06/05/2019

Marcelo Alves
Da revolução animal
Foi Thomas Kuhn (1922-1996), no seu “A estrutura das revoluções científicas” (“The Structure of Scientific Revolutions”, 1962), que nos mostrou ser a ciência um fenômeno dinâmico, em latente construção cultural. Ela não é dotada de verdades objetivas universais. É certo que, na “ciência normal”, assim chamados os períodos de normalidade, o paradigma, expresso numa teoria amplamente aceita, serve satisfatoriamente aos cientistas na resolução dos seus diversos problemas. Mas, vez por outra, vem a crise, na qual o velho paradigma já não consegue responder a algumas questões. Cai-se num período de “ciência extraordinária”, em que paradigmas provisoriamente competem entre si. E vem finalmente a ruptura. A história do progresso científico é claramente marcada por essas rupturas ou revoluções paradigmáticas. A de Copérnico, a de Darwin, a de Freud, apenas para ficar em três das mais famosas. São as revoluções científicas, em que novos paradigmas substituem os antigos. E, a cada revolução, um novo ciclo semelhante se inicia.
Penso que o mesmo se dá com a ética. E com mais razão até. Os fundamentos da ética são, em última análise, culturais e sociais. A ética não se funda numa observação neutra dos dados. Pelo contrário. Pré-compreensões e preconceitos estão por detrás de qualquer discurso ético minimamente articulado. E visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas – em determinada sociedade, em determinado período de tempo e em certo contexto – fazem toda a diferença. Mas revoluções também se dão aqui. Paradigmas nascem, vivem e morrem, sendo substituídos por congêneres novos e supostamente melhores.
Fiz toda essa introdução apenas para tratar de um tema de ética prática que me é muito caro: a nossa conduta em relação aos animais não humanos.
Penso que nessa questão estamos vivendo – e acho, sinceramente, que devemos levá-la a cabo – uma nova revolução paradigmática. Aquela revolução tanto ansiada pelo grande Jeremy Bentham (1748-1832), quando, lá em 1789, em “Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação” (“An Introduction to the Principles of Morals and Legislation”), afirmou: “Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adultos são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim: que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar, ou se conseguem falar, mas sim, se são passíveis de sofrimento”.
Não me tomem aqui como um radical no tema. Nem como dono de conclusões definitivas.
Por exemplo, não sou, nem por óbvio exijo que alguém seja, vegetariano. Aliás, nem mesmo o filósofo Peter Singer (1946-), o autor de “Liberação animal” (“Animal Liberation”, 1975) e de “Ética prática” (“Practical Ethics”, 1979), considerado o fundador dos “direitos dos animais”, embora ele mesmo vegetariano, exige que sempre se evite comer a carne de animais; ele quer, sim, com toda razão, que evitemos consumir produtos – quaisquer produtos – que advieram do sofrimento destes (dos animais não humanos). E não sou eu quem vai debater aqui a natureza carnívora do ser humano nem a alegada necessidade da proteína animal na nossa dieta. No mínimo, estamos aqui em meio a uma “ciência extraordinária”.
E, assim como Singer, admito experimentos científicos, desde que razoáveis e justificáveis, tanto em animais humanos como em não humanos. Sem especismo. Trocando em miúdos, defendo o “teste utilitarista não especista” de Singer, entendendo um experimento desse jaez como justificado se, e somente se, (i) de todas as alternativas possíveis, o experimento gera mais benefício que dor ou custo, no cômputo geral, para todos os afetados, (ii) e a justificação para esse experimento não estiver condicionada a um preconceito irrelevante de espécie (o tal especismo). Talvez aqui fale mais forte a minha simpatia pelo utilitarismo de filósofos como Jeremy Bentham, John Stuart Mill (1806-1873) e o próprio Peter Singer.
Mas acredito, sim, que nós estamos hoje dando conta da senciência dos animais que, embora não tenham uma mente e uma racionalidade igual à humana, não são assim tão diferentes (de nós, humanos) ao ponto de podermos negar as suas capacidades de sofrimento.
Acredito ser obrigação dos homens de boa fé levarem a cabo essa revolução paradigmática. Fazerem valer a “Declaração Universal dos Direitos dos Animais”, proclamada pela UNESCO no ano de 1978, que reza, entre outras coisas: “Todos os animais têm o mesmo direito à vida; todos os animais têm direito ao respeito e à proteção do homem; nenhum animal deve ser maltratado; o animal que o homem escolher como companheiro não deve ser nunca abandonado; nenhum animal deve ser usado em experiências que lhe causem dor; os direitos dos animais devem ser defendidos por lei; e o homem deve ser educado desde a infância para observar, respeitar e compreender os animais”. Acredito em Arthur Schopenhauer (1788-1860) quando, em “Sobre o Fundamento da Moral” (1840), afirma: “A compaixão pelos animais está intimamente ligada à bondade de caráter, e quem é cruel com os animais não pode ser um bom homem”.
