07/11/2019




ENOCK DE AMORIM GARCIA

Valério Mesquita*


Recordo hoje, a figura inesquecível de um mipibuense nascido em 1906 e falecido em 1999, de alma macaibense. Advogado criminalista formado pela Universidade de Pernambuco exerceu em três gestões, fato incomum aliás, a Secretaria de Agricultura do Estado nos governos de Rafael Fernandes, Ubaldo Bezerra e José Augusto Varela. Foi casado com minha prima legitima Nadir de Mesquita Meira, filha de João Meira Lima (ex-intendente do município de Macaíba) e Amélia Názia de Mesquita, irmã do meu pai. A honradez e a competência de Enock Garcia fizeram-no ainda ocupar outros cargos diretivos tais como: delegado auxiliar dos interventores: Antônio Fernandes Dantas, Orestes da Rocha Lima e de Rafael Fernandes Gurjão, tendo como interventor substituto desse último combatido os comunistas ao lado de Dinarte Mariz na Serra do Doutor. Posteriormente foi juiz eleitoral em Natal e fundador da 1º Exposição de Gado do Estado quando o parque dos eventos agropecuários ainda era no Baldo.
Homem ameno no trato, de coragem pessoal, Enock, além de agropecuarista foi eleito deputado federal pela UDN em 1950. Desde jovem,  revelou o seu talento, a sua capacidade, assumindo a função de mensageiro dos Correios e Telégrafos de Natal, aos 12 anos de idade. Em 1931, chegou a radiotelegrafista em Recife, onde lá se formou em Direito, em 1932. Manifestava por Macaíba uma afeição de filho, aqui residindo durante muito tempo à rua Heráclito Vilar, no famoso e tão popular “sítio do Dr. Enock”. Lá, ao lado dos seus filhos Roosevelt, Wallace, Franklin e Enoquinho vivi vários momentos de minha infância.

O grande legado deixado pelo exemplar causídico, escritor, poeta, trovador, promotor público, foi a Escola Experimental Agrícola de Jundiaí, tendo sido o seu fundador e primeiro diretor. Esse impulso vivificador de Enock já formou ao longo do tempo, inúmeras gerações que constroem, hoje, o desenvolvimento econômico do Rio Grande do Norte. A sua visão de educador e administrador foi extraordinária. Mantive com ele, por diversas vezes, conversas na casa de meus pais, no seu sitio e posteriormente em Natal, em sua residência.  Afetivo com os filhos, foi um pai de família exemplar, um homem inesquecível. Macaíba ainda não lhe tributou uma homenagem condigna pelo que realizou em benefício da terra. A Câmara Municipal, por exemplo, ao longo do tempo, esqueceu de lhe outorgar o título meritório de cidadão macaibense. O seu filho Franklin, reunirá seus escritos, depoimentos, poesias, para enfeixá-los num livro que deve merecer o apoio dos órgãos oficiais pois Enock dedicou a sua vida a causa pública. Terá o meu irrestrito apoio.

(*) Escritor.


DOIS HOMENS DIGNOS QUE PARTIRAM



No último dia 4 de novembro de 2019, faleceu em Natal uma das figuras mais dignas da terra potiguar LUIZ GONZAGA MEIRA BEZERRA, Jornalista, desportista, comerciante e servidor público com uma trajetória de honra, deixou muita saudade a todos que tiveram a oportunidade de conhecê-lo.

Nasceu em Acari/RN em 21 de junho de 1923 e era filho de Silvino Bezerra Neto e Maria Meira e Sá Bezerra. Foi sobrinho do ex-governador José Augusto Bezerra de Medeiros.

Das diversas atividades de Luizinho, foi ao esporte do Rio Grande do Norte que prestou grandes serviços como desportista e pesquisador. É considerado uma lenda da crônica esportiva do estado. Homem digno e íntegro. Deixa a esposa Zilda Bezerra, além dos 5 filhos, 11 netos e 7 bisnetos.
  * * * 

    Na data de ontem, 06 de novembro de 2019, partiu para a eternidade o exemplar cidadão EIDER FURTADO DE MENDONÇA E MENEZES, membros das AcademIia de Letras Jurídicas do Rio Grande do Norte e também do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, aos 96 anos, deixando comovida as entidades e a população potiguar a quem tanto serviço prestou e particularmente a sua alentada família. Sobre ele apresento esta singela homenagem.. 

