CADÊ O ESPÍRITO DAS LEIS?
Valério Mesquita*
Retroajo a obra do
escritor francês Charles de Montesquieu (1689-1755), denominada “O Espírito das
Leis”, de 1748, para abordar como cidadão a súmula do Supremo Tribunal Federal
que restringe às Câmaras de Vereadores o julgamento das contas dos prefeitos
municipais. A competência era dos Tribunais de Contas dos Estados com fulcro na
Lei da Ficha Limpa de 2012, que punia com a inelegibilidade, devolução de
recursos oficiais, os gestores desonestos responsáveis por dinheiros, bens e
valores públicos da administração direta, indireta, fundações, e,
principalmente, prefeituras municipais. Em vez, de se buscar na decisão o
verdadeiro espírito da lei que a sociedade brasileira esperava do S.T.F., o
plenário, por maioria apertada optou pelo entendimento estapafúrdio de conferir
aos vereadores a competência de somente eles julgarem os executivos, cabendo
aos TCE’S o simplório parecer prévio e meramente opinativo. Votaram com a
premiação à impunidade os ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Edson
Fachim, Cármem Lúcia, Marco Aurélio e Celso de Melo. Os aplausos, no entanto,
vão para os ministros que defenderam a moralidade pública, nesse momento
crítico em que o Brasil está atolado: o relator Luis Roberto Barroso, Teori
Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux e Dias Toffoli. E o pior: em caso de omissão das
câmaras municipais no julgamento das contas - o parecer “auxiliar” - dos
Tribunais de Contas não serve para gerar a inelegibilidade prevista em lei
complementar nº 064 de 1990. E prá quê os tribunais de contas, doravante,
precisarão emitir pareceres prévios e pífios para nada significarem? Concordo
com a assertiva de que a deliberação do S.T.F. é um escandaloso retrocesso,
votado às vésperas de um pleito eleitoral, modificando as regras democráticas
de combate à malversação, fortalecendo a impunidade e dificultando o excelente
trabalho do Ministério Público.
Lamento que a resolução
do Supremo não exprima, nem se coadune com o momento histórico de regeneração
da vida pública brasileira. Não vejo na determinação, diga-se apertada, o
espírito da lei da qual falou Montesquieu, e sim, uma visão medonha,
apavorante, tal e qual o reaparecimento de defunto ou de alma penada, cujo
fetiche assombroso está traduzido na frase do aludido filosofo francês: “Leis
inúteis, enfraquecem as leis necessárias”. Ou, “Quanto menos os homens pensam,
mais eles falam”. Processo de deificação em vida. Agora, vem a pergunta que não
pode calar: que tipo, modelo, capacidade, estrutura, têm as câmara municipais
para emitirem juízo de valor em julgamento de cunho técnico, contábil,
financeiro aos poderes executivos respectivos, sem nenhum demérito aos edis,
nem as edilidades? O S.T.F., com a resolução, substituiu o princípio, o
critério técnico pelo voto político do vereador! São raríssimos os plenários
legislativos pelo país afora, isentos da influência dos senhores prefeitos.
Isso é fato consabido e consagrado nos usos e costumes da malfadada politicagem
brasileira.
O papel dos Tribunais
de Contas não pode ser confundido como se fosse uma “linha auxiliar” da
comunidade. Eles detêm, além de pessoal treinado, técnicos de nível superior,
contabilistas, advogados, toda uma estrutura eficaz e competente, sem esquecer
as Escolas de Contas que ensinam e treinam os gestores públicos de modo geral.
Tanto é assim, que cinco ministros do colegiado do Supremo entendem e
reconhecem que os próprios políticos não podem julgar a sim mesmos. Sobre qualquer
matéria a ser discutida de despesa pública, na qual, os vereadores propugnaram
ou alimentem interesse pessoal ou eleitoral, é evidente que o embaraçoso voto
será político, substituindo-se aí o princípio que permite distinguir o erro da
verdade, o discernimento, a prudência, a circunspecção, enfim, a idoneidade, a
aptidão. Espero que o placar sofrido da votação possa ser motivo de reexame
posterior da matéria num futuro próximo, como já aconteceu com outros temas
apreciados na mesma Côrte. E que venham as manifestações das cabeças pensantes
do Brasil, contra o alastramento do império da corrupção. A barganha e a
propina, doravante, irão funcionar no Brasil tal e qual uma olimpíada.
(*) Escritor.