23/06/2021
A festa de São João Batista
Padre João Medeiros Filho
Com exceção de Cristo e da Virgem Maria, João Batista é o único personagem, cujo natalício é celebrado na liturgia da Igreja Católica. Segundo as palavras de Jesus, “ele é o maior, dentre os nascidos de mulher.” (Mt 11, 11). Um anjo anunciou a Zacarias o nascimento da criança (Lc 1, 5-25). Pelo que se infere dos relatos neotestamentários, João era seis meses mais velho que o Messias. “O menino foi crescendo e se fortificando em espírito.” (Lc 1, 80). Viveu no deserto até o dia em que se apresentou em Israel. Iniciou a sua catequese, à beira do Rio Jordão. Proclamou, de forma contundente, a necessidade de mudança pessoal e social, alertando para a vinda iminente do Salvador. A conversão é a única forma de escapar da ira divina. Símbolo de sua pregação é o batismo no Rio Jordão, resultando daí o epíteto de Batista. Entretanto, apesar de batizar o próprio Redentor, declara que Ele “batizará com o Espírito Santo.” (Mt 3, 11).
Estudiosos acreditam que João pertencia à seita dos essênios, monges austeros, que viviam às margens do Mar Morto, entregues à oração e à penitência. Esta afirmativa advém do estilo de suas prédicas e vida despojada. Os evangelhos narram que ele se vestia rudemente, usando peles de camelo e alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre. Quanto a pertencer à comunidade esseniana, não há comprovação histórica. Porém, pela leitura dos Documentos do Mar Morto, deduz-se pela verossimilhança do unigênito de Isabel com aqueles religiosos.
João Batista, cuja devoção se espalhou pelos sertões do Brasil, tem uma importância especial no cristianismo. Denunciou a corrupção do seu tempo. O poder de Herodes, contaminado por erros e abusos, cortou a sua cabeça, mas não apagou seus ensinamentos e exemplo. Denunciou a mentira e a hipocrisia de seus contemporâneos. Importava-lhe Jesus: “Caminho, Verdade e Vida.” (Jo 14, 16). Apontou Cristo presente entre os homens, mostrando igualmente qual deve ser a nossa missão: indicar onde está o Filho de Deus. Com ele, encerrou-se o reino do pecado, inaugurando-se a era da graça e do perdão. Profeta da fidelidade e justiça, ensinou a coerência e a humildade. Centrou sua atenção em Cristo, de quem não se sentia digno de desatar as correias de suas sandálias. Apresentou Jesus ao povo: “Eis o Cordeiro de Deus, Aquele que tira os pecados do mundo” (Mt 3, 11). Batizou muitos, mergulhando-os nas águas de Deus e nos seus valores. Pregou que a verdadeira religião não está no formalismo, mas na autenticidade e no interior. Antecipou-se ao Messias, quando Este se dirigiu aos hipócritas e fariseus: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para chegar?” (Mt 3, 7).
João Batista, na tradição e na metáfora das fogueiras, convida-nos a acender também em nós o clarão de nossa fé e caridade para que “todos vejam as boas obras e glorifiquem o nosso Pai, que está nos céus.” (Mt 5, 15). Seu culto é bastante difundido no Brasil. Doze dioceses lhe são dedicadas. É titular de centenas de templos espalhados pelo país e padroeiro de dez paróquias no Rio Grande do Norte. No período colonial, era muito venerado pelos jesuítas. Câmara Cascudo registra esse fato e explica a devoção ao santo precursor em localidades potiguares. Segundo o nosso pesquisador, aqueles missionários catequisaram Arês e disso resulta o orago joanino naquela comunidade. A freguesia de Assú – a segunda a ser criada na Província – tem o Filho de Zacarias como patrono. Em Apodi, erigiu-se um templo dedicado ao Precursor e a Nossa Senhora da Conceição. A esta veneração dos discípulos de Santo Inácio de Loyola acrescente-se a devoção pessoal de Dom João VI. “Muita gente alegrar-se-á com o nascimento do menino.” (Lc 1, 4). De acordo com alguns folcloristas, eis a origem dos folguedos e festejos juninos. No ensejo desta data, convém lembrar o aniversário de um dos padres mais queridos de Natal, Monsenhor Lucas Batista Neto. Há mais cinquenta anos, como São João Batista, o preclaro sacerdote prepara os caminhos do Senhor nesta arquidiocese!
13/06/2021
Napoleão Bonaparte e o Brasil (2)
Daladier Pessoa Cunha Lima
Reitor do UNI-RN
Napoleão Bonaparte levou os valores da Revolução Francesa ao longo
do extenso caminho de muitas conquistas. Assim, contribuiu para a
expansão do sentido moderno da política, próprio do século das Luzes. Por
outro lado, em algumas áreas, foi retrógrado, haja vista seu apoio à
escravidão. Em 1798, Ludwig van Beethoven, adepto das ideias da
Revolução Francesa, dedicou ao general francês a sua terceira sinfonia. Em
1804, ao saber da cena da autocoroação, Beethoven rasgou a dedicatória, e
a sua criação musical passou a se chamar sinfonia Heroica. Fobias e filias
continuam nas produções que detratam ou endeusam o mito Napoleão
Bonaparte.
Na crônica passada, com igual título, concluí que a vinda da família real
para o Brasil foi um fator importante para se preservar a unidade territorial do
país, bem assim para o progresso das ideias e das ações civilizatórias da
nação. O historiador Manuel de Oliveira Lima, que veio a Natal, em 1919, a
fim de paraninfar a primeira turma concluinte da Escola Doméstica, é citado
no livro 1808, do escritor Laurentino Gomes: “O Brasil nada mais era do que
uma unidade geográfica formada por províncias no fundo estranhas umas às
outras”. A população, no início do século XIX, girava em torno de três
milhões de pessoas, das quais um milhão eram escravos vindos da África.
Tudo leva a crer que havia uma decisão do governo português de manter o
Brasil atrasado, a fim de conservá-lo apenas como uma joia extrativista.
Mesmo assim, até 1.800, um total de 527 brasileiros se formou em Coimbra,
a maioria em Direito. Entre esses bacharéis estava José Bonifácio de
Andrade e Silva, o futuro Patriarca da Independência.
Com a vinda da família real, o Brasil passou da condição de colônia
para ser a sede de um reinado. A unidade territorial e política do país foi
mantida, pois o Brasil poderia ter se fragmentado em três ou mais países
distintos. Basta recordar que somente na região Nordeste, em menos de
trinta anos, três insurreições ocorreram: a Revolta dos Alfaiates, de 1798, a
Revolução Pernambucana, de 1817, e a Confederação do Equador, de 1824.
Para o historiador Oliveira Lima, o monarca D. João VI foi o verdadeiro
fundador da nacionalidade brasileira. As portas fechadas da colônia, durante
trezentos anos, de repente se abriram para o mundo. Surgiram escolas,
faculdades, criou-se uma moeda, bibliotecas, as artes acharam um lugar
seguro, jornal, editora, enfim, floresceu a base para o processo civilizatório
da nação. Um fato histórico vincula diretamente a vida de Napoleão
Bonaparte ao Brasil. No bojo da Revolução de 1817, houve um plano de
resgatar Bonaparte da ilha de Santa Helena, onde estava preso, e trazê-lo
para o Nordeste do Brasil, com apoio norte-americano, no intuito de
transformá-lo em líder da sedição. Esse plano ficou só no plano. Mas há um
vínculo concreto: Maria Luísa, segunda esposa de Napoleão, era irmã da
imperatriz Leopoldina, casada com D. Pedro I.
Texto publicado na Tribuna do Norte em 10/06/2021
08/06/2021
Marcelo Alves
Sempre mascarado
O poetinha Vinícius de Moraes (1913-1980) certa vez disse: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Acho que nunca houve tanto desencontro na vida como tem havido durante esta pandemia. Desencontro com a verdade em forma de fake news. Desencontro negacionista com a ciência. Desencontro com as vacinas. Desencontro/discórdia entre as pessoas. Desencontro/distância entre amigos e familiares, sobretudo os mais idosos. Desencontro com a vida, com tantas pessoas queridas nos deixando. Tristes tempos.
De toda sorte, aqui e acolá, surgem uns causos curiosos, quiçá engraçados. Aconteceu com um amigo nosso. Não vou contar o nome do santo, porque é pessoa conhecida na paróquia, e a revelação dos envolvidos (há uma envolvida, já ia me esquecendo) pode me causar mais problemas do que simpatia. Boca não diz nomes ou apelidos.
O fato – e tenho por verdadeiro, já que atestado parte de ciência própria e o restante por ouvir dizer – é que este amigo passou por várias fases na pandemia. Começou assustado, fazendo serões de home office, saindo pouquíssimo de casa e tomando banhos de álcool gel. Mas a sua obsessão mesmo era/é a máscara: usava até para dormir, acompanhado ou sozinho, acreditem. E ele aguentou tudo isso bravamente uns bons meses. Quem não aguentou foi a sua ex-companheira, que foi viver com um primo querido (como é bom a gente ver as famílias “unidas” novamente). Até essa circunstância nosso amigo aguentou resilientemente. Segundo ele, estar sozinho diminuiria o risco de exposição ao vírus (o que tem lógica, ao menos na terra redonda). Foi um Cândido, a orgulhar o professor Pangloss e confirmar Voltaire (1694-1778).
Com o abandono (que ele via positivamente, pelo lado sanitário, frise-se), naturalmente começou a paquerar pela Internet. Visitava tudo o que é rede social. E nem para isso tirava a máscara (e aqui eu não entendo a razão, uma vez que ele estava sozinho no seu apartamento que beirava a esterilização). A princípio, disse que cumpria protocolos, sozinho ou não. Não era hipócrita (Oi?). Mas, depois, me confessou a verdadeira razão: “desabonitado”, segundo suas próprias palavras, ele viu que tinha mais sucesso nas paqueras virtuais quando se apresentava com a sua N95. Virava “japonês”, concorria em igualdade de condições. Ainda admiro essa tendência dele de ver o lado bom de tudo. E, reconheçamos, aqui ele tem certa razão. Na noite, ao vivo ou no Facebook, a gente concorre com as armas que tem.
Conheceu algumas moças (e outras não tão moças assim), mascaradas ou não. Meninas do Brasil e até de além-mar. Mas uma mascarada da terrinha (é sempre melhor casar com a filha do vizinho) tocou o seu coração em especial. Gente conhecida também, que ainda me escuso a revelar o nome. E essa paixão, que antigamente se dizia “platônica”, mas hoje é melhor dizer “virtual”, durou semanas. Embora não se vendo pessoalmente (segurança sanitária acima de tudo), diziam ter compromisso. Coisa “firme”. Seja lá o que esse termo hoje signifique.
Mas, dia desses, vacinado com a primeira dose da Pfizer (e essa marca ele resolveu usar como arma de conquista), atendeu à ideia de um amigo de caírem na noite. Uma festinha, meio clandestina, mas que cumpriria protocolos (eu não sei como isso é possível). De amigos, quer bons, quer maus, é necessário se defender, já alertava Rudyard Kipling (1865-1936).
E a vida prega peças. Sua “namorada firme” tinha tido a mesma ideia. Mesma “festa estranha, com gente esquisita”. E mesma N95, com a qual tentavam impressionar. Eles bateram os santos, ou as máscaras. Quem da Legião “um dia irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração?”. E, como à noite todos os gatos são pardos, imaginem se mascarados, só se identificaram um ao outro quando, aconchegados, o sinal já avançado, trocaram WhatsApp e Facebook. Aí foi um furdunço, dizem, entre tapas e sem beijos.
Até hoje não sei se eles tiveram um encontro ou um desencontro. Se um traiu o outro ou se se traíram mutuamente. Os mais chegados tentaram fazer piadas. Mas o nosso amigo não deixou cair a fantasia. Disse: “Estávamos de máscaras. Podia ser pior”. Voltaire é tudo. E segurança sanitária ainda mais.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
03/06/2021
A solenidade de “Corpus Christi”
Padre João Medeiros Filho
A festividade de “Corpus Christi” (Corpo de Cristo) é celebrada sessenta dias após o domingo da Páscoa. Foi instituída pelo Papa Urbano IV, por meio da Bula “Transiturus”, em 8 de setembro de 1264. Na época, o Sumo Pontífice tomou conhecimento de que a freira belga Juliana Mont de Cornillon, da diocese de Liège, tinha visões de Jesus pedindo-lhe uma festa litúrgica anual em honra do Santíssimo Sacramento. Outro motivo influenciou a decisão de Sua Santidade. De acordo com relatos eclesiásticos, Padre Pedro (da diocese de Praga) tinha, em alguns momentos, dúvidas sobre a presença de Cristo na Hóstia Consagrada. Voltando de Roma para a Tchecoslováquia, o aludido sacerdote foi celebrar na cripta de Santa Cristina, em Bolsena (Itália). Ali, aconteceu algo miraculoso. Durante a elevação, começaram a cair gotas de sangue sobre o altar e o corporal. Este foi levado para a Catedral de Orvieto, onde é conservado até hoje.
A Eucaristia é a prova permanente da doação plena de Deus, ternura do Pai, abraço divino que nos é reservado, beijo do Eterno, que no silêncio do Pão da Vida mostra-nos seu amor e perdão. Eis o “Tão Sublime Sacramento”, segundo o poema de Santo Tomás de Aquino, continuidade da presença celestial temporalizada na Encarnação. Cristo quis se unir à humanidade. E esta, a partir de então, passa a ter um valor transcendente. O ser humano torna-se sacrário de Cristo! A fragilidade assumida pelo Verbo Encarnado é elevada no Sacramento Eucarístico. Os contemporâneos de Jesus, ao ouvirem do Mestre que haveriam de comer a sua carne e beber o seu sangue, consideraram duras demais as suas palavras (cf. Jo 6, 53-60). E, não querendo aceitá-las, foram se retirando. Cristo questiona, então, os apóstolos: “Não quereis também vós partir?” Pedro respondeu-lhe: “A quem iremos, Senhor? Só Tu tens palavras de vida eterna.” (Jo 6, 68-69). A Encarnação é, sem dúvida, um gesto inefável do amor de Cristo. Mas, Ele quis ir além, culminando com a Eucaristia. Graças à fé, podemos sentir essa teofania de Jesus, concedida por Deus a seus filhos diletos.
O Pão Eucarístico perpetua também os ensinamentos do Divino Mestre. Primeiramente, dá-nos a lição de humildade e serviço. “Com efeito, o que entre vós for o menor, esse é o maior.” (Lc 9, 48). Na Hóstia, o Filho de Deus faz-se pequeno para caber em nosso coração. Nesse mistério sacramental, o Senhor deixa-nos o legado da verdadeira fraternidade. Torna-se alimento igual para todos: pobres e ricos, santos e pecadores. Ele ajuda-nos a compreender o perdão. É difícil perdoar, pois ultrapassa o entendimento e a lógica humana. No Pão Sagrado, o Redentor nos ensina a ser simples, desarmados e de braços estendidos. Deu-nos o exemplo, quando pendeu da Cruz, precedido pelo ato de sua generosidade na Última Ceia. No Altar, Jesus continua seus milagres de misericórdia e compaixão. Durante sua existência terrena, curou doentes e ressuscitou mortos. Hoje, pela Comunhão revitaliza os irmãos amortecidos pela dor, angústia, ausência de Deus e tibieza na fé.
Quem sente falta do Divino, vai buscá-Lo na grandeza dessa presença silenciosa. Ele deixa que sua Palavra repercuta no íntimo de quem se achega para mitigar todo tipo de fome e sede. “Não vos deixarei órfãos” (Jo 14, 18), largados à própria sorte, prometeu o Senhor. Na Eucaristia contamos com a companhia divina, antecipação da eternidade, onde gozaremos o definitivo de nossa história. A Eucaristia é Deus em Cristo, amainando em nós as saudades do Infinito.
Cristo é nossa fortaleza e nos ajuda a caminhar. Quanto mais O temos presente, mais O buscamos, pois Ele é Mistério, ou seja, o Inesgotável. Vivemos a preparação e o aprendizado do nosso encontro definitivo com Ele. Ao participarmos da Santa Comunhão, já não ficaremos sozinhos, Jesus estará conosco. “Já não sou eu quem vive, é Cristo que vive em mim.” (Gl 2, 20). Cônego Luiz Gonzaga Monte, um sábio e santo que morou entre nós, expressou seu sentimento místico e teológico: “Sem a Eucaristia somos pequenos demais para o Céu, com ela grandes para a terra.”
18/05/2021
O império negro de Kush Tomislav R. Femeni
ck - HistoriadorA historiografia tem dado muito pouca atenção a alguns povos. Este é o caso doskuchitas (cuxitas) uma das mais antigas e estruturadas culturas da África Negra. Eleshabitavam a antiga Núbia, região que atualmente é o sul do Egito e o norte do Sudão,situada ao longo do rio Nilo. Suas terras incluíam, ainda, áreas desérticas a leste e a oestedo vale do Nilo, até as cercanias do mar Vermelho e do deserto da Líbia. Embora algunspesquisadores tentem atribuir ascendências mediterrânica, amarela ou mista aos kuchitas, aNúbia era, e é, uma terra povoada por negros. Suas relações com o Antigo Egito retroagem a épocas situadas entre 5000 e 3000a.C., de tal forma intensas e permanentes durante toda a sua existência, que “a história daNúbia é quase inseparável da do Egito” (SHERIF). Durante a primeira dinastia, osegípcios se impuseram no norte da Núbia, com o intuito de controlar o tráfico de algumasmercadorias. O resultado natural foi que os kuchitas absorveram muitos dos costumesegípcios, inclusive a religião e a construção de pirâmides, embora não tão grandiosas. O primeiro reino Kuch teve por sede a cidade de Kerma (Querma), que já existia porvolta de 2400 a.C. Ali eram vendidas as mercadorias do norte e do sul do rio Nilo:produtos manufaturados no Egito, bem como mercadorias naturais da Núbia.Durante o Segundo Período Intermediário, o período de decadência do poder dosFaraós, houve o ressurgimento do reino Kuch. Tão logo o Egito se recuperoupoliticamente, voltou-se contra os kuchitas, impondo-lhes uma derrota militar, obrigandoos vencidos a pagar tributos. Em apenas três anos a Núbia enviou ao Egito cerca de 750quilos de ouro. “Por outro lado, certos elementos culturais núbios seguiram também arota das caravanas, e numerosos deuses e deusas do sul passaram a integrar o panteonegípcio, como o deus carneiro Jnun”(KI-ZERBO). O processo de fortalecimento do reino de Napata tinha como base uma organizaçãoadministrativa que sofria grande influência egípcia, mas tinha as suas tipicidades. Porexemplo, o rei era um autocrata absoluto e, ao contrário dos Faraós, não dividia oudelegava poderes para nenhum membro do estamento governamental ou religioso. Osvizires e sacerdotes eram meros subalternos do rei. Outra base do crescimento foi aeconomia, centrada na exploração agrícola, pecuária e na mineração, para o que contavamas técnicas de trabalhos metalúrgicos e de comercialização de produtos, com um fortecontingente de artesãos e uma população relativamente urbanizada. Em 767 a.C., um dosseus reis derrotou os egípcios, assumiu o governo do país, instituiu a XXV dinastia egípcia,fato que fez com que cinco núbios ocupassem o posto de Faraó do Egito. Note-se que,embora tenha havido uma grande troca de culturas e costumes, nunca houve uma uniãototal desses dois povos nem dos dois governos. Mesmo durante o período de domínionúbio no Egito, continuaram com identidades paralelas, apesar das tentativas de uniãopolítica. A dominação núbia sobre o Egito perdurou até cerca de 655 a.C., quando os
assírios ocuparam o baixo Egito, subiram o rio Nilo, chegando até Tebas, onde realizaramum grande saque. As lutas dos assírios contra a XXV dinastia foram intensas e cruéis. OFaraó Núbio “retirou-se para Kuch, onde sobrevivia o reino egiptizado” (OLIVER eFAGE). No final do século IV a.C., a capital do reino de Napata foi transferida paraMéroe, onde permaneceu até o seu declínio, ocorrido no século I d.C. Os reinos kuchitas, em todas as suas fases, foram exportadores de escravos para oEgito, para a Mesopotâmia e para a Ásia, via mar Vermelho. Para a queda dos kuchitascontribuíram as derrotas que lhes foram impostas pelos Faraós da dinastia ptolomaica,pelos romanos e finalmente, em 320 d.C., pelo reino Aksum (ou Axum), formado poremigrantes árabes. Uma das últimas referências históricas sobre o governo de Méroe datade 652, quando foi assinado em acordo comercial entre o governo islâmico do Egito e osnúbios remanescentes do antigo reino Napata, pelo qual estes forneceriam 360 escravospor ano.PS – Maiores informações sobre o reino Kush estão em meu livro “Os Escravos, daEscravidão Antiga à Escravidão Moderna”.Tribuna do Norte. Natal, 15 maio 2021
Os bordados e as rendas do Seridó potiguar
Padre João Medeiros Filho
Trata-se de uma tradição cultural, socioeconômica e artesanal da região seridoense, cuja origem provavelmente data do final do século XVI. Urge, por conseguinte, uma maior proteção desse patrimônio secular. Em que pesem outras informações, estamos diante de um legado, oriundo do Condado de Flandres. Este durou nove séculos (866-1795), tendo sido integrado aos Países Baixos (Nederland) em 1512. Reunia importantes municípios, compreendendo parte das atuais províncias de Altos da França, Flandres Ocidental e Hainaut. Floresceu com o setor têxtil (incluindo costura, bordados e rendas), dominando o comércio internacional do ramo. Sua capital administrativa era Lille (norte da França), porém Bruges (noroeste da Bélgica) tinha grande expressão artística e mercantil.
Desse encontro de culturas resultaram vários étimos, ainda hoje empregados nos produtos aqui manufaturados. É comum entre nós o emprego de palavras francesas (ou aportuguesadas), provenientes daquele condado, tais como: renaissance, richelieu, crochet, macramê, tricot, guipure, luneville, point perlé etc. Alguns tecidos guardam a nomenclatura primitiva: tricoline, laise, crepe, cambraia (da cidade de Cambrai). Plissé e godet são termos que continuam em uso na costura. Bélgica e Itália disputam o berço da renda de bilros, difundida em Portugal e suas colônias. Produzida em menor escala no Seridó, encontra-se mais na região litorânea do Nordeste. É bom lembrar o que consta na Sagrada Escritura: “O Senhor dotou-os [as] de habilidades para executar qualquer tipo de pintura, escultura e bordados.” (Ex 35, 35).
É inegável o valor artístico das rendas e bordados portugueses, especialmente os oriundos da Ilha da Madeira. Poderiam ter influenciado as artesãs norte-rio-grandenses. Entretanto, os do Seridó aproximam-se mais das renomadas “dentelles de Bruges”. Por isso, estudiosos e especialistas no assunto têm demonstrado que nossa arte é de origem flamenga. É reconhecida a presença neerlandesa, durante sessenta anos no Nordeste brasileiro, inclusive no Seridó. Os Países Baixos, indexando o Condado de Flandres, mesclaram sua cultura e civilização. E os holandeses, aqui chegando, deixaram sua marca artística.
Um passo importante foi dado, em junho de 2018, com o selo de indicação geográfica (IG), concedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) a onze municípios do Seridó potiguar. O SEBRAE vem orientando as artesãs e suas cooperativas no atendimento às normas do INPI. Entretanto, há necessidade de pesquisas e conclusões teórico-técnicas para não se perder a originalidade e qualidade dos produtos. Na década de 1980, o Padre Pedro Neefs, pároco de Campo Grande, organizou um grupo de bordadeiras na Serra de João do Vale, vinculado à Associação comunitária dos trabalhadores avulsos e artesãos de Augusto Severo (ACTAS). Seu objetivo precípuo era manter a tradição cultural e garantir a sua originalidade, e não simplesmente colocar a produção no mercado.
As instituições de ensino superior do Seridó (públicas e particulares) necessitam dar a devida importância ao assunto. Ali, há vários tipos de graduação, mas inexistem cursos voltados para as especificidades culturais e artísticas da região. Os governos e as igrejas poderiam promover estudos para assegurar a fidelidade à tradição dos bordados e rendas. Cabe destacar o valioso contributo do primeiro bispo de Caicó, Dom José de Medeiros Delgado, fundando na sede diocesana a Escola Pré-vocacional – precursora do ensino profissionalizante – que se propunha a ensinar essa arte às jovens. Deve-se igualmente ao aludido prelado a criação, em 1943, da Escola Doméstica Popular Darcy Vargas (extinta em 1972), dedicada também à temática.
Outros estados brasileiros defendem criteriosamente suas tradições e história. Os gaúchos incentivam o conhecimento técnico-científico e acadêmico do vinho, churrasco e chimarrão. Os mineiros protegem seus queijos e cachaças com pesquisas e abordagens científicas. Deve-se evitar a apropriação indevida de nosso patrimônio. Seria uma ameaça à nossa identidade histórico-cultural. Há premência de um referencial teórico da herança flamenga legada à nossa gente. É preciso garantir que os produtos estejam de acordo com a sua proveniência. Ressente-se, ainda hoje, da falta de estudos mais completos como suporte de fidelidade e qualidade de nossa produção. O apóstolo Paulo já dizia: “Assim, pois, irmãos, permanecei firmes e conservai cuidadosamente as tradições que vos foram ensinadas.” (2 Ts 2, 15).
09/05/2021
O desfazimento do Brasil
Tomislav R. Femenick – Mestre em economia, com extensão em sociologia e história
Quando eu me entendi como gente, vivia num país bem diferente do que é o Brasil de hoje. Era um país ainda meio bucólico, onde se amava a natureza e se exaltavam as palmeiras e o canto do sabiá. Tínhamos saído da cruel ditadura de Vargas e respirávamos os ares da democracia. Tínhamos um presidente militar, porém respeitador do “livrinho”, a Constituição. Nas artes tinha baluartes como Portinari, Panceti, Villa-Lobos, Eleazar de Carvalho, Pixinguinha, Carmem Miranda e muitos, muitos outros. Problemas? Existiam, mas... onde não os há?
O fato era que nos orgulhávamos de nossa pátria, a nossa “pátria amada Brasil”. Nas escolas, formávamos filas na frente das salas de aula e cantávamos trechos do Hino Nacional e, como era o meu caso, do hino do Colégio, quando havia. Aí descobri que o Brasil era o país do futuro, como previsto por Stefan Zweig, um judeu nascido na Áustria. Como era bom ser brasileiro e dispor de um futuro promissor.
Mas... esse futuro foi solapado por um bando de brasileiros inescrupulosos. Jânio Quatros renunciou à presidência da República em pleno delírio etílico. Jango Goulart assumiu a presidência e começou a flertar com ideias esquerdistas e foi defenestrado do trono. Os militares tomaram o poder para ajeitar tudo em pouco tempo, ficaram mais de vinte anos comandando a tropa. Depois vieram Sarney, o senhor inflação; Collor, cassado por improbidade; Fernando Henrique, o criador da reeleição; Lula, o operário que fez amizade com os grandes empreiteiros e se locupletou; Dilma, a gerentona que não soube gerir e deu algumas pedaladas, e chegamos a Bolsonaro (Itamar e Temer foram só acidentes de percurso).
Apesar de alguns tropeços aqui e ali, as instituições que edificam o estado democrático de direito ficaram intactas (exceção houve no governo militar), com alguns arranhões, uns superficiais e outros mais profundos, mas que não comprometiam seus fundamentos: respeito às normas legais, aos direitos fundamentais, e proteção da dignidade da pessoa humana.
Eis que de repente, sem aviso prévio, as câmaras de TV chegaram ao STF, e os ministros passaram a atuar como astros e estrelas de uma novela maluca, onde impera o nonsense. Ministros discutem entre si, usando linguajar compatível com uma pelada de várzea; emitem opinião antes do tempo, sobre inquérito em andamento; mudam votos já emitidos, no mesmo processo; alteram entendimentos já estabelecidos, sobre o texto constitucional. Parece que vivem em outro mundo que não o nosso. Exemplo disso são seus companheiros do STJ, que preveem gastar a bagatela de R$ 42.750,00, para compra de togas, becas, capas e outras vestimentas. Isso tudo quando, no trimestre de dezembro a fevereiro último, a taxa de desemprego atingiu 14,4 milhões de pessoas e outros seis milhões, em desalento, nem mais procuram emprego.
No Congresso nacional, cobertos pelo manto da vaidade, deputados e senadores lutam por visibilidade na CPI da pandemia, digladiam-se para ocupar cargos em que depois possam negociar com o Executivo. Não bastasse isso, aprovaram um Orçamento para 2021 que é uma peça de ficção, jogaram para baixo do tapete um montão de despesas correntes obrigatórias, somente para alargar as chamadas “verbas parlamentares”. Em um ano que já registra mais de 400 mil mortes pelo coronavírus, cortaram até verbas para o SUS, a porta de socorro dos mais pobres.
Por sua vez, o Executivo faz jogo de cena. Ora desconhece a pandemia (que já provocou mais de 400 mil mortes), atacando o distanciamento social, o uso das máscaras e os governos estaduais e municipais, a compra de vacinas e os países que nos podem fornecê-las, ora diz que ela – a pandemia – existe, mas é algo passageiro.
Não bastasse isso tudo, o governo Bolsonaro rifou os seus melhores quadros. Quantos ministros já foram mandados embora ou pediram demissão? Basta citar Mandetta, Santos Cruz e Moro. Só falta o Posto Ipiranga que, no entanto, é submetido a uma dieta de sapos empanados, dia sim e outro também.
Tribuna do Norte. Natal, 05 maio 2021.
Assinar:
Postagens (Atom)