O
portal de notícias G1 publicou o último artigo assinado pelo escritor
João Ubaldo Ribeiro, que seria publicado no próximo domingo (20).
O escritor morreu na madrugada de hoje [18 de julho], aos 73 anos, vítima de embolia pulmonar.
Leia o artigo, com o título:
O correto uso do papel higiênico
O
título acima é meio enganoso, porque não posso considerar-me uma
autoridade no uso de papel higiênico, nem o leitor encontrará aqui
alguma dica imperdível sobre o assunto. Mas é que estive pensando nos
tempos que vivemos e me ocorreu que, dentro em breve, por iniciativa do
Executivo ou de algum legislador, podemos esperar que sejam baixadas
normas para, em banheiros públicos ou domésticos, ter certeza de que
estamos levando em conta não só o que é melhor para nós como para a
coletividade e o ambiente. Por exemplo, imagino que a escolha da posição
do rolo do papel higiênico pode ser regulamentada, depois que um estudo
científico comprovar que, se a saída do papel for pelo lado de cima,
haverá um desperdício geral de 3.28 por cento, com a consequência de que
mais lixo será gerado e mais árvores serão derrubadas para fazer mais
papel. E a maneira certa de passar o papel higiênico também precisa ter
suas regras, notadamente no caso das damas, segundo aprendi outro dia,
num programa de tevê.
Tudo
simples, como em todas as medidas que agora vivem tomando, para nos
proteger dos muitos perigos que nos rondam, inclusive nossos próprios
hábitos e preferências pessoais. Nos banheiros públicos, como os de
aeroportos e rodoviárias, instalarão câmeras de monitoramento, com
aplicação de multas imediatas aos infratores. Nos banheiros domésticos,
enquanto não passa no Congresso um projeto obrigando todo mundo a
instalar uma câmera por banheiro, as recém-criadas Brigadas Sanitárias
(milhares de novos empregos em todo o Brasil) farão uma fiscalização por
escolha aleatória. Nos casos de reincidência em delitos como esfregada
ilegal, colocação imprópria do rolo e usos não autorizados, tais como
assoar o nariz ou enrolar um pedacinho para limpar o ouvido, os culpados
serão encaminhados para um curso de educação sanitária. Nova
reincidência, aí, paciência, só cadeia mesmo.
Agora
me contam que, não sei se em algum estado ou no país todo, estão
planejando proibir que os fabricantes de gulodices para crianças
ofereçam brinquedinhos de brinde, porque isso estimula o consumo de
várias substâncias pouco sadias e pode levar a obesidade, diabetes e
muitos outros males. Justíssimo, mas vejo um defeito. Por que os
brasileiros adultos ficam excluídos dessa proteção? O certo será, para
quem, insensata e desorientadamente, quiser comprar e consumir alimentos
industrializados, apresentar atestado médico do SUS, comprovando que
não se trata de diabético ou hipertenso e não tem taxas de colesterol
altas. O mesmo aconteceria com restaurantes, botecos e similares. Depois
de algum debate, em que alguns radicais terão proposto o Cardápio Único
Nacional, a lei estabelecerá que, em todos os menus, constem, em letras
vermelhas e destacadas, as necessárias advertências quanto a possíveis
efeitos deletérios dos ingredientes, bem como fotos coloridas de gente
passando mal, depois de exagerar em comidas excessivamente calóricas ou
bebidas indigestas. O que nós fazemos nesse terreno é um absurdo e, se o
estado não nos tomar providências, não sei onde vamos parar.
Ainda
é cedo para avaliar a chamada lei da palmada, mas tenho certeza de que,
protegendo as nossas crianças, ela se tornará um exemplo para o mundo.
Pelo que eu sei, se o pai der umas palmadas no filho, pode ser
denunciado à polícia e até preso. Mas, antes disso, é intimado a fazer
uma consulta ou tratamento psicológico. Se, ainda assim, persistir em
seu comportamento delituoso, não só vai preso mesmo, como a criança é
entregue aos cuidados de uma instituição que cuidará dela exemplarmente,
livre de um pai cruel e de uma mãe cúmplice. Pai na cadeia e mãe
proibida de vê-la, educada por profissionais especializados e dedicados,
a criança crescerá para tornar-se um cidadão modelo. E a lei certamente
se aperfeiçoará com a prática, tornando-se mais abrangente. Para citar
uma circunstância em que o aperfeiçoamento é indispensável, lembremos
que a tortura física, seja lá em que hedionda forma — chinelada,
cascudo, beliscão, puxão de orelha, quiçá um piparote —, muitas vezes
não é tão séria quanto a tortura psicológica. Que terríveis sensações
não terá a criança, ao ver o pai de cara amarrada ou irritado? E os pais
discutindo e até brigando? O egoísmo dos pais, prejudicando a criança
dessa maneira desumana, tem que ser coibido, nada de aborrecimentos ou
brigas em casa, a criança não tem nada a ver com os problemas dos
adultos, polícia neles.
Sei
que esta descrição do funcionamento da lei da palmada é exagerada, e o
que inventei aí não deve ocorrer na prática. Mas é seu resultado lógico e
faz parte do espírito desmiolado, arrogante, pretensioso,
inconsequente, desrespeitoso, irresponsável e ignorante com que esse
tipo de coisa vem prosperando entre nós, com gente estabelecendo regras
para o que nos permitem ver nos balcões das farmácias, policiando o que
dizemos em voz alta ou publicamos e podendo punir até uma risada que
alguém considere hostil ou desrespeitosa para com alguma categoria
social. Não parece estar longe o dia em que a maioria das piadas será
clandestina e quem contar piadas vai virar uma espécie de conspirador,
reunido com amigos pelos cantos e suspeitando de estranhos. Temos que
ser protegidos até da leitura desavisada de livros. Cada livro será
acompanhado de um texto especial, uma espécie de bula, que dirá do que
devemos gostar e do que devemos discordar e como o livro deverá ser
comentado na perspectiva adequada, para não mencionar as ocasiões em que
precisará ser reescrito, a fim de garantir o indispensável acesso de
pessoas de vocabulário neandertaloide. Por enquanto, não baixaram normas
para os relacionamentos sexuais, mas é prudente verificar se o que
vocês andam aprontando está correto e não resultará na cassação de seus
direitos de cama, precatem-se.
João Ubaldo Ribeiro (1941-2014) era escritor e imortal da Academia Brasileira de Letras