31/10/2019


FINADOS

Valério Mesquita*

Algo de especial na ordem do mundo são os mortos. O maior segredo da vida é a morte. Pode vir com naturalidade nos lábios de uma criança ou escondida nas incertezas da aventura humana. O elemento essencial segue aquele princípio aristotélico de que “tudo deve ter um começo, um meio e um fim”. Qualquer travessia neste mundo não é impune. Da morte não jazem apenas destroços, choros, lamentos, que incomodam a alma. Até porque é mistério incomunicável de Deus. No livro das memórias os falecidos podem ser esquecidos mas nunca os seus nomes. Meus olhos têm a fome da saudade. Porque na epifania eles serão lembrados, mesmo em andrajos saídos das urnas escuras do sono demente.
Em Macaíba, o velho cemitério de São Miguel, é o guardião triste da população e da anistia dos pecados. Lá sempre visito e revisito os meus mortos, parentes e amigos. Pelas alamedas leio as lápides, principalmente as antiquadas, para revolver na mente os vultos ancestrais habitando a cidade. Restituem-me as casas senhoriais, os hábitos, as roupas, os folguedos, as festas, tudo lírico, romântico, calmo e sem pressa. Auta de Souza tecendo versos ali perto do rio Jundiaí. Henrique Castriciano de fraque e gravata borboleta, à passos largos caminhando em direção ao cais para não perder a lancha com destino a Natal. Calçadas e ruas atravessadas pelas figuras solenes de Tavares de Lyra, João Chaves, Alberto Maranhão e Augusto Severo. As mulheres fortes, matronas, espartanas, Senhorinha de Manoel Amaro, Marocas e Joaninha, Ana Olindina, Cacilda Mesquita, Arcelina Fernandes, Nazaré Madruga, Teresa Gomes, Luiza e Sofia Curcio, Belita Ribeiro, Zebina Alecrim e tantas e tantas outras, que vêm como fantasmas bondosos.
Sim, o cemitério é um universo multifário de loucos e de líricos, de ricos e pobres, de santos e boêmios, de todos eles importam apenas as passadas perfórmances, na alegria ou na dor, no esporte ou no carnaval. Ah, os velhos atletas do campo santo: Passarinho, Caíco, Paulo Preto, Aguinaldo, Barbosinha, Loreto e muitos outros que ainda me fazem ouvir os gritos do último gol. Os carnavalescos Zé Batata, José Ludovico, José Jeep, Ailton Feitosa, jaziam na fria lousa do esquecimento sem ruídos de cuíca e tamborim. Vendo a morte assim tão perto é inevitável a ressurreição de lembranças, das marcas e dos passos que se foram. Dia de finados é seminário de desaparecidos, procissão de relembranças, obituário de fantasmas camaradas.
Finalmente cheguei ao túmulo dos meus pais, tios, tias, avós, irmão e filho. Algo esquisito percorreu-me o corpo. Todo aquele que é sensível, emocional, capta sinais. Ali em frente dormia os restos de minha mãe, a última a ser ali sepultada. Senti imensa e incontrolável comoção. Ao redor, todos cumpriam o mesmo ritual, a mesma liturgia, que só vai acabar com o mundo. Não somente preces, nada mais, restam aos mortos. Não apenas a solidão, inexprimível, incurável e eterna. O dia de finados, hoje, é mais para advertir aos vivos do que para lembrar os mortos. Se cada um que visitasse o cemitério repetisse a frase que “eu serei você amanhã”, o mundo seria melhor. Bem melhor. De volta à rua da Cruz, o último olhar para a casa de Joanete Moura como se ainda a ouvisse sentenciar sobre o toque plangente de finados vindo do sino da Matriz tangendo um enterro para o cemitério: “Quem terá sido o triste da pancada do sino?”.
 (*) Escritor.

30/10/2019


A hora da prisão

Já defendi aqui, mais de uma vez, no âmbito do nosso processo e direito penal, por não enxergar ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência, o início da execução da pena imposta após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau.
Eu não mudei de opinião, digo logo.
Continuo achando que o princípio da inocência é muito mitigado com a sentença penal condenatória e, com a confirmação desta em segundo grau, ele deixa mesmo de existir. Fio-me no próprio texto constitucional que, no seu art. 5º, inciso LVII, aduz “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, chamando a atenção para o conceito/termo “sentença”, que, como sabemos, é pronunciamento por meio do qual o juiz de primeiro grau põe fim à fase cognitiva do procedimento penal em sua jurisdição. A Constituição Federal não fala em trânsito em julgado de “acórdão”, que é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais. Ora, a sentença “transita em julgado” quando decidida sua apelação em segundo grau. O acórdão aí proferido é que ainda poderá ser objeto de recurso (especial e/ou extraordinário). Assim, pelo próprio texto constitucional, quando transitada em julgado a sentença, com a decisão confirmatória em segundo grau, temos uma verdadeira presunção de culpabilidade.
O argumento de se evitar dano irreparável à liberdade do cidadão também não me é intransponível. É claro que muitos, sobretudo os réus em iminência de prisão e os seus advogados, com base nesse argumento, se levantarão – legitimamente, frise-se – contra o que digo aqui. Entretanto, afirmo: para evitar dano irreparável à liberdade do cidadão e equívocos de outra sorte, existirão as medidas cautelares (em recurso especial e em recurso extraordinário) e, sobretudo, o habeas corpus, que é o instrumento por excelência para esse fim. E estes, medidas cautelares e habeas corpus, deverão ser julgados com total prioridade.
Rezando para não parecer populista – tenho verdadeira repulsa ao populismo judicial –, penso que, afastada qualquer inconstitucionalidade na execução da pena condenatória após a confirmação em segundo grau, estamos diante de uma questão de opção. No Brasil de hoje, um processo penal comum pode percorrer, via recursos variados, quatro graus de jurisdição: juiz de primeiro grau, tribunal de apelação, Superior Tribunal de Justiça e mesmo o Supremo Tribunal Federal. Isso sobrecarrega o Judiciário. Torna morosa a Justiça, eternizando os litígios penais, praticamente impedindo a execução da pena reiteradamente imposta, que fica sendo postergada num processo quase sem fim. Pelo que sei, em país nenhum do mundo, depois de cumprido o duplo grau de jurisdição, com a decisão condenatória do tribunal de apelação, a execução da condenação fica suspensa, “pairando no ar”, aguardando tanto tempo pela confirmação da sua Corte Suprema. É isso que queremos manter no Brasil?
Eu sei que o Supremo está decidindo, pela “enésima” vez, essa questão. Já foi e voltou, na sua jurisprudência, algumas vezes, como até já mostrei aqui em outra oportunidade. E isso é péssimo. Mas respeitarei, como sempre respeitei, a nova orientação do Supremo Tribunal Federal. Antes de mais nada, não tenho, nem espero nunca ter, a pretensão de ser dono da verdade. E também respeito essa instituição contramajoritária e pilar fundamental do nosso estado democrático de direito (e aqui friso a expressão “de direito”).
Para falar a verdade, eu acho que o Supremo Tribunal Federal, se deseja proteger esse direito fundamental de todos nós, que é a liberdade, deveria, sim, preocupar-se com o uso abusivo das prisões provisórias. As temporárias, que tomaram o lugar das conduções coercitivas, uma vez proibidas estas pelo próprio STF, contornando os juízes, abusivamente, a decisão do Tribunal. E as preventivas – as longuíssimas prisões preventivas, de meses ou anos, sem julgamento –, que, somadas ao sufocamento das famílias dos investigados, são utilizadas, muitas vezes, também abusivamente, apenas para forçar uma colaboração premiada (“nas torturas toda carne se trai”, já dizia o nosso Zé Ramalho). A prisão preventiva, entre nós, está virando cumprimento antecipado da pena. E acho que, vedada a execução da pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, a coisa pode até piorar. Tornar-se-ão mais frequentes as prisões preventivas, contornando-se indevidamente a decisão do Supremo Tribunal Federal (lembrem-se do que aconteceu com a proibição da condução coercitiva), para antecipar o cumprimento de uma suposta pena que só viria a ser executada Deus sabe lá quando. Isso pode até satisfazer o desejo de justiçamento das redes sociais. Mas é isso o que queremos? Uma “justiça” sem sequer condenação? Uma “justiça” populista? Isso é mais do que péssimo!


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

26/10/2019


BARALHO E TAVOLAGEM

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Macaíba possuiu muitas casas de jogos. Da proibida roletagem ao jogo de baralho. Esse último pontifica até os dias de hoje, em pequenas casas freqüentadas por modestos aficcionados, principalmente nas travessas que dão acesso a Rua Dr. Francisco da Cruz (Cinco Bocas). O “jogo de bicho”, por exemplo, está representado por Cabecinha e Pirralha, remanescentes de antigos cambistas como Zé Leiteiro, Lupicinio Araújo, José Solon, Pedro Pixilinga, entre outros. Mas, a banca freqüentada pelos “endinheirados” de Macaíba dos anos cinqüenta aos oitenta era a de Manoel Samuel de Araújo, localizada à rua João Pessoa onde residiu Jorge Leite da Costa, proprietário de um bar (hoje Panificadora Industrial do comerciante José Nilson). Nesse local também funcionou uma importante “casa de jogo de tavolagem e baralho”, habitada por políticos, comerciantes, funcionários públicos e até Delegados de Policia. Era uma casa globalizada de ansiosos poliglotas.
A de Samuel foi a que mais durou sem esquecer a primeira que operava nos fundos do antigo bar de Zé Distinto, o famoso Zé Fradinha. A casa de jogo do Samuca, figura simpática e respeitada, era uma verdadeira Arca de Noé. Lá “baixaram” as mais polivalentes personalidades que buscavam no carteado os momentos de lazer e de ilusão que a mística do baralho oferecia sem nunca enriquecer ninguém. Leonel Mesquita, Alfredo Mesquita, Magno da Fonseca Tinôco, João Justino Filho, Luiz Tomaz do Nascimento, Severino Tavares, Pedro Cascudo, Omar Vilar de Queiroz, Francisco Falcão Freire, Chicaca e Tião (marchantes), José Álvares, Pedro Álvares (Pedroca), Genésio Rocha, Pedro Luis de Araújo (Mestre Pedro), Sinval Azevedo (gerente da Nóbrega & Dantas), Francisco Pereira dos Santos (Chico Cobra), Belchior, todos servidos pelos garçons Luis Bicho Feio e Tota Passarinho.
Essa atividade refletia uma situação econômica e social que Macaíba viveu em mais de três décadas. Depois, houve um declínio. Samuel adoeceu e quando veio a falecer com ele viajou todo aquele mundo de diversão, de encontros e desencontros. Até porque, antes, foram desaparecendo paulatinamente os seus fiéis habitantes, o que enfraquecia sobremaneira o quadro social da casa, o fluxo e o contrafluxo dos investimentos da sorte.
Na memória guardo a fisionomia e os gestos de todos os náufragos desse rio que passou pelos olhos de minha vida de menino e adolescente. Até alguns fatos hilários guardei como relicário de espertezas, cacoetes e sortilégios dos seus humaníssimos protagonistas.

(*) Escritor.

25/10/2019


O vaqueiro Chicão
Tomislav R. Femenick – Jornalista e historiador
           
Nas minhas memórias há duas figuras de vaqueiros. Vaqueiros daquele de antigamente, que usavam chapéu, parapeito, gibão, perneiras, meia luva e alpercatas de couro; não por enfeite, mas por necessidade de trabalho. Os dois eram Francisco. O primeiro era seu Chico Bem, o vaqueiro de meu avô na Fazenda Rio Morto em Mossoró. Um dia, por causa de um pouco mais ou nada, brigaram e acabaram com a amizade; mais eu continuei seu amigo. Homem danado de tinhoso, de muito poucas palavras, caladão mesmo. O outro era Chicão, lá do Canto Grande, no Município de Alto do Rodrigues, na margem direita do Rio Assu. Era o contrário do seu xará mossoroense. Soube de muitas desavenças em que ele se envolveu, mas nunca soube que tivesse apartado a amizade com seus desafetos. Sorridente por tudo, conversador inveterado, sorria mais e conversava mais quando acompanhado por um gole de pinga ou de conhaque ou, ainda, de uns copos de cerveja; que dizia não gostar, mas tomava todos.
            Ambos usavam a vestimenta de vaqueiro para trabalhar, principalmente quando iam campear gado, enfrentando a caatinga ou mesmo o mato ralo do semiárido, com seus espinhos e surpresas. Essa verdadeira couraça é feita de couro curtido, sem pelo, flexível, macio e de uma cor entre marrom claro e vermelho escuro.  O gibão, ou jaleco, era enfeitado com pespontos e fechado com cordões de couro. O parapeito, preso no pescoço por uma tira de couro, era de um couro mais fino, porém resistente. As perneiras, presas na cintura também por tiras de couro, formavam uma espécie de calça, que ia da virilha até os pés. Nas mãos usavam luvas, sem dedos e sem cobertura nas palmas. Nos pés, alpercatas fechadas na frente. Porém o mais importante era o chapéu, feito de couro forte, que os protegia dos galhos dos “pés de pau” e do sol. Para completar o aparato, tinham esporas nos pés e uma chibata na mão.
Eu fui mais amigo do Chicão, pois tínhamos idade mais próxima; ele era mais velho cinco ou dez anos. Sou até padrinho de um de seus filhos, padrinho de fogueira de São João, que no seu dizer vale mais. A sua fazenda era vizinha à do meu sogro, com quem tinha uma pendenga por causa da localização de uma cerca e alguns palmos de terra. Mas conversavam, trocavam ideias sobre o inverno, sobre a data certa para fazer o plantio ou a colheita de algodão. Tudo só como preâmbulo para fazer negócio com gado. Nesses dias as discussões eram brabas, com xingamento e acusações de roubo feitas por ambas as partes, tudo dito cara-a-cara e tudo esquecido com uma xícara de café trazida pela velha Berréia, café feito na hora; nem requentado, nem de garrafa térmica. Vezes havia em que demoravam horas ou dias nas idas e vindas das negociações. Terminadas os ajustes, Chicão ia à sua casa e, invariavelmente, trazia um presente para seu vizinho: um queijo de coalho. Era quase que um ritual, estabelecido desde muito tempo antes de que eu os conhecesse.
            A vida de Chicão era mais negociar que criar gado. E não trabalhava para ninguém, só para ele mesmo. Saia de casa ia com seus auxiliares para Carnaubais, Ipanguaçu, Upanema, Afonso Bezerra, Angicos, Santana do Mato ou outras direções, para comprar algumas cabeças de gado aos seus fregueses de sempre. Gado que vendia a outros fregueses ou diretamente aos matadouros de algumas cidades. Fazia a viagem de ida e de volta a cavalo. Levava dias, semanas, mas, dizia, tinha o prazer de na volta vir tangendo a boiada pelas estradas, veredas e caminhos que somente ele conhecia. Isso tudo para fazer a viagem menor, para não maltratar os animais. Às vezes tinha de percorrer trilhas na caatinga; mesmo assim dificilmente perdia alguma rês. Só tinha receio de se encontrar com caravanas de ciganos.
Diziam que, certa vez, um cigano tentou atirar em Chicão. Ele nunca tinha me falado desse caso. Uma noite estávamos jogando conversa fora e eu lhe perguntei se a história era verdadeira. Ele deu uma daquelas suas risadinhas e mudou de assunto. Chamou minha atenção para o perfume suave que as plantas de aguapé exalavam de uma lagoa próxima e a conversa andou por outros caminhos. Quando estava de saída, voltou-se para mim e disse: “Sobre a sua pergunta. Eu estou vivo; mas não garanto que ele esteja”.

Tribuna do Norte. Natal, 24 out. 2019 

22/10/2019



21/10/2019


A partir de quando?

