um dos primeiros autores potiguares que li. Conheci a literatura desse importante escritor potiguar através de um livro chamado O Caçador de Jandaíras. Gostei tanto, que comecei a procurar nos Sebos da cidade outros títulos mais antigos dele. Na medida que fui lendo, me apaixonei pela maneira que ele conta as estórias. Conhecendo mais da variada obra literária de Manoel Onofre Jr., percebi que ele era muito mais do que um ficcionista, ele é um grande amante e defensor da literatura potiguar”, declarou o pesquisador Thiago Gonzaga.
Foi isso que encantou e motivou Gonzaga a escrever o livro “Literatura Etc. Conversas com Manoel Onofre Jr”, que tem como enfoque aspectos da produção literária local e será lançado nesta quinta-feira, dia 31, às 18h, na livraria Nobel Salgado Filho, pelo selo/blog 101 Livros do RN.
“Este livro é uma homenagem ao escritor Manoel Onofre Jr. que completa esse ano 70 anos de vida, e 49 dedicados a literatura potiguar. A obra é uma reunião de entrevistas, que tem como foco principal, a literatura local, com os principais livros e autores do RN, na visão do Manoel Onofre que é um dos nossos maiores pesquisadores”, conta o autor.
Thiago Gonzaga concedeu entrevista para O JORNAL DE HOJE. Confira!

O JORNAL DE HOJE – Manoel Onofre Jr. tem 49 anos dedicados a literatura. Na sua opinião, qual é o momento que mais lhe agrada na vida literária deste escritor potiguar?
Thiago Gonzaga – O Manoel Onofre Júnior publicou em 1983 , Chão Dos Simples, sem duvidas o livro  mais importante  dele como ficcionista. Mas na minha modesta opinião,  nos últimos anos ele vem dando uma enorme contribuição a historia da literatura potiguar com livros como ; Salvados (ensaios sobre livros/autores locais), Ficcionistas Potiguares, Contistas Potiguares, e Alguma Prata da Casa, que são obras que reúnem muito do  que temos de melhor nas nossas letras.
O JORNAL DE HOJE – Fale de uma forma resumida, qual é a importância para a cultura potiguar do conjunto da obra dele?
Thiago Gonzaga – A obra de Manoel Onofre Júnior além de ter valor literário, tem um valor histórico. Pois, além de escritor, ele é  um pesquisador preocupado em deixar registrado para as gerações futuras o essencial para conhecimento da nossa historia literária. Ele é sem duvidas  um dos mais importantes escritores potiguares. Só lamento que  escritores do nível dele, permaneçam emparedados na província, muitas vezes porque nao trocaram a placidez da vida regional pelo tumulto das grandes metrópoles.
O JORNAL DE HOJE – O que lhe motivou a escrever este livro sobre a obra de Manoel Onofre Jr.?
Thiago Gonzaga – Manoel Onofre Júnior foi um dos primeiros autores potiguares que li. Conheci a literatura desse importante escritor potiguar através de um livro chamado O Caçador de Jandaíras. Gostei tanto,que comecei a procurar nos Sebos da cidade outros títulos mais antigos dele. Na medida que fui lendo, me apaixonei pela maneira que ele conta as estórias.
Conhecendo mais da variada obra literária de Manoel Onofre Jr., percebi que ele era  muito mais do que um ficcionista, ele é um grande amante e defensor da literatura potiguar.
Meu trabalho como pesquisador da literatura local  também é inspirado no dele. Esse livro é uma homenagem, por ele esta completando 70 anos de vida, e 49 dedicados a literatura potiguar. Representa  também um encontro de gerações, que tem em comum o amor pela literatura local.
O JORNAL DE HOJE – Como foi o processo de produção desta obra?
Thiago Gonzaga – Depois que ele aceitou o convite, passei a visitar e ler os aquivos dele.  Selecionei algumas entrevistas que  ele deu ao longo dos anos, sempre tendo como foco principal a literatura do RN. Passei  em torno de  cinco meses para finalizar o trabalho, que ficou muito bonito graficamente e muito rico em informações literárias e culturais.
O JORNAL DE HOJE – Como surgiu a ideia deste livro?
Thiago Gonzaga – Sempre sonhei em fazer um trabalho em homenagem ao Manoel Onofre Júnior. Conversei com ele, e sugeri que poderíamos  comemorar esta data tao especial, porem, ao mesmo tempo homenagear a literatura potiguar que amamos tanto. Por isso o livro  tem  o título Literatura Etc., pois, além de abordar um pouco da carreira literária dele, foca nas entrevistas que ele deu falando sobre a literatura potiguar, inclusive relata o contato que ele teve com nossas personalidades literárias, como Câmara Cascudo, Zila Mamede, Homero Homem, e muitos outros.
O JORNAL DE HOJE – Fale um pouco sobre ele?
Thiago Gonzaga – O Manoel Onofre Júnior é uma figura humana incrível, além do grande amor que ele tem pelos livros, é a simplicidade em pessoa.
O JORNAL DE HOJE – Você pretende dar sequência a este projeto?
Thiago Gonzaga – Vou continuar escrevendo e homenageado nossos autores e livros. A literatura potiguar precisa ser descoberta pelos próprios potiguares e os escritores ” mais velhos “precisam ser apresentados a nova geração.
O JORNAL DE HOJE – Quem seria os próximos homenageados ?
Thiago Gonzaga – Tenho uma vasta lista de escritores que pretendo homenagear, mas tenho a preocupação de homenagear os vivos, principalmente os que li, e sou fã da obra. Estou terminando  um livro em comemoração aos 45  anos de vida literária do Diógenes da Cunha Lima.  Tenho ainda trabalhos com Nelson Patriota, Ruben G. Nunes e Francisco Sobreira… emfim, a  lista é imensa.
Parafraseando uma frase do Newton Navarro, ele disse certa vez , que era tempo de cuidarmos mais dos nossos escritores, não deixar para amanha, para depois, já fomos muito displicentes com os do passado.
O JORNAL DE HOJE – E, qual a sua visão sobre a realidade atual da literatura potiguar?
Thiago Gonzaga – A literatura potiguar nunca esteve tao rica e diversificada, temos publicações para todos os estilos e gostos. O que falta, são politicas publicas de incentivo a leitura,começando das series iniciais de ensino, e cumprir o que sugere a constituição do estado, que é dar a disciplina de Literatura e Cultura do RN nas escolas.
A UFRN lançou em 2012 uma Pós Graduação em Literatura e Cultura Potiguar, esse também foi um importante passo para valorização das nossas obras e autores, da universidade vão sair muitos estudiosos e pesquisadores.
O JORNAL DE HOJE – Quais são seus próximos projetos literários?
Thiago Gonzaga – Tenho alguns trabalhos inéditos, sempre voltados para divulgação e valorização dos nossos autores, por exemplo; Panorama Do Conto Potiguar, uma coletânea de contos com os escritores potiguares que surgiram nesses últimos anos. E  Personalidades Literárias Do RN, um livro repleto de entrevistas com autores locais.

18/06/2014



O POETA GRAXEIRO
Gileno Guanabara, advogado e sócio do IHGRN

Na visita que d. Pedro II fez à província da Bahia, no ano de 1859, dentre as autoridades locais que o recepcionaram, o soberano foi surpreendido e reverenciado pela presença de um poeta popular, o desabrido João Nepomuceno da Silva.

            A sua verve estava mais para a picardia audaciosa e irreverente de um Gregório de Mattos, de Laurindo Rabello, dos Pessoa da Silva, cujo sortilégio era o de não desperdiçar a oportunidade de atanazar a vida dos poderosos e seus privilégios. Tamanho era o rigor de suas críticas mordazes que o povo o apelidou de poeta graxeiro.

            Não perdoava a falta de sorte de sua amargurada vida, compensando suas frustações em atanazar o comportamento e escândalos impróprios para a época. Nesse aspecto, pesavam mais o seu caráter impulsivo e as firulas de um talentoso vate contrariado.

            Divulgada com certa antecipação a visita imperial à sede da Província da Bahia, as autoridades se preocuparam de estabelecer uma agenda de homenagens e recepções que comportassem a presença tão ilustre. Um boato se espalhou. Dava conta que João Nepomuceno gostaria de falar diretamente com o imperador. Certamente, a sua fala não corresponderia ao protocolo exigido para os cumprimentos de praxe. Pelo contrário, a sua fala seria a da irreverência e reclamos do povo. Dessa forma, o poeta graxeiro se manifestaria, como um direito seu, de sua livre pensamento e liberdade. Ninguém o impediria de se expressar perante o visitante ilustre. Portanto, as ameaças de prisão que passou a sofrer, as promessas para convencê-lo em contrário, nada o fez desistir do seu intento.

            No dia 7 de outubro, d. Pedro II chegou à sede da Província. Dois dias antes, Nepomuceno desaparecera. Ninguém sabia a respeito do seu paradeiro, somente boatos e conjecturas. Formara-se nas ruas o cortejo de recepção, as ruas embandeiradas, as moças das janelas atiravam pétalas de flores ao visitante. Ao final, no coreto do largo do Theatro (atual Praça Castro Alves), a tropa apresentou armas, enquanto a d. Pedro foram entregues as chaves da cidade das mãos do alcaide presidente, conselheiro Herculano Ferreira Penna. O povo delirou. Os olhos do imperador marejavam de tanta felicidade, tal a manifestação popular que o acolhia.

            Por fim, o cortejo solene se dirigiu ao salão nobre do palácio, dando-se as apresentações dos deputados, dos juízes, dos vereadores, dos chefes políticos, com os devidos afagos e abraços. De repente, um murmurinho ecoou entre os presentes. Sem que se soubesse de como, nem de onde, adentrou na sala o poeta graxeiro, para surpresa do anfitrião e das autoridades gratas.

            Com frieza tumular, indiferente a preocupação dos olhares que se entrecortaram, o poeta dirigiu-se ao imperador, a quem reverenciou em genuflexão respeitosa. Sem soçobro, retirou do bolso da fatiota o alfarrábio em tiras, aumentando ainda mais a dúvida sobre o que teria o poeta escrito, para ler naquela ocasião. D. Pedro, num gesto cavalheiresco, aquiesceu e sinalizou permitindo a sequência do ato. João Nepomuceno iniciou a peroração de sua verve: “ – Majestade dá licença... // Fardas saiam dos cantos bolorentas,/ De balões uma vez fiquem varridas/ As lojas do commercio brasileiro/ Escovem-se as caponas e se remendem./ Velhos façam a barba; as moças comam/ De sepo, e fitas se lhe façam ornadas/ Colletes de três terças e dois palmos./ Gravatas grandes de atrevidas pontas/ Calças estreitas de fevella e cós.” //  “Que cem anos já têm, se escovem hoje;/ Chapéos sem abas de afliladas copas,/ Camisas grandes, que a canela roçam,/ Tudo veja contente a luz do dia,/ E o grande arsenal se apinhe de povo;/ Não entrem negros que não têm monarca/ Os pobres também não, que não têm rei.”.

            A introdução poética já antecipou a exposição das mágoas do poeta que prosseguiu em referência ao professorado incompetente, apesar da preocupação que causava, à exceção da tranquilidade do imperador: “Primeiro que os professores/ Dão lição lá nas escolas,/ De manhã de chambre velho./ De tarde de camisolas.”. E numa referência ao tratamento dispensado aos internos da Santa Casa, satirizou em versos: “O café, que não ilude,/ Parece agua barrenta;/ É o café que o mal aumenta,/ Bem adverso à saúde./ O mingáu parece grude/ Feito dagua e farinha,/ Ralo caldo de galinha/ Bem picado de vinagre;/ Parece tripa de bagre/ Misturado com sardinha.”

            Àquela altura dos acontecidos, a insolência do poeta graxeiro, que parecia não ter mais fim, investiu contra a magistratura: “A nossa Relação de bons e maos/ Desembargadores se compõe; é certo/ Que ali há mais brejeiros que homens sérios.” E em referência às graças que a visita a todo lixo na Província encobriu, vaticinou: “Senhor meu, toda a Bahia/ Nada aqui em porcaria./ Eu vos afirmo, eu vos juro/ Se não fosse a vossa vinda/ Oh! Existiria ainda/ Em cada canto um monturo.”

            Não fora a condescendência do soberano que ouvia infenso ao desaforo do poeta, contrariamente ao desespero manifesto pelo presidente da Província e o chicote fez estalar entre as paredes do Palácio: “Ninguem mette aqui prego sem estopa,/ Ninguem faz um favor sem pedir três.” E concluiu a apologia de seu desabafo, sem alterar o monocórdio: “Eu, João, poeta novo,/ Graxeiro denominado,/ Que não tarda proclamado/ Ser defensor de seu povo, Faço sciente que o rei/ Que visitou nossa grei,/ Recebeu meu relatório/ Este folheto notório/ Que sobre o povo atirei.”

            No silencio que a seguir durou, o poeta graxeiro, em despedida, fez a última saudação ao monarca e, em passos cadenciados, se retirou do recinto, sem ser aparteado. A sua sátira estava registrada solenemente, apesar das advertências e tentativas de conter a sua indignação. A partir de então poderiam surrá-lo, prendê-lo, mas a sua vindita estava cumprida. A sua história estava contada.