Breve biografia do Doutor Eider Furtado de Mendonça e Menezes


Nascido aos 23 de abril de 1924, em Natal, é filho de Gil Furtado de Mendonça e Menezes e D. Maria Emília Furtado. Esses são os seus primeiros homenageados no seu livro de memórias “Audiência de um Tempo vivido” (2004): “Eles me fizeram vir ao mundo e, na sua simplicidade, com os seus cuidados e o seu carinho, me mostraram os caminhos da vida. Por isso cheguei até aqui”. 
Primeiras letras com a Professora Águeda de Oliveira Sucupira (Naná), sobre quem dedicou um capítulo especial no seu livro de memórias. Ela era Diretora de uma escola municipal postada na Av. Rio Branco (local onde o BB construiu sua sede da cidade alta), nos idos de 1931 onde estudou até 1934. Não esqueceu as suas auxiliares  D. Helena, Preta e Auta, sobre as quais derrama suas emoções mais caras, aliada a um amor quase filial, incluídas também em suas permanentes orações, acrescentando “Por isso, eu também tenho saudades da minha primeira professorinha. Foi ela quem me ensinou o bê-á-bá e eu sequer soube por alguém quando o Senhor do Universo a chamou para perto de si, para “desarnar” as criancinhas que, certamente, chegaram ao céu sem conhecer as primeiras letras nem os primeiros números. Que saudades Naná”. Em 1935 foi para o Colégio Pedro Segundo, do Prof. Severino Bezerra de Melo, daí para a escola particular do Prof. Antônio Fagundes, posteriormente o tradicional Atheneu Norte-rio-grandense, em 1937, aos 13 anos de idade, tendo concluído o Colegial em 1944 e, somente em 1955, com 30 anos de idade, submete-se ao vestibular da Faculdade de Direito de Natal.
Bacharel em Direito pela UFRN, 1ª Turma, em 9 de outubro de 1959, denominada “Turma Clóvis Beviláqua”, paraninfo Edgar Barbosa Aula da saudade Paulo Viveiros.
Em 1968 iniciou o seu magistério universitário, levado pelas mãos do colega de turma Reginaldo Teófilo, a pedido de João Wilson Mendes de Melo, que comandava a Faculdade de Ciências Econômicas, Contábeis e Atuariais, começando nas lides do Direito Financeiro e Tributário, depois Direito Comercial, Direito do Trabalho e Mercado de Capitais, tendo ainda demonstrado os seus conhecimentos em outras searas do Direito, quando transferido para o Curso de Direito, lotado no Departamento de Direito Privado, até a sua aposentadoria em março de 1991. Recebeu a láurea de “Professor Emérito da UFRN” em 17 de dezembro de 1997.
Sua vida é pontilhada de atividades diversificadas, pois teve papel de relevo na radiofonia potiguar (Diretor da Rádio Poti, ao tempo em que, ainda, Rádio Educadora de Natal), não sem antes, nos idos dos anos 40, integrar, como músico, a Orquestra de Salão daquela rádio e o Quinteto “Alberto Maranhão”. Depois, como jornalista. Passagem pelo teatro amador. Mas não vou tirar dos leitores o prazer de ler, por inteiro o seu livro, recheado de lições do bom viver e também de pedaços da história da nossa cidade. Tentações para a vida militar (Colégio Militar de Fortaleza) ao ver passar o filho do Major Antunes, com sua farda: calça vermelha com uma túnica azul e até a religiosa, sobre o que revela, na condição de coroinha respondendo a liturgia celebrada em latim, conduzindo o turíbulo no séquito após a catequese das Professoras Beatriz Cortez e Maria Citaro da Costa, que o levou à Primeira Eucaristia, tornando-se sineiro de missa de 7º dia pelo que, confessa, recebeu a primeira remuneração de sua vida. A vocação não foi longe, embora continue fervoroso cristão. Ao relatar esse fato, conclui que “essa não era a minha vocação, e assim Deus não me convocou para o seu ministério. Certa vez, quando falava a alunos concluintes do Pré, no Colégio Marista, sobre as vocações, fiz referência a esse fato para concluir: a Igreja deve ter perdido um grande padre, mas minha mulher ganhou um grande marido. Sem a menor dúvida, responderiam os anjos!”
A propósito de D. Helenita, a sua presença é uma constante em todos os momentos de sua vida e a ela dedica incontáveis registros da sua história e a sua primeira composição “Sozinho neste mundo” a quem dedica com a afirmação de ter sido a primeira e única namorada.
Nas lides advocatícias, estagiou com o famoso causídico Hélio Mamede de Freitas Galvão e chegou a chefiar a Ordem dos Advogados, Seção do Rio Grande do Norte, num pleito memorável, que marcou a transição da velha Instituição para os novos tempos, substituindo o Dr. Claudionor Telógio de Andrade após 20 anos de presidência. Sua gestão foi marcante em todos os sentidos, inclusive o da transferência do prédio acanhado da Rua da Conceição para a sede do antigo Tribunal de Justiça, onde ainda permanece nos dias atuais. Ali permaneceu por 8 anos consecutivos (01/02/69 a 01/02/77).
(texto do Professor Carlos Roberto de Miranda Gomes, baseado em saudação oficial em nome da Universidade Potiguar, por ocasião da Semana Jurídica de 2005)

02/11/2019


MACAÍBA EM ALVOROÇO

Valério Mesquita*

O juiz Cícero Martins de Macêdo Filho é meu amigo desde os anos setenta, quando residiu em Macaíba. Apreciador de “causos” do folclore local e colecionador também, pedi-lhe que me enviasse alguns do seu arquivo confidencial. Aí vão quatro deles, prá começo de conversa. Com a palavra Dr. Macêdo.
01) Um amigo da juventude e da boemia de então, cujo nome não vou declinar por razões pessoais, estava perdidamente apaixonado por uma bela moça, evangélica, recatada e pura, para quem desejava fazer uma serenata. Programada a serenata, chamou a mim e outros colegas, e tivemos a idéia de chamar para cantar e tocar o nosso amigo Luiz Marcos Damasceno, o popular Mosquito, excelente cantor e violonista. Duas da manhã e várias garrafas depois, chegamos à casa da jovem, no centro da cidade. No mais absoluto silêncio, nosso amigo pediu baixinho para Mosquito cantar uma canção de amor. Violão em punho, o vozeirão de Mosquito soou na madrugada os seguintes versos: “Boneca de trapo/ Pedaços da vida/ Que vive perdida/ No mundo a vagar.” A serenata terminou ali mesmo.
02) Meu amigo de fé e irmão camarada, Romeu Augusto, era uma figura extraordinária. Adorava fazer “presepadas”. Íamos a tudo quanto era festa e forró. Certa feita, fomos a uma festa em Ielmo Marinho. Baile rolando, Romeu tira uma garota para dançar. Música lenta, o “mago” começa a apertar a menina. Aperta, aperta, e de repente ela empurra Romeu e sai do salão. Quando olhei estava ele de braços abertos, todo lânguido, dizendo: “Chegue minha filha, chegue, eu tava quase gozando!”
03) Francisco Paulino da Silva, o popular Xixico, era uma das figuras mais espetaculares que conheci. Amigo de todas as horas, sempre foi um leal (e bota leal nisso!) eleitor da família Mesquita. Na década de 70, estava em São Paulo, onde trabalhava e para onde tinha transferido o seu título de eleitor. Era dia de eleição e nosso amigo, triste por estar longe de Macaíba e não poder votar na família amiga, resolveu não ir às urnas e foi passear pelas ruas de São Paulo. Foi quando encontrou no chão um santinho de propaganda de um candidato cujo nome era “Professor Mesquita”. Não teve dúvida. Votou no cara só pelo nome Mesquita. Guardando o santinho da propaganda. Isso é que era lealdade!.
04) José Alcides Lucena era uma figura impagável. Morava na rua Teodomiro Garcia, quase no centro da cidade. Notório contador de piadas e portador de hemorróidas crônicas, certa vez me contou o seguinte: Estava com uma crise aguda. De madrugada, sem conseguir dormir com as dores e o incômodo na região anal, procurou em casa um remédio que costumava usar. Não tinha. Foi no armário do banheiro e encontrou um pote de Iodex, remédio usado para contusões e que arde profundamente. Não teve dúvida: pegou um punhado e aplicou na região já esfoliada. Curioso, perguntei: “Zé, e aí, passou?” E ele: “Rapaz, passar passou, mas só depois que cheguei na Lagoa das Pedras, da carreira que dei!” A Lagoa das Pedras ficava a uns cinco quilômetros da casa do grande Zé de Alcides, como o chamávamos.
(*) Escritor.

31/10/2019


FINADOS

Valério Mesquita*

Algo de especial na ordem do mundo são os mortos. O maior segredo da vida é a morte. Pode vir com naturalidade nos lábios de uma criança ou escondida nas incertezas da aventura humana. O elemento essencial segue aquele princípio aristotélico de que “tudo deve ter um começo, um meio e um fim”. Qualquer travessia neste mundo não é impune. Da morte não jazem apenas destroços, choros, lamentos, que incomodam a alma. Até porque é mistério incomunicável de Deus. No livro das memórias os falecidos podem ser esquecidos mas nunca os seus nomes. Meus olhos têm a fome da saudade. Porque na epifania eles serão lembrados, mesmo em andrajos saídos das urnas escuras do sono demente.
Em Macaíba, o velho cemitério de São Miguel, é o guardião triste da população e da anistia dos pecados. Lá sempre visito e revisito os meus mortos, parentes e amigos. Pelas alamedas leio as lápides, principalmente as antiquadas, para revolver na mente os vultos ancestrais habitando a cidade. Restituem-me as casas senhoriais, os hábitos, as roupas, os folguedos, as festas, tudo lírico, romântico, calmo e sem pressa. Auta de Souza tecendo versos ali perto do rio Jundiaí. Henrique Castriciano de fraque e gravata borboleta, à passos largos caminhando em direção ao cais para não perder a lancha com destino a Natal. Calçadas e ruas atravessadas pelas figuras solenes de Tavares de Lyra, João Chaves, Alberto Maranhão e Augusto Severo. As mulheres fortes, matronas, espartanas, Senhorinha de Manoel Amaro, Marocas e Joaninha, Ana Olindina, Cacilda Mesquita, Arcelina Fernandes, Nazaré Madruga, Teresa Gomes, Luiza e Sofia Curcio, Belita Ribeiro, Zebina Alecrim e tantas e tantas outras, que vêm como fantasmas bondosos.
Sim, o cemitério é um universo multifário de loucos e de líricos, de ricos e pobres, de santos e boêmios, de todos eles importam apenas as passadas perfórmances, na alegria ou na dor, no esporte ou no carnaval. Ah, os velhos atletas do campo santo: Passarinho, Caíco, Paulo Preto, Aguinaldo, Barbosinha, Loreto e muitos outros que ainda me fazem ouvir os gritos do último gol. Os carnavalescos Zé Batata, José Ludovico, José Jeep, Ailton Feitosa, jaziam na fria lousa do esquecimento sem ruídos de cuíca e tamborim. Vendo a morte assim tão perto é inevitável a ressurreição de lembranças, das marcas e dos passos que se foram. Dia de finados é seminário de desaparecidos, procissão de relembranças, obituário de fantasmas camaradas.
Finalmente cheguei ao túmulo dos meus pais, tios, tias, avós, irmão e filho. Algo esquisito percorreu-me o corpo. Todo aquele que é sensível, emocional, capta sinais. Ali em frente dormia os restos de minha mãe, a última a ser ali sepultada. Senti imensa e incontrolável comoção. Ao redor, todos cumpriam o mesmo ritual, a mesma liturgia, que só vai acabar com o mundo. Não somente preces, nada mais, restam aos mortos. Não apenas a solidão, inexprimível, incurável e eterna. O dia de finados, hoje, é mais para advertir aos vivos do que para lembrar os mortos. Se cada um que visitasse o cemitério repetisse a frase que “eu serei você amanhã”, o mundo seria melhor. Bem melhor. De volta à rua da Cruz, o último olhar para a casa de Joanete Moura como se ainda a ouvisse sentenciar sobre o toque plangente de finados vindo do sino da Matriz tangendo um enterro para o cemitério: “Quem terá sido o triste da pancada do sino?”.
 (*) Escritor.

30/10/2019


A hora da prisão

Já defendi aqui, mais de uma vez, no âmbito do nosso processo e direito penal, por não enxergar ofensa ao princípio constitucional da presunção da inocência, o início da execução da pena imposta após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau.
Eu não mudei de opinião, digo logo.
Continuo achando que o princípio da inocência é muito mitigado com a sentença penal condenatória e, com a confirmação desta em segundo grau, ele deixa mesmo de existir. Fio-me no próprio texto constitucional que, no seu art. 5º, inciso LVII, aduz “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, chamando a atenção para o conceito/termo “sentença”, que, como sabemos, é pronunciamento por meio do qual o juiz de primeiro grau põe fim à fase cognitiva do procedimento penal em sua jurisdição. A Constituição Federal não fala em trânsito em julgado de “acórdão”, que é o julgamento colegiado proferido pelos tribunais. Ora, a sentença “transita em julgado” quando decidida sua apelação em segundo grau. O acórdão aí proferido é que ainda poderá ser objeto de recurso (especial e/ou extraordinário). Assim, pelo próprio texto constitucional, quando transitada em julgado a sentença, com a decisão confirmatória em segundo grau, temos uma verdadeira presunção de culpabilidade.
O argumento de se evitar dano irreparável à liberdade do cidadão também não me é intransponível. É claro que muitos, sobretudo os réus em iminência de prisão e os seus advogados, com base nesse argumento, se levantarão – legitimamente, frise-se – contra o que digo aqui. Entretanto, afirmo: para evitar dano irreparável à liberdade do cidadão e equívocos de outra sorte, existirão as medidas cautelares (em recurso especial e em recurso extraordinário) e, sobretudo, o habeas corpus, que é o instrumento por excelência para esse fim. E estes, medidas cautelares e habeas corpus, deverão ser julgados com total prioridade.
Rezando para não parecer populista – tenho verdadeira repulsa ao populismo judicial –, penso que, afastada qualquer inconstitucionalidade na execução da pena condenatória após a confirmação em segundo grau, estamos diante de uma questão de opção. No Brasil de hoje, um processo penal comum pode percorrer, via recursos variados, quatro graus de jurisdição: juiz de primeiro grau, tribunal de apelação, Superior Tribunal de Justiça e mesmo o Supremo Tribunal Federal. Isso sobrecarrega o Judiciário. Torna morosa a Justiça, eternizando os litígios penais, praticamente impedindo a execução da pena reiteradamente imposta, que fica sendo postergada num processo quase sem fim. Pelo que sei, em país nenhum do mundo, depois de cumprido o duplo grau de jurisdição, com a decisão condenatória do tribunal de apelação, a execução da condenação fica suspensa, “pairando no ar”, aguardando tanto tempo pela confirmação da sua Corte Suprema. É isso que queremos manter no Brasil?
Eu sei que o Supremo está decidindo, pela “enésima” vez, essa questão. Já foi e voltou, na sua jurisprudência, algumas vezes, como até já mostrei aqui em outra oportunidade. E isso é péssimo. Mas respeitarei, como sempre respeitei, a nova orientação do Supremo Tribunal Federal. Antes de mais nada, não tenho, nem espero nunca ter, a pretensão de ser dono da verdade. E também respeito essa instituição contramajoritária e pilar fundamental do nosso estado democrático de direito (e aqui friso a expressão “de direito”).
Para falar a verdade, eu acho que o Supremo Tribunal Federal, se deseja proteger esse direito fundamental de todos nós, que é a liberdade, deveria, sim, preocupar-se com o uso abusivo das prisões provisórias. As temporárias, que tomaram o lugar das conduções coercitivas, uma vez proibidas estas pelo próprio STF, contornando os juízes, abusivamente, a decisão do Tribunal. E as preventivas – as longuíssimas prisões preventivas, de meses ou anos, sem julgamento –, que, somadas ao sufocamento das famílias dos investigados, são utilizadas, muitas vezes, também abusivamente, apenas para forçar uma colaboração premiada (“nas torturas toda carne se trai”, já dizia o nosso Zé Ramalho). A prisão preventiva, entre nós, está virando cumprimento antecipado da pena. E acho que, vedada a execução da pena após a confirmação da sentença condenatória em segundo grau, a coisa pode até piorar. Tornar-se-ão mais frequentes as prisões preventivas, contornando-se indevidamente a decisão do Supremo Tribunal Federal (lembrem-se do que aconteceu com a proibição da condução coercitiva), para antecipar o cumprimento de uma suposta pena que só viria a ser executada Deus sabe lá quando. Isso pode até satisfazer o desejo de justiçamento das redes sociais. Mas é isso o que queremos? Uma “justiça” sem sequer condenação? Uma “justiça” populista? Isso é mais do que péssimo!


Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

26/10/2019


BARALHO E TAVOLAGEM

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Macaíba possuiu muitas casas de jogos. Da proibida roletagem ao jogo de baralho. Esse último pontifica até os dias de hoje, em pequenas casas freqüentadas por modestos aficcionados, principalmente nas travessas que dão acesso a Rua Dr. Francisco da Cruz (Cinco Bocas). O “jogo de bicho”, por exemplo, está representado por Cabecinha e Pirralha, remanescentes de antigos cambistas como Zé Leiteiro, Lupicinio Araújo, José Solon, Pedro Pixilinga, entre outros. Mas, a banca freqüentada pelos “endinheirados” de Macaíba dos anos cinqüenta aos oitenta era a de Manoel Samuel de Araújo, localizada à rua João Pessoa onde residiu Jorge Leite da Costa, proprietário de um bar (hoje Panificadora Industrial do comerciante José Nilson). Nesse local também funcionou uma importante “casa de jogo de tavolagem e baralho”, habitada por políticos, comerciantes, funcionários públicos e até Delegados de Policia. Era uma casa globalizada de ansiosos poliglotas.
A de Samuel foi a que mais durou sem esquecer a primeira que operava nos fundos do antigo bar de Zé Distinto, o famoso Zé Fradinha. A casa de jogo do Samuca, figura simpática e respeitada, era uma verdadeira Arca de Noé. Lá “baixaram” as mais polivalentes personalidades que buscavam no carteado os momentos de lazer e de ilusão que a mística do baralho oferecia sem nunca enriquecer ninguém. Leonel Mesquita, Alfredo Mesquita, Magno da Fonseca Tinôco, João Justino Filho, Luiz Tomaz do Nascimento, Severino Tavares, Pedro Cascudo, Omar Vilar de Queiroz, Francisco Falcão Freire, Chicaca e Tião (marchantes), José Álvares, Pedro Álvares (Pedroca), Genésio Rocha, Pedro Luis de Araújo (Mestre Pedro), Sinval Azevedo (gerente da Nóbrega & Dantas), Francisco Pereira dos Santos (Chico Cobra), Belchior, todos servidos pelos garçons Luis Bicho Feio e Tota Passarinho.
Essa atividade refletia uma situação econômica e social que Macaíba viveu em mais de três décadas. Depois, houve um declínio. Samuel adoeceu e quando veio a falecer com ele viajou todo aquele mundo de diversão, de encontros e desencontros. Até porque, antes, foram desaparecendo paulatinamente os seus fiéis habitantes, o que enfraquecia sobremaneira o quadro social da casa, o fluxo e o contrafluxo dos investimentos da sorte.
Na memória guardo a fisionomia e os gestos de todos os náufragos desse rio que passou pelos olhos de minha vida de menino e adolescente. Até alguns fatos hilários guardei como relicário de espertezas, cacoetes e sortilégios dos seus humaníssimos protagonistas.

(*) Escritor.

25/10/2019


O vaqueiro Chicão
Tomislav R. Femenick – Jornalista e historiador
           
Nas minhas memórias há duas figuras de vaqueiros. Vaqueiros daquele de antigamente, que usavam chapéu, parapeito, gibão, perneiras, meia luva e alpercatas de couro; não por enfeite, mas por necessidade de trabalho. Os dois eram Francisco. O primeiro era seu Chico Bem, o vaqueiro de meu avô na Fazenda Rio Morto em Mossoró. Um dia, por causa de um pouco mais ou nada, brigaram e acabaram com a amizade; mais eu continuei seu amigo. Homem danado de tinhoso, de muito poucas palavras, caladão mesmo. O outro era Chicão, lá do Canto Grande, no Município de Alto do Rodrigues, na margem direita do Rio Assu. Era o contrário do seu xará mossoroense. Soube de muitas desavenças em que ele se envolveu, mas nunca soube que tivesse apartado a amizade com seus desafetos. Sorridente por tudo, conversador inveterado, sorria mais e conversava mais quando acompanhado por um gole de pinga ou de conhaque ou, ainda, de uns copos de cerveja; que dizia não gostar, mas tomava todos.
            Ambos usavam a vestimenta de vaqueiro para trabalhar, principalmente quando iam campear gado, enfrentando a caatinga ou mesmo o mato ralo do semiárido, com seus espinhos e surpresas. Essa verdadeira couraça é feita de couro curtido, sem pelo, flexível, macio e de uma cor entre marrom claro e vermelho escuro.  O gibão, ou jaleco, era enfeitado com pespontos e fechado com cordões de couro. O parapeito, preso no pescoço por uma tira de couro, era de um couro mais fino, porém resistente. As perneiras, presas na cintura também por tiras de couro, formavam uma espécie de calça, que ia da virilha até os pés. Nas mãos usavam luvas, sem dedos e sem cobertura nas palmas. Nos pés, alpercatas fechadas na frente. Porém o mais importante era o chapéu, feito de couro forte, que os protegia dos galhos dos “pés de pau” e do sol. Para completar o aparato, tinham esporas nos pés e uma chibata na mão.
Eu fui mais amigo do Chicão, pois tínhamos idade mais próxima; ele era mais velho cinco ou dez anos. Sou até padrinho de um de seus filhos, padrinho de fogueira de São João, que no seu dizer vale mais. A sua fazenda era vizinha à do meu sogro, com quem tinha uma pendenga por causa da localização de uma cerca e alguns palmos de terra. Mas conversavam, trocavam ideias sobre o inverno, sobre a data certa para fazer o plantio ou a colheita de algodão. Tudo só como preâmbulo para fazer negócio com gado. Nesses dias as discussões eram brabas, com xingamento e acusações de roubo feitas por ambas as partes, tudo dito cara-a-cara e tudo esquecido com uma xícara de café trazida pela velha Berréia, café feito na hora; nem requentado, nem de garrafa térmica. Vezes havia em que demoravam horas ou dias nas idas e vindas das negociações. Terminadas os ajustes, Chicão ia à sua casa e, invariavelmente, trazia um presente para seu vizinho: um queijo de coalho. Era quase que um ritual, estabelecido desde muito tempo antes de que eu os conhecesse.
            A vida de Chicão era mais negociar que criar gado. E não trabalhava para ninguém, só para ele mesmo. Saia de casa ia com seus auxiliares para Carnaubais, Ipanguaçu, Upanema, Afonso Bezerra, Angicos, Santana do Mato ou outras direções, para comprar algumas cabeças de gado aos seus fregueses de sempre. Gado que vendia a outros fregueses ou diretamente aos matadouros de algumas cidades. Fazia a viagem de ida e de volta a cavalo. Levava dias, semanas, mas, dizia, tinha o prazer de na volta vir tangendo a boiada pelas estradas, veredas e caminhos que somente ele conhecia. Isso tudo para fazer a viagem menor, para não maltratar os animais. Às vezes tinha de percorrer trilhas na caatinga; mesmo assim dificilmente perdia alguma rês. Só tinha receio de se encontrar com caravanas de ciganos.
Diziam que, certa vez, um cigano tentou atirar em Chicão. Ele nunca tinha me falado desse caso. Uma noite estávamos jogando conversa fora e eu lhe perguntei se a história era verdadeira. Ele deu uma daquelas suas risadinhas e mudou de assunto. Chamou minha atenção para o perfume suave que as plantas de aguapé exalavam de uma lagoa próxima e a conversa andou por outros caminhos. Quando estava de saída, voltou-se para mim e disse: “Sobre a sua pergunta. Eu estou vivo; mas não garanto que ele esteja”.

Tribuna do Norte. Natal, 24 out. 2019