Dia desses, no Habeas Corpus (HC) 166373, o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria (7 x 4), que, em ações penais com réus colaboradores e delatados, é direito destes apresentarem suas alegações finais depois dos réus que firmaram acordo de colaboração. Venceu o entendimento de que, com os interesses conflitantes, apenas a concessão de prazos sucessivos, possibilitando que os delatados falem por último, garante o direito fundamental da ampla defesa e do contraditório.
Tudo bem. Pensando direitinho, isso parece ser o correto.
Entretanto, não se havia pensado nisso, nem mesmo no STF, até bem pouco tempo. E, durante alguns anos, esse procedimento, de prazos sucessivos para as alegações finais, não era o adotado nos juízos e tribunais do país afora.
E aí surgiu um outro problema, gravíssimo, aliás: essa decisão no Habeas Corpus (HC) 166373 pode ter repercussão em diversos processos concluídos ou em tramitação pelo país, agora sujeitos a uma potencial nulidade. Assim, os ministros terão de apresentar, para garantir um mínimo de segurança jurídica, uma tese/solução para orientar as outras instâncias judiciais eventualmente envolvidas.
A solução, espera-se, passará por algum tipo de aplicação prospectiva da decisão que anunciou a nova regra. Numa aplicação prospectiva clássica, o novo precedente, decidindo/disciplinando o caso em julgamento, passará a disciplinar apenas os fatos ocorridos depois do seu estabelecimento. Não retroage para os fatos já ocorridos e os casos já julgados. Tem efeitos apenas ex nunc, como se diz.
A razão da existência da aplicação prospectiva está na necessidade de manutenção da confiança nos precedentes judiciais anteriormente estabelecidos, pois as pessoas e órgãos do Estado agem – ou, pelo menos, deveriam agir – com base e em confiança nas regras até então existentes, incluindo-se as regras elaboradas pelos juízes, em especial aqueles da sua Corte Suprema.
No processo penal, como é o caso do dilema que o STF enfrenta agora, isso é bem sensível, claro. Temos muitos direitos fundamentais em jogo, em especial a liberdade. Mas há boas justificativas para a aplicação prospectiva do novo precedente nessa área do direito. Victoria Sesma, em “El precedente en el common law” (editora Civitas, 1995), levando em consideração a prática judicial dos Estados Unidos da América, oferece-nos pelo menos duas boas razões para aplicar um novo precedente revogador apenas prospectivamente, derivadas da ideia de manutenção da confiança nas decisões judiciais: “a) a justificativa mais usada tem sido a confiança nas decisões judiciais. (...). Um tipo de confiança diferente tem sido alegado por parte de policiais e membros do Ministério Público quando enfrentaram um tribunal que coloca em xeque os procedimentos que se devem seguir em uma investigação criminal. Não é justo, dizem, penalizar a persecução por errar no cumprimento de regras que não tinham sido estabelecidas antes da investigação acontecer. A Corte Suprema dos EUA aceitou este ponto de vista como um dos fundamentos para limitar o efeito de Miranda v. Arizona 384 U.S. 436 (1966); b) uma segunda justificativa assinala que o que motiva o tribunal a revogar um precedente é o desejo de pôr em prática uma nova política, mas uma política que não necessita ter efeito retroativo. Em Mapp v. Ohio, a Corte Suprema dos EUA decidiu que a prova descoberta em um determinado procedimento considerado ilegal não podia ser utilizada em juízo. Em Linkletter v. Walker 381 U.S. 618 (1965), o tribunal decidiu que a regra Mapp era só prospectiva. Disse que a nova regra foi proposta para dissuadir procedimentos ilegais, e que era demasiado tarde para dissuadir aqueles procedimentos que já tinham acontecido. Portanto, não podia ganhar-se nada dando a Mapp efeito retroativo”.
Acho que a coisa vai caminhar por aí – algum tipo de aplicação prospectiva – para a decisão proferida no Habeas Corpus (HC) 166373. Até porque, como disse o Ministro Luiz Fux dia desses, segundo publicação do ConJur de 16 de setembro de 2019, o STF “tem muita preocupação com a segurança jurídica. A segurança jurídica, por vezes, leva o Supremo a modular suas decisões. Quer dizer, as decisões passam a valer de um determinado momento para frente, para não nulificar tudo o que já foi praticado”. Ainda acredito que ele está certo.
Apenas, talvez, com algumas exceções retroativas para corrigir prejuízos efetivamente demonstrados, em processos já julgados, como aquelas sugeridas pelo Ministro Presidente Dias Toffoli: “1) em todos os procedimentos penais é direito do acusado delatado apresentar as alegações finais após o acusado delator que, nos termos da Lei 12.850, de 2013, tenha celebrado acordo de colaboração premiada devidamente homologado, sob pena de nulidade processual, desde que arguido até a fase do artigo 403 do CPP ou o equivalente na legislação especial, e reiterado nas fases recursais subsequentes; 2) para os processos já sentenciados, é necessária ainda a demonstração do prejuízo, que deverá ser aferida no caso concreto pelas instâncias competentes” (site do Conjur de 2 de outubro de 2019).
Bom, aguardemos o nosso Supremo.


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

14/10/2019


A cana de Graça (II)

Lemos Britto (1886-1963), em seu “O crime e os criminosos na literatura brasileira” (Livraria José Olympio Editora, 1946), disse: “copiando a vida, em todos os seus aspectos, e em todos os seus meandros, por mais recônditos, os romancistas e novelistas não podiam esquecer os cárceres onde os que transgridem as leis penais são recolhidos para cumprimento de suas penas”.
Graciliano Ramos (1892-1953) não transgrediu lei penal alguma, pelo menos não para os fins da prisão, injusta e política, que lhe foi infligida, em 1936, pelo Governo de Getúlio Vargas (1882-1954). Embora um dos maiores escritores do país – lembremos que ele já havia publicado “Caetés” (1933) e “São Bernardo” (1934) –, Graciliano foi simplesmente jogado entre criminosos comuns, entre assassinos, ladrões e estupradores, sem motivo e sem culpa, jamais ouvido ou formalmente acusado, até porque não haveria crime que lhe fosse possível, honestamente, atribuir. Teve a cabeça raspada, como qualquer gatuno, e foi submetido às demais humilhações por que passavam os condenados de então (a coisa parece não haver mudado muito de lá para cá). Tudo feito propositalmente. E se algo de positivo pode ser retirado dessa barbaridade com o “Velho Graça”, a única coisa possível, foram as suas “Memórias do Cárcere”, publicadas, já postumamente, em 1953.
O livro – refiro-me às “Memórias do Cárcere” –, portanto, é um “depoimento”. Conta a história de uma prisão arbitrária, as aventuras e os dramas do prisioneiro e de seus companheiros, pelos presídios do país e, sobretudo, descreve um período da nossa história. E ninguém poderia prestar esse depoimento tão bem quanto aquele que foi ao mesmo tempo acusado, testemunha e, sobretudo, vítima dessa tremenda arbitrariedade jurídico-política. Muito embora tenha Graciliano escrito – e, sobretudo, publicado – as suas “Memórias” anos após o acontecido, quando até já declinava fisicamente (ele faleceu em 1953, ano da publicação do livro), vítima das sobrecargas do tempo e da doença (um câncer), das dores e das amarguras da vida.
O livro também é um “libelo”. E, dada a injustiça praticada, não poderia deixar de sê-lo, como bem lembra Nélson Werneck Sodré (1911-1999), em prefácio à edição de “Memórias do Cárcere” que possuo (publicação da Record e da Livraria Martins Editora, de 1975, em dois volumes). Um “J'accuse” à brasileira e em causa própria. De toda sorte, nesse sentido, ganhamos “com a objetividade, com a clareza, com a minúcia e com a exatidão, – porque, sendo uma acusação, não pretendeu jamais ser neutro ou dar, indiscriminadamente, relevo a alguma coisa que não o merecesse”.
Ademais – e é o mesmo Nélson Werneck Sodré que anota isso –, “só o mestre de Angústia [romance publicado por Graciliano em 1936, quando achava-se preso pelo Governo Vargas] poderia realizar a tarefa com a grandeza necessária”. E, aqui, aproveito a deixa para fazer a relação entre Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e Graciliano Ramos, como, de resto, fiz no artigo anterior, sobre Oscar Wilde (1854-1900).
Na estória do triângulo amoroso entre o ressentido Luís da Silva, o rico Julião Tavares e a disputada Marina, de viés existencialista, trabalhado por meio de um “fluxo de consciência” joyciano, há mesmo algo, talvez muito, de Dostoiévski e de “Crime e Castigo” (1866). Em especial, as angústias, os arrependimentos e o medo (de ser pego), sentimentos que o crime praticado desperta no seu autor (no caso, o Luís da Silva), que estão presentes no dois romances. Com a diferença de que, em “Crime e Castigo”, o delito é o ponto de partida para a trama; no livro de Graciliano, o crime é o seu quase “finale”, numa mistura dúbia de realização pessoal com angústia que dá título à obra. Graciliano leu “Crime e Castigo”, isso é certo. Era um apreciador da literatura russa e de Dostoiévski em particular. Mas, em vida, relutou em aceitar as comparações entre a sua “Angústia” e “Crime e Castigo”. Não achava seu livro à altura da obra-prima russa. Parte modéstia, parte honesta autocrítica.
E o mais importante: quem lê ou ouve falar de “Memórias do Cárcere” certamente se lembrará de Dostoiévski e de suas “Recordações (ou Memórias) da Casa dos Mortos”, de 1862. Aqui, sem dúvida, no gênero dos “romances prisionais” (se é que esse gênero existe), Graciliano Ramos foi o nosso Dostoiévski. E, como anota Nélson Werneck Sodré, ele “realizou a tarefa como desejávamos todos: sua história aparece como um dos grandes livros brasileiros, talvez o maior. Não se surpreendam, – amanhã, quando a vida de hoje estiver esquecida, esta obra nos representará. Será, para os brasileiros que vierem depois de nós, muito mais do que Os Sertões, muito mais do que o melhor Machado de Assis [talvez tenhamos um certo exagero aqui, vá lá]. E foi por isso que escrevemos que Graciliano honrou o seu tempo”.
Bom, dito isso, só nos resta agora ler ou reler as “Memórias do Cárcere”. Mesmo que com toda a angústia do mundo.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP