07/09/2019


As pedras
Os antigos já diziam: “E por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão, e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão” (Mateus 7:3-5).
Embora essa lição jamais tenha sido razoavelmente aprendida na história da civilização, ela nunca foi tão esquecida como nos dias de hoje.
Nas ruas e, sobretudo, nas tais redes sociais, o que mais enxergamos agora são pessoas apontando o dedo para A ou para B, dizendo trocentos impropérios contra esses seus imaginados desafetos. Se o que dizem ou reproduzem é verdade, pouco importa. Fulano é canalha. Sicrano é ladrão. Não sei quem é maconheiro. Aquele lá é um vagabundo. Uma outra é vadia. E paro por aqui para não reproduzir as mais escatológicas estultices desses últimos tempos.
Acontece que muitíssimo disso é hipocrisia. Aquela hipocrisia direta, em que o indivíduo arrota virtudes e condutas que, em verdade, não possui ou não pratica. E sempre exige dos outros que se comportem dentro desses padrões estabelecidos, quando ele mesmo, dissimuladamente, repito, não os adota ou os extrapola. Por exemplo, em razão da minha profissão, eu mesmo já vi muita gente que sei investigada, denunciada ou mesmo condenada por crimes contra o patrimônio publico sair por aí denunciando, em manifestações ou nas redes sociais, irresponsável e hipocritamente, os mesmos crimes e pecados pelos quais responde, só que praticados (supostamente) por outrem. Como diria o velho Timbira, do “I-Juca Pirama” do nosso Gonçalves Dias (1823-1864), esse exemplo clássico de comportamento hipócrita, “Meninos, eu vi”. E bastante.
Mas há, também, a hipocrisia indireta do sujeito caolho. Ele pratica mil e um “pecados”. Só que são os seus pecados, que ele acha naturais ou, pelo menos, veniais. Mas os pecados dos outros são imperdoáveis, capitais. Ele dirige bebendo, mas tem por facínora aquele que fuma maconha (porque ele não fuma, claro). Ele sonega tributos e paga uma bolinha (aqui e acolá, apenas), mas pede pena de morte para o ladrão de galinhas. E se fossemos falar aqui da hipocrisia indireta quanto ao comportamento sexual dos outros, cem páginas não seriam suficientes. Talvez a coisa, nestes casos (de hipocrisia indireta), seja até mais perigosa, porque o hipócrita mente para si mesmo e acredita na sua própria mentira ao ponto de não mais conseguir distinguir o certo e o errado, se não com base na sua própria régua de vida.
E isso sem falar daquele que não cometeu (ainda) graves pecados porque ainda está em busca da grande chance para tanto. O crime, já se afirmou, é uma questão de oportunidade. E, como dizia o genial Millôr Fernandes (1923-2012), com sua fina ironia, “muita gente que fala o tempo todo contra a corrupção está apenas cuspindo no prato em que não conseguiu comer”.
A coisa chega ao ápice com os moralistas “profissionais” do Twitter, do Facebook e do Whatsapp. Aquele tipo que, parecendo um pregador ou uma espécie de juiz, se acha no direito de admoestar ou de julgar a todos a partir de uma moral supostamente absoluta. Ele divide o mundo entre os bons e os maus. Vive de plantão. Vive de apontar o dedo, de julgar e de condenar os outros. Mas, desconectado da realidade, cai sempre em contradição. É um ressentido. É desocupado. E quanto mais obtuso ou tolo, mais moralista, já que a tolice é direta, sem rodeios, sem sutilezas, certa de tudo. A sorte é que esse tipo de pessoa, no que realmente importa e para quem importa, nunca é levada a sério.
Na verdade, esses indivíduos são, quase sempre, falsos moralistas.
Até porque, acho que alguém já disse isso – estou na dúvida se foi H. L. Mencken (1880-1956) ou o nosso Millôr –, “a única diferença entre um moralista e um falso moralista é que o primeiro ainda não foi desmascarado” (e, se essa frase não foi dita antes, assumo a sua paternidade de muitíssimo bom grado).
Até porque, cá entre nós, quem nunca cometeu um pecado na vida, para poder, assim, honestamente, atirar esse montão de pedras (João 8:7)?

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

Nenhum comentário:

Postar um comentário