As pedras
Os antigos já diziam: “E por que reparas tu no argueiro que está no
olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás
a teu irmão: deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave
no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás
em tirar o argueiro do olho do teu irmão” (Mateus 7:3-5).
Embora
essa lição jamais tenha sido razoavelmente aprendida na história da
civilização, ela nunca foi tão esquecida como nos dias de hoje.
Nas ruas e, sobretudo, nas tais redes sociais, o que mais enxergamos
agora são pessoas apontando o dedo para A ou para B, dizendo trocentos
impropérios contra esses seus imaginados desafetos. Se o que dizem ou
reproduzem é verdade, pouco importa. Fulano é canalha. Sicrano é ladrão.
Não sei quem é maconheiro. Aquele lá é um vagabundo. Uma outra é vadia.
E paro por aqui para não reproduzir as mais escatológicas estultices
desses últimos tempos.
Acontece que muitíssimo disso é
hipocrisia. Aquela hipocrisia direta, em que o indivíduo arrota virtudes
e condutas que, em verdade, não possui ou não pratica. E sempre exige
dos outros que se comportem dentro desses padrões estabelecidos, quando
ele mesmo, dissimuladamente, repito, não os adota ou os extrapola. Por
exemplo, em razão da minha profissão, eu mesmo já vi muita gente que sei
investigada, denunciada ou mesmo condenada por crimes contra o
patrimônio publico sair por aí denunciando, em manifestações ou nas
redes sociais, irresponsável e hipocritamente, os mesmos crimes e
pecados pelos quais responde, só que praticados (supostamente) por
outrem. Como diria o velho Timbira, do “I-Juca Pirama” do nosso
Gonçalves Dias (1823-1864), esse exemplo clássico de comportamento
hipócrita, “Meninos, eu vi”. E bastante.
Mas há, também, a
hipocrisia indireta do sujeito caolho. Ele pratica mil e um “pecados”.
Só que são os seus pecados, que ele acha naturais ou, pelo menos,
veniais. Mas os pecados dos outros são imperdoáveis, capitais. Ele
dirige bebendo, mas tem por facínora aquele que fuma maconha (porque ele
não fuma, claro). Ele sonega tributos e paga uma bolinha (aqui e acolá,
apenas), mas pede pena de morte para o ladrão de galinhas. E se
fossemos falar aqui da hipocrisia indireta quanto ao comportamento
sexual dos outros, cem páginas não seriam suficientes. Talvez a coisa,
nestes casos (de hipocrisia indireta), seja até mais perigosa, porque o
hipócrita mente para si mesmo e acredita na sua própria mentira ao ponto
de não mais conseguir distinguir o certo e o errado, se não com base na
sua própria régua de vida.
E isso sem falar daquele que não
cometeu (ainda) graves pecados porque ainda está em busca da grande
chance para tanto. O crime, já se afirmou, é uma questão de
oportunidade. E, como dizia o genial Millôr Fernandes (1923-2012), com
sua fina ironia, “muita gente que fala o tempo todo contra a corrupção
está apenas cuspindo no prato em que não conseguiu comer”.
A
coisa chega ao ápice com os moralistas “profissionais” do Twitter, do
Facebook e do Whatsapp. Aquele tipo que, parecendo um pregador ou uma
espécie de juiz, se acha no direito de admoestar ou de julgar a todos a
partir de uma moral supostamente absoluta. Ele divide o mundo entre os
bons e os maus. Vive de plantão. Vive de apontar o dedo, de julgar e de
condenar os outros. Mas, desconectado da realidade, cai sempre em
contradição. É um ressentido. É desocupado. E quanto mais obtuso ou
tolo, mais moralista, já que a tolice é direta, sem rodeios, sem
sutilezas, certa de tudo. A sorte é que esse tipo de pessoa, no que
realmente importa e para quem importa, nunca é levada a sério.
Na verdade, esses indivíduos são, quase sempre, falsos moralistas.
Até porque, acho que alguém já disse isso – estou na dúvida se foi H.
L. Mencken (1880-1956) ou o nosso Millôr –, “a única diferença entre um
moralista e um falso moralista é que o primeiro ainda não foi
desmascarado” (e, se essa frase não foi dita antes, assumo a sua
paternidade de muitíssimo bom grado).
Até porque, cá entre nós,
quem nunca cometeu um pecado na vida, para poder, assim, honestamente,
atirar esse montão de pedras (João 8:7)?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP