O jurista ensaísta
Ganhei do meu pai, dias desses, uma bela edição de “Os ensaios”, de
Michel de Montaigne (1533-1592). É uma publicação da Martins Fontes, de
2002. São três volumes, para os três Livros, todos em capa mole, preta,
com uma imagem do autor. Coisa de boa qualidade. Novinha. Agradeço
publicamente.
Já andei folheando e, como alguns de vocês podem
ter notado, eu até já citei um trechinho de Montaigne na minha crônica
da semana passada. E posso até citar outro agora, retirado do ensaio “Da
ociosidade”: “A alma que não tem objetivo estabelecido perde-se: pois,
como se diz, estar em toda parte é não estar em lugar algum”.
Montaigne é considerado o exemplo do intelectual moderno. Talvez tenha
sido o primeiro deles. Como bem define Carlos Eduardo Ortolan, em
“Caderno Entrelivros nº 4 – Panorama da Literatura Francesa” (Duetto
Editorial, 2007), ele foi um “cavalheiro elegante que, recluso em sua
propriedade em Bordeaux e cercado por vasta biblioteca como um herói
solitário de pensamento, produziu reflexões sobre os temas mais
variados. Montaigne forneceu o tom para o estudioso erudito, o
trabalhador intelectual incansável, às voltas com a leitura e a redação
de seus artigos”. Montaigne foi sobretudo um sábio, no que de mais
positivo possa ter essa palavra. Sensato, era um praticante da “epoché”
do ceticismo clássico, a suspensão do juízo diante da antinomia de duas
formulações igualmente razoáveis e fundamentadas, evitando, entre outras
coisas, falar tolices. E procurava – ou recomendava, na sua filosofia –
não ser afetado pelas paixões que arrastam a gente; buscava a
imperturbabilidade do ânimo, a tranquilidade da alma, aquilo que os
gregos batizaram de “ataraxia”.
Mas, finalmente, de que tratam
esses tais “ensaios” do grande erudito? De quase tudo, afirmo. Muito
embora, até como já dito acima, influenciada pelo ceticismo e pelo
estoicismo clássicos, a filosofia de Montaigne gire muito em torno – ou
está sempre perpassada – do aperfeiçoamento de nossa conduta espiritual e
moral. Como lembra o já citado Carlos Eduardo Ortolan, “uma breve vista
de olhos por suas páginas nos brindará com um cortejo imenso,
heterogêneo e vazado, no melhor estilo clássico de uma variedade de
temas que faria inveja a qualquer enciclopédia moderna. Dos malefícios
do consumo excessivo do vinho (não desconsiderando suas virtudes para a
alegria da alma), passando pela análise da coragem em combate, pelo amor
aos livros e ao estudo, pelo tema da memória, o livro de Montaigne
parece não desprezar nenhum elemento da existência humana. Esse é um dos
encantos da obra: os ensaios podem ser lidos sem compromisso com uma
ordem rígida, abertos ao acaso e fruídos em sua sabedoria e elegância,
mesmo nos tempos atuais”. Ademais, refletindo a enorme cultura clássica
do autor, os ensaios são cheios de narrativas de episódios da vida e de
citações inspiradoras dos grandes gregos e latinos (e alguém, pouco
simpático a Montaigne, até já criticou a sua obra por um suposto excesso
de citações), frutos de suas leituras da história, de filosofia e de
literatura.
Os ensaios são sistemáticos até certo ponto. Os
textos estão agrupados ou fluem em núcleos temáticos, é verdade. Mas
eles são sobretudo fruto das reflexões pessoais do autor, das suas
preferências do momento, das suas variações de humor, dos seus voos na
imaginação, quando, tinta, pena e papel à mão, ele escreve na torre do
seu famoso castelo. De fato, não se enxerga em Montaigne um espírito de
sistema, ao estilo de um Descartes (1596-1650), de um Espinoza
(1632-1677), de um Kant (1724-1804) ou de um Hegel (1770-1831). Como
registra o mesmo Carlos Eduardo Ortolan, “tal sistema não existe, e
nunca foi a intenção do autor. Mas poderíamos perguntar, talvez de
maneira não inteiramente descabida, o que envelheceu mais. Foram as
sofisticadas arquiteturas sistemáticas do pensamento do século XVII, com
suas catedrais metafísicas e elos conceituais ou as reflexões refinadas
do solitário moralista, o letrado que escreve, ao sabor da inspiração
do momento, com graça, espírito e elegância sobre os mais variados
assuntos?”.
Por fim, se Michel de Montaigne é conhecido como um
grande erudito e seus ensaios são reconhecidos pela profunda filosofia
de matiz cético e estoico, o que poucos sabem é que esse cavalheiro foi
também, a seu tempo, um profissional do direito. Nascido em uma família
nobre e rica – lembremos do seu castelo ou “Château de Montaigne” –,
aparentado de judeus, ele teve, por determinação do pai, uma educação
primorosa. Primeiro com um tutor particular (com quem aprendeu o latim,
fundamental para seus estudos clássicos, quase como primeira língua) e,
depois, no célebre “Collège de Guienne”, em Bordeaux, sob a direção do
pedagogo humanista português André de Gouveia (1497-1548). E foi estudar
e fazer direito. Foi conselheiro/magistrado em Périgueux e, depois, de
volta, na gostosa Bordeaux (bendito seja o vinho! Mas, hoje, com
moderação). Ali – refiro-me à cidade dos vinhos – foi amigo de outro
gigante, Étienne de La Boétie (1530-1563), que, infelizmente, nos deixou
muito cedo.
Michel de Montaigne, entretanto, com o falecimento
do pai e a herança recebida, inclusive o título de “Senhor de
Montaigne”, vendeu seu cargo de magistrado. Isso era possível na época,
esclareço logo. Trancou-se na torre do castelo, a sua biblioteca, e foi
escrever. Esse primeiro retiro durou pouco, dados os tempos conturbados,
de guerras religiosas, por que passava a França. Montaigne foi
prestigiado pelos reis Henrique III (reinado 1574-1589) e Henrique IV
(1589-1610) de França. Foi ainda presidente da Câmara de Bordeaux (o que
significava ser uma espécie de prefeito), durante, aproximadamente, um
lustro de anos. E, mais uma vez, abandonou a coisa. Dizem que se trancou
na mesma torre, com a sua biblioteca, e foi novamente escrever.
Sabem de uma coisa? Com esses “retiros” de Montaigne, acho que o
direito perdeu pouco; já a filosofia – e a civilização, posso também
dizer – ganhou muito.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP