20/05/2019


O jurista ensaísta
Ganhei do meu pai, dias desses, uma bela edição de “Os ensaios”, de Michel de Montaigne (1533-1592). É uma publicação da Martins Fontes, de 2002. São três volumes, para os três Livros, todos em capa mole, preta, com uma imagem do autor. Coisa de boa qualidade. Novinha. Agradeço publicamente.
Já andei folheando e, como alguns de vocês podem ter notado, eu até já citei um trechinho de Montaigne na minha crônica da semana passada. E posso até citar outro agora, retirado do ensaio “Da ociosidade”: “A alma que não tem objetivo estabelecido perde-se: pois, como se diz, estar em toda parte é não estar em lugar algum”.
Montaigne é considerado o exemplo do intelectual moderno. Talvez tenha sido o primeiro deles. Como bem define Carlos Eduardo Ortolan, em “Caderno Entrelivros nº 4 – Panorama da Literatura Francesa” (Duetto Editorial, 2007), ele foi um “cavalheiro elegante que, recluso em sua propriedade em Bordeaux e cercado por vasta biblioteca como um herói solitário de pensamento, produziu reflexões sobre os temas mais variados. Montaigne forneceu o tom para o estudioso erudito, o trabalhador intelectual incansável, às voltas com a leitura e a redação de seus artigos”. Montaigne foi sobretudo um sábio, no que de mais positivo possa ter essa palavra. Sensato, era um praticante da “epoché” do ceticismo clássico, a suspensão do juízo diante da antinomia de duas formulações igualmente razoáveis e fundamentadas, evitando, entre outras coisas, falar tolices. E procurava – ou recomendava, na sua filosofia – não ser afetado pelas paixões que arrastam a gente; buscava a imperturbabilidade do ânimo, a tranquilidade da alma, aquilo que os gregos batizaram de “ataraxia”.
Mas, finalmente, de que tratam esses tais “ensaios” do grande erudito? De quase tudo, afirmo. Muito embora, até como já dito acima, influenciada pelo ceticismo e pelo estoicismo clássicos, a filosofia de Montaigne gire muito em torno – ou está sempre perpassada – do aperfeiçoamento de nossa conduta espiritual e moral. Como lembra o já citado Carlos Eduardo Ortolan, “uma breve vista de olhos por suas páginas nos brindará com um cortejo imenso, heterogêneo e vazado, no melhor estilo clássico de uma variedade de temas que faria inveja a qualquer enciclopédia moderna. Dos malefícios do consumo excessivo do vinho (não desconsiderando suas virtudes para a alegria da alma), passando pela análise da coragem em combate, pelo amor aos livros e ao estudo, pelo tema da memória, o livro de Montaigne parece não desprezar nenhum elemento da existência humana. Esse é um dos encantos da obra: os ensaios podem ser lidos sem compromisso com uma ordem rígida, abertos ao acaso e fruídos em sua sabedoria e elegância, mesmo nos tempos atuais”. Ademais, refletindo a enorme cultura clássica do autor, os ensaios são cheios de narrativas de episódios da vida e de citações inspiradoras dos grandes gregos e latinos (e alguém, pouco simpático a Montaigne, até já criticou a sua obra por um suposto excesso de citações), frutos de suas leituras da história, de filosofia e de literatura.
Os ensaios são sistemáticos até certo ponto. Os textos estão agrupados ou fluem em núcleos temáticos, é verdade. Mas eles são sobretudo fruto das reflexões pessoais do autor, das suas preferências do momento, das suas variações de humor, dos seus voos na imaginação, quando, tinta, pena e papel à mão, ele escreve na torre do seu famoso castelo. De fato, não se enxerga em Montaigne um espírito de sistema, ao estilo de um Descartes (1596-1650), de um Espinoza (1632-1677), de um Kant (1724-1804) ou de um Hegel (1770-1831). Como registra o mesmo Carlos Eduardo Ortolan, “tal sistema não existe, e nunca foi a intenção do autor. Mas poderíamos perguntar, talvez de maneira não inteiramente descabida, o que envelheceu mais. Foram as sofisticadas arquiteturas sistemáticas do pensamento do século XVII, com suas catedrais metafísicas e elos conceituais ou as reflexões refinadas do solitário moralista, o letrado que escreve, ao sabor da inspiração do momento, com graça, espírito e elegância sobre os mais variados assuntos?”.
Por fim, se Michel de Montaigne é conhecido como um grande erudito e seus ensaios são reconhecidos pela profunda filosofia de matiz cético e estoico, o que poucos sabem é que esse cavalheiro foi também, a seu tempo, um profissional do direito. Nascido em uma família nobre e rica – lembremos do seu castelo ou “Château de Montaigne” –, aparentado de judeus, ele teve, por determinação do pai, uma educação primorosa. Primeiro com um tutor particular (com quem aprendeu o latim, fundamental para seus estudos clássicos, quase como primeira língua) e, depois, no célebre “Collège de Guienne”, em Bordeaux, sob a direção do pedagogo humanista português André de Gouveia (1497-1548). E foi estudar e fazer direito. Foi conselheiro/magistrado em Périgueux e, depois, de volta, na gostosa Bordeaux (bendito seja o vinho! Mas, hoje, com moderação). Ali – refiro-me à cidade dos vinhos – foi amigo de outro gigante, Étienne de La Boétie (1530-1563), que, infelizmente, nos deixou muito cedo.
Michel de Montaigne, entretanto, com o falecimento do pai e a herança recebida, inclusive o título de “Senhor de Montaigne”, vendeu seu cargo de magistrado. Isso era possível na época, esclareço logo. Trancou-se na torre do castelo, a sua biblioteca, e foi escrever. Esse primeiro retiro durou pouco, dados os tempos conturbados, de guerras religiosas, por que passava a França. Montaigne foi prestigiado pelos reis Henrique III (reinado 1574-1589) e Henrique IV (1589-1610) de França. Foi ainda presidente da Câmara de Bordeaux (o que significava ser uma espécie de prefeito), durante, aproximadamente, um lustro de anos. E, mais uma vez, abandonou a coisa. Dizem que se trancou na mesma torre, com a sua biblioteca, e foi novamente escrever.
Sabem de uma coisa? Com esses “retiros” de Montaigne, acho que o direito perdeu pouco; já a filosofia – e a civilização, posso também dizer – ganhou muito.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

16/05/2019



A REVOLTA DOS GUARAPES

Vicente Serejo*

Outro dia perguntei ao meu amigo Valério Mesquita, legítimo senhor do velho principado de Macaíba, como se faria para o governo estadual iniciar as obras de restauração do casarão dos Guarapes. Valério contraiu o cenho como um velho personagem de romance, e me respondeu: "Não sei. Só soube que Fabrício Pedroza, inconformado com esse abandono sem fim, arregimenta os fantasmas guerreiros e vai descer do alto dos Guarapes numa revolta armada e sem fronteiras".
Ora, essa mania de gostar de literatura tem esse defeito medonho: não fazemos diferença entre o real e o irreal. A narrativa para nós, leitores como eu, ou escritores como ele, é um toque mágico que faz viver com a força da palavra o que parece ser apensas um quadro na parede, para usar o verso belíssimo do poeta Drummond de Andrade. Pois assim aconteceu. Foi Valério descrevendo a cena épica e o medo cavalgando sobre a alma melancólica deste pobre homem da Rua da Frente.
Já imagino o mui austero Fabrício Pedroza, senhor de terras e de gados, de sonhos e de riquezas, na sua ira santa. Duas vezes querem vê-lo vencido pelos reveses da vida. Na saúde que perdeu tão moço e, agora, no seu casarão colonial que deixam cair em ruínas, numa agonia de mais de um século. Resta um frontão já consumindo suas últimas forças, mantendo a aristocracia de seu olhar sobre o rio e os tabuleiros, ali onde seus olhos ficaram pregados na paisagem íntima.
Numa ira santa e tão desafiado na sua coragem dura e antiga como as pedras do seu chão, ninguém duvide mesmo se numa madrugada dessas Fabrício Pedroza, feito um Dom Quixote no seu delírio sonhador, descer do alto do Paço dos Guarapes arrastando seus alabardeiros com as suas alabardas em riste como a guarda suíça do Vaticano. Quando desse rio e desse mar não foram tesouros seus no comércio das riquezas e das palavras perdidas? Enfrentá-lo, quem há de?
Velho de mais de um século e meio, o casarão de Fabrício É um símbolo pela voragem dos anos, nem o tempo pode apagar sua história. A agitação dos seus dias na exposição de sal, peles, algodão, açúcar e especiarias, conta a história viva de um tempo de fulgor, aqui e dalém mar. Quem sepultará o sonho de Fabrício Pedroza, morto em 1871, se suas mãos e seus feitos não repousam em paz no velho Cemitério de São João Batista?
A ninguém o rigor histórico perdoará pela rendição. Não é só um casarão decaído, suspirando entre ruínas. Mas seus anos de fama, riqueza e poder. Por isso, talvez pela mania de acreditar no milagre da transcendência, tive medo quando Valério Mesquita disse que corre na feira de Macaíba a notícia de que o pequeno e heróico exército de Fabrício Pedroza, sem glória e sem sossego, nesses dias desce do alto dos Guarapes. Numa revolta feita de mágoa e solidão.

(*) Escritor e Jornalista


13/05/2019


Da moderação
Confesso que roubei o título desta crônica de um ensaio de Michel de Montaigne (1533-1592). Talvez seja porque eu aprecie, como Montaigne, “as naturezas equilibradas e moderadas. A falta de moderação, mesmo para com o bem, se não me choca, espanta-me e causa-me dificuldade para batizá-la. (…). E não me agrada nem aconselhar nem seguir uma virtude tão feroz e tão dispendiosa” (“Da moderação”, em “Os ensaios”, livro I, editora Martins Fontes, 2002).
Mas o fato é que ando muito preocupado com estes nossos tempos em que radicais e amalucados, de dentro, pululam na nossa Justiça, na nossa política e na condução geral do nosso país. E, de fora, muito mais do que outros tantos, desocupados ou frustrados, sobretudo nas tais redes sociais, batem palmas para esses malucos.
De quebra, caíram novamente em minhas mãos dois livros marcantes, lidos outrora, que, em passagens que nunca esqueci, fazem, cada qual a seu modo, apelos à moderação. Falo de “O Século dos Intelectuais” (Bertrand Brasil, 2000), de Michael Winock (Bertrand Brasil, 2000) e de “A era da incerteza” (Livraria Pioneira Editora, 1980), de John Kenneth Galbraith (1908-2006). Talvez, se eu fosse um astrólogo-filósofo, acreditasse ter sido isso uma conspiração dos astros.
Em “O Século dos Intelectuais” (“Le siècle des inttelectuels”), Winock faz uma homenagem à moderação na pessoa do filósofo, sociólogo e cientista político Raymond Aron (1905-1983), sobretudo levando em conta o livro “O grande cisma” (“Le Grand Schisme”, editora Gallimard, 1948), ensaio de síntese sobre a situação política mundial e francesa de então: “a clareza da exposição [em ‘Le Grand Schisme’], sustentada por fórmulas que passaram à posteridade, e sobretudo a determinação do autor ainda impressionam o leitor atual. Enquanto a luta ideológica favorece, de ambos os lados, uma literatura muitas vezes delirante, o autor surpreende também por um certo tom que não é exatamente o da época – o da moderação. Aron, porém, dá provas de que um espírito de moderação não significa um caráter fraco, que ele surge menos de um temperamento, que de uma experiência e de uma cultura adquiridas, de uma paixão dominada. Le Grand Schisme denota uma combinação entre comedimento nas palavras e firmeza na atitude”.
Autor de clássicos como “L’Opium des intellectuels” (1955), “Démocratie et totalitarisme” (1965) e “Les étapes de la pensée sociologique” (1967), Raymond Aron foi, no seu tempo, a voz da moderação na política. Teve muitos discípulos tanto na esquerda como na direita, muito embora se considerasse pessoalmente, e um tanto quanto estranhamente (bastando aqui lembrar de “L’Opium des intellectuels”), mais um agitador de esquerda do que um de direita (talvez em virtude da sua aproximação pessoal com muitos intelectuais “à gauche”). Outro dia, andei conversando com meu pai sobre as “Mémoires” (1983) de Aron. E lamentei, mas sem botar culpa nas estrelas, a ausência de intelectuais como Aron na arena política brasileira (e, quicá, na mundial).
Já em “A era da incerteza” (“The Age of Uncertainty”) – livro que é resultado, no papel, de uma série de TV produzida pela BBC, apresentada pelo próprio Galbraith –, o autor nos conta uma parte da história da famosa “crise dos mísseis cubanos”, passada entre os dias 16 e 28 de outubro de 1962. Por essa época, “generais [e outros afoitos de ocasião] faziam discursos ameaçando os comunistas com extermínio atômico”, lembra Galbraith. Conclamavam os americanos a embarcar na empreitada. E mostravam – pelo menos eles pensavam que sim – uma suposta coragem pessoal. Durante alguns dias angustiantes, a perspectiva de uma guerra nuclear – reciprocamente suicida, para dizer o mínimo – tornou-se clara e iminente.
Entretanto, como especialmente ressalta John Kenneth Galbraith, “algo mais evidenciou-se nessa crise, pelo menos para o Presidente dos Estados Unidos. Foi a de que homens de pouca coragem moral, quando se veem forçados a uma decisão, ficam com medo de resistir ao ponto de vista consagrado, não importando quão catastrófico ele possa ser. Assim, paradoxalmente, por covardia, com receio de divergir ou parecer fracos, eles concitam a tomar-se o curso mais perigoso. Durante a crise dos mísseis, foram esses homens que advogaram um ataque às bases de lançamento dos mesmos, no que chamaram de golpe cirúrgico. Ninguém poderia dizer que a eles faltasse coragem ou determinação, acusação essa que mais eles temiam. Os homens de coragem não comprometida – Adlai Stevenson, George Ball, Robert Kennedy – recomendaram comedimento, prudência. Ao voltar da Índia, alguns dias após o fim da crise, fui uma noite ao teatro com o Presidente e a Srª Kennedy. Durante o intervalo, saímos pelo pano de boca e nos sentamos na escada, junto ao palco. Isso salvou o Presidente dos apertadores-de-mãos e dos caçadores de autógrafos. ‘Não votei no senhor, Presidente, mas sem dúvida sou seu admirador’. Ele contou-me, com emoção, dos conselhos imprudentes que havia recebido no transcorrer da crise cubana. Os piores, asseverou, vieram daqueles que tinham medo de ser sensatos”.
Fico pensando como isso tudo parece com o Brasil de hoje, onde, para muitos, falta a coragem para ser (apenas) moderado.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

11/05/2019


O USO E O ABUSO DO CELULAR – Berilo de Castro




O USO E O ABUSO DO CELULAR –
A internet revolucionou e inovou o mundo. Encurtou espaços, congregou e uniu mais as pessoas. Avançou e globalizou o planeta.
O uso dos smartphones tomou conta do mundo. Viralizou.
Por onde se anda, onde se chega, somos abalroadas de pessoas usando e abusando dos aparelhos celulares. Já não se conversa mais em reuniões de almoço; nos restaurantes, nos bares, dirigindo veículos, nas academias de ginástica, nos ônibus, nas viagens, nem mesmo em casa; é a prática corriqueira e disseminada do uso de celulares. É uma peste!
O mais curioso e mais alarmante é que vem se alastrando e ocupando lugares, encontros e momentos de debates totalmente inapropriados e proibitivos.
Ultimamente, temos assistido, na mídia televisiva, discussões sobre os mais importantes e desafiadores temas da política de desenvolvimento nacional, que implicam em uma atenção muito especial por parte dos envolvidos.
No entanto, uma coisa tem chamado a atenção de todos, não precisa ser bom observador para comprovar: o uso abusivo, desnecessário e irresponsável de celulares. Uma conduta inaceitável e imoral.
No Congresso Nacional, a “festa” dos celulares é perene e vibratória. Quanto mais séria a discussão, mais é intensificado o seu uso, e menos atenção se dar ao debate; fato observado com destaque e frequência nas mesas sobre Reforma da Previdência Social. Uma vergonha, um descalabro imensurável, que tem como protagonistas os políticos, nossos legítimos representantes, eleitos e pagos (muito bem pagos) por nós.
Por tabela, temos observado também essa nociva prática nas nossas casas legislativas. Ato intolerável.
É verdadeiro e indiscutível o grande serviço que presta a telefonia móvel ao mundo. No entanto, é preciso saber usar, escolhendo os momentos e os lugares apropriados, por uma questão de educação, respeito e civilidade.

Berilo de Castro – Médico e Escritor –  berilodecastro@hotmail.com.br
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

09/05/2019

ARISNETE HOMENAGEIA DONA SOPHIA LYRA


INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DO RN IHGRN <ihgrn.comunicacao2017@gmail.com>



Caro sócio,

Convidamos todos para o lançamento do livro da confreira e escritora MARIA ARISNETE CÂMARA DE MORAIS, que ocorrerá na próxima sexta-feira, dia 10/05, a partir das 18 horas, nos jardins do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, conforme convite anexo.
Contamos com a sua presença.

ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO

08/05/2019

H O J E - DOIS MOMENTOS IMPORTANTES






A CÂMARA MUNICIPAL DE NATAL, em sessão solene, entregará o título de "Cidadão Natalense" ao eminente PROF. MANOEL DE MEDEIROS BRITO, 18,30 horas, no Palácio Padre Miguelino.


BRITO: CIDADÃO NATALENSE DIA 08 DE MAIO

Valério Mesquita*

01) O ex-deputado, secretário de estado e conselheiro do Tribunal de Contas do Estado Manoel de Medeiros Brito é dono de um repertório de históricas, nascidas do seu “fair-play”, “savoir vivre” e bom humor. São necessários três idiomas para definir a extraordinária espirituosidade de uma vivencia tão rica de situações e fina hilariedade. O jornalista João Batista Machado que o chama de “Brito Velho”, alusão ao ex-deputado federal gaúcho, possui um longo repertório e causos e acontecências colhidos ao longo de sua vida pública.
02) Certa vez, estava no interior quando veio o apelo irresistível de uma cachacinha. O seu fiel escudeiro era Raul, motorista. “Raul”, recomenda Brito, com parcimônia, “veja se encontra nesses botecos uma cachaça pelo menos razoável”. Empreendida a busca, volta Raul com a recomendação protocolar: “Dr. Brito, tem umas mas não são de boa qualidade”. Brito, sediço e aliciador, sentencia: “Seu Raul, ruim é não ter”.
03) Brito é um exímio apreciador da “pinga” nordestina. Degusta o precioso liquido como se fosse um príncipe do semi-árido. Como secretário do interior e justiça, Brito gostava de integrar a comitiva oficial às reuniões da SUDENE em Recife. E explicava ao jornalista Machadinho: “eu vou porque lá é tudo muito bom e barato”. Mas nunca perdia o paladar de uma branquinha. Na capital do frêvo, encontrava sempre o amigo Raimundo Nonato Borba, chefe da representação do Rio Grande do Norte junto a SUDENE. Como é do seu hábito arranjou-lhe logo um apelido: Borba Gato. E no trajeto do aeroporto à SUDENE, do banco traseiro Brito avisava: “Borba Gato não se descuide de parar antes num boteco para eu beber um “rabo de lagartixa”.
04) O Palácio Campo das Princesas, em Recife, era o local refinado nas reuniões da SUDENE para os convescotes e rega-bofes, do mundo oficial do Nordeste. Num desses eventos gastronômicos, estava presente o então secretário da industria e comércio do Rio Grande do Norte Jussier Santos, conhecido pela sua finesse,  foi logo servindo-se de champion e sugerindo a Brito para provar aquela delicia. E esse responde de bate pronto: “Jussier, eu não como frieira”.
05) Em outro almoço, alguém da comitiva oficial do Rio Grande do Norte provoca Brito ao avistar apetitosos camarões: “Brito, sinta o cheiro inconfundível. Este, com aquele olhar jardinense do Seridó corrige: “IN não. Cheiro confundível!”.
06) Vivia-se o tempo áureo da UEB, a extinta União de Empresas Brasileiras que instalou em Natal o Hotel Ducal, a Sparta Confecções, a Seridó Tecidos e a Incarton. Na Sparta, fabricante de camisas, pontificava como diretor o nosso Manoel de Medeiros Brito, o Brito Velho de guerra. Para conhecer as instalações, convidou o jornalista João Batista Machado, que levou de contrapeso o colega Aluízio Lacerda. A fidalguia de Brito tem o selo da fartura de Jardim do Seridó. Após os drinks e sucos regionais, o almoço foi servido com direito, ao final, a charutos odoríficos e fumegantes. Por fim, chegaram à imensa sala das máquinas onde o labor das costureiras explodia no ar um frenético torvelinho de vozes e ruídos mecânicos. Machadinho, já conhecedor da proverbial “queda de asa” de Brito pelo mulheril, provoca curiosamente o seu cicerone: “Brito, e as mulheres aqui?”. Sem perder a postura e como se informasse um detalhe fabril, detona: “É de médio a refugo...”.
07) O garçom do Palácio Campos das Princesas em Recife, chamava-se Paulo Maluf e se tornou amigo incondicional de Brito. Quando terminava a reunião da SUDENE e os primeiros grupos chegavam ao salão de recepção para os aperitivos inaugurais do almoço, e uma voz se erguia em meio aos circunstantes: “Maluf, Maluf, cadê a minha cachaça!”. Era Brito exercitando o ritual.
(*) Escritor.

06/05/2019

Marcelo Alves
Da revolução animal
Foi Thomas Kuhn (1922-1996), no seu “A estrutura das revoluções científicas” (“The Structure of Scientific Revolutions”, 1962), que nos mostrou ser a ciência um fenômeno dinâmico, em latente construção cultural. Ela não é dotada de verdades objetivas universais. É certo que, na “ciência normal”, assim chamados os períodos de normalidade, o paradigma, expresso numa teoria amplamente aceita, serve satisfatoriamente aos cientistas na resolução dos seus diversos problemas. Mas, vez por outra, vem a crise, na qual o velho paradigma já não consegue responder a algumas questões. Cai-se num período de “ciência extraordinária”, em que paradigmas provisoriamente competem entre si. E vem finalmente a ruptura. A história do progresso científico é claramente marcada por essas rupturas ou revoluções paradigmáticas. A de Copérnico, a de Darwin, a de Freud, apenas para ficar em três das mais famosas. São as revoluções científicas, em que novos paradigmas substituem os antigos. E, a cada revolução, um novo ciclo semelhante se inicia.
Penso que o mesmo se dá com a ética. E com mais razão até. Os fundamentos da ética são, em última análise, culturais e sociais. A ética não se funda numa observação neutra dos dados. Pelo contrário. Pré-compreensões e preconceitos estão por detrás de qualquer discurso ético minimamente articulado. E visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas – em determinada sociedade, em determinado período de tempo e em certo contexto – fazem toda a diferença. Mas revoluções também se dão aqui. Paradigmas nascem, vivem e morrem, sendo substituídos por congêneres novos e supostamente melhores.
Fiz toda essa introdução apenas para tratar de um tema de ética prática que me é muito caro: a nossa conduta em relação aos animais não humanos.
Penso que nessa questão estamos vivendo – e acho, sinceramente, que devemos levá-la a cabo – uma nova revolução paradigmática. Aquela revolução tanto ansiada pelo grande Jeremy Bentham (1748-1832), quando, lá em 1789, em “Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação” (“An Introduction to the Principles of Morals and Legislation”), afirmou: “Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim: que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim, se são passíveis de sofrimento”.
Não me tomem aqui como um radical no tema. Nem como dono de conclusões definitivas.
Por exemplo, não sou, nem por óbvio exijo que alguém seja, vegetariano. Aliás, nem mesmo o filósofo Peter Singer (1946-), o autor de “Liberação animal” (“Animal Liberation”, 1975) e de “Ética prática” (“Practical Ethics”, 1979), considerado o fundador dos “direitos dos animais”, embora ele mesmo vegetariano, exige que sempre se evite comer a carne de animais; ele quer, sim, com toda razão, que evitemos consumir produtos – quaisquer produtos – que advieram do sofrimento destes (dos animais não humanos). E não sou eu quem vai debater aqui a natureza carnívora do ser humano nem a alegada necessidade da proteína animal na nossa dieta. No mínimo, estamos aqui em meio a uma “ciência extraordinária”.
E, assim como Singer, admito experimentos científicos, desde que razoáveis e justificáveis, tanto em animais humanos como em não humanos. Sem especismo. Trocando em miúdos, defendo o “teste utilitarista não especista” de Singer, entendendo um experimento desse jaez como justificado se, e somente se, (i) de todas as alternativas possíveis, o experimento gera mais benefício que dor ou custo, no cômputo geral, para todos os afetados, (ii) e a justificação para esse experimento não estiver condicionada a um preconceito irrelevante de espécie (o tal especismo). Talvez aqui fale mais forte a minha simpatia pelo utilitarismo de filósofos como Jeremy Bentham, John Stuart Mill (1806-1873) e o próprio Peter Singer.
Mas acredito, sim, que nós estamos hoje dando conta da senciência dos animais que, embora não tenham uma mente e uma racionalidade igual à humana, não são assim tão diferentes (de nós, humanos) ao ponto de podermos negar as suas capacidades de sofrimento.
Acredito ser obrigação dos homens de boa fé levarem a cabo essa revolução paradigmática. Fazerem valer a “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, proclamada pela UNESCO no ano de 1978, que reza, entre outras coisas: “Todos os animais têm o mesmo direito à vida; todos os animais têm direito ao respeito e à proteção do homem; nenhum animal deve ser maltratado; o animal que o homem escolher como companheiro não deve ser nunca abandonado; nenhum animal deve ser usado em experiências que lhe causem dor; os direitos dos animais devem ser defendidos por lei; e o homem deve ser educado desde a infância para observar, respeitar e compreender os animais”. Acredito em Arthur Schopenhauer (1788-1860) quando, em “Sobre o Fundamento da Moral” (1840), afirma: “A compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter, e quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem”.
Não sei o que vocês acham. Mas, por aqui, Capote está latindo que Bentham, Mill, Schopenhauer, Singer e eu temos toda razão. Segundo ele, graças a Deus.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP.