20/05/2019


O jurista ensaísta
Ganhei do meu pai, dias desses, uma bela edição de “Os ensaios”, de Michel de Montaigne (1533-1592). É uma publicação da Martins Fontes, de 2002. São três volumes, para os três Livros, todos em capa mole, preta, com uma imagem do autor. Coisa de boa qualidade. Novinha. Agradeço publicamente.
Já andei folheando e, como alguns de vocês podem ter notado, eu até já citei um trechinho de Montaigne na minha crônica da semana passada. E posso até citar outro agora, retirado do ensaio “Da ociosidade”: “A alma que não tem objetivo estabelecido perde-se: pois, como se diz, estar em toda parte é não estar em lugar algum”.
Montaigne é considerado o exemplo do intelectual moderno. Talvez tenha sido o primeiro deles. Como bem define Carlos Eduardo Ortolan, em “Caderno Entrelivros nº 4 – Panorama da Literatura Francesa” (Duetto Editorial, 2007), ele foi um “cavalheiro elegante que, recluso em sua propriedade em Bordeaux e cercado por vasta biblioteca como um herói solitário de pensamento, produziu reflexões sobre os temas mais variados. Montaigne forneceu o tom para o estudioso erudito, o trabalhador intelectual incansável, às voltas com a leitura e a redação de seus artigos”. Montaigne foi sobretudo um sábio, no que de mais positivo possa ter essa palavra. Sensato, era um praticante da “epoché” do ceticismo clássico, a suspensão do juízo diante da antinomia de duas formulações igualmente razoáveis e fundamentadas, evitando, entre outras coisas, falar tolices. E procurava – ou recomendava, na sua filosofia – não ser afetado pelas paixões que arrastam a gente; buscava a imperturbabilidade do ânimo, a tranquilidade da alma, aquilo que os gregos batizaram de “ataraxia”.
Mas, finalmente, de que tratam esses tais “ensaios” do grande erudito? De quase tudo, afirmo. Muito embora, até como já dito acima, influenciada pelo ceticismo e pelo estoicismo clássicos, a filosofia de Montaigne gire muito em torno – ou está sempre perpassada – do aperfeiçoamento de nossa conduta espiritual e moral. Como lembra o já citado Carlos Eduardo Ortolan, “uma breve vista de olhos por suas páginas nos brindará com um cortejo imenso, heterogêneo e vazado, no melhor estilo clássico de uma variedade de temas que faria inveja a qualquer enciclopédia moderna. Dos malefícios do consumo excessivo do vinho (não desconsiderando suas virtudes para a alegria da alma), passando pela análise da coragem em combate, pelo amor aos livros e ao estudo, pelo tema da memória, o livro de Montaigne parece não desprezar nenhum elemento da existência humana. Esse é um dos encantos da obra: os ensaios podem ser lidos sem compromisso com uma ordem rígida, abertos ao acaso e fruídos em sua sabedoria e elegância, mesmo nos tempos atuais”. Ademais, refletindo a enorme cultura clássica do autor, os ensaios são cheios de narrativas de episódios da vida e de citações inspiradoras dos grandes gregos e latinos (e alguém, pouco simpático a Montaigne, até já criticou a sua obra por um suposto excesso de citações), frutos de suas leituras da história, de filosofia e de literatura.
Os ensaios são sistemáticos até certo ponto. Os textos estão agrupados ou fluem em núcleos temáticos, é verdade. Mas eles são sobretudo fruto das reflexões pessoais do autor, das suas preferências do momento, das suas variações de humor, dos seus voos na imaginação, quando, tinta, pena e papel à mão, ele escreve na torre do seu famoso castelo. De fato, não se enxerga em Montaigne um espírito de sistema, ao estilo de um Descartes (1596-1650), de um Espinoza (1632-1677), de um Kant (1724-1804) ou de um Hegel (1770-1831). Como registra o mesmo Carlos Eduardo Ortolan, “tal sistema não existe, e nunca foi a intenção do autor. Mas poderíamos perguntar, talvez de maneira não inteiramente descabida, o que envelheceu mais. Foram as sofisticadas arquiteturas sistemáticas do pensamento do século XVII, com suas catedrais metafísicas e elos conceituais ou as reflexões refinadas do solitário moralista, o letrado que escreve, ao sabor da inspiração do momento, com graça, espírito e elegância sobre os mais variados assuntos?”.
Por fim, se Michel de Montaigne é conhecido como um grande erudito e seus ensaios são reconhecidos pela profunda filosofia de matiz cético e estoico, o que poucos sabem é que esse cavalheiro foi também, a seu tempo, um profissional do direito. Nascido em uma família nobre e rica – lembremos do seu castelo ou “Château de Montaigne” –, aparentado de judeus, ele teve, por determinação do pai, uma educação primorosa. Primeiro com um tutor particular (com quem aprendeu o latim, fundamental para seus estudos clássicos, quase como primeira língua) e, depois, no célebre “Collège de Guienne”, em Bordeaux, sob a direção do pedagogo humanista português André de Gouveia (1497-1548). E foi estudar e fazer direito. Foi conselheiro/magistrado em Périgueux e, depois, de volta, na gostosa Bordeaux (bendito seja o vinho! Mas, hoje, com moderação). Ali – refiro-me à cidade dos vinhos – foi amigo de outro gigante, Étienne de La Boétie (1530-1563), que, infelizmente, nos deixou muito cedo.
Michel de Montaigne, entretanto, com o falecimento do pai e a herança recebida, inclusive o título de “Senhor de Montaigne”, vendeu seu cargo de magistrado. Isso era possível na época, esclareço logo. Trancou-se na torre do castelo, a sua biblioteca, e foi escrever. Esse primeiro retiro durou pouco, dados os tempos conturbados, de guerras religiosas, por que passava a França. Montaigne foi prestigiado pelos reis Henrique III (reinado 1574-1589) e Henrique IV (1589-1610) de França. Foi ainda presidente da Câmara de Bordeaux (o que significava ser uma espécie de prefeito), durante, aproximadamente, um lustro de anos. E, mais uma vez, abandonou a coisa. Dizem que se trancou na mesma torre, com a sua biblioteca, e foi novamente escrever.
Sabem de uma coisa? Com esses “retiros” de Montaigne, acho que o direito perdeu pouco; já a filosofia – e a civilização, posso também dizer – ganhou muito.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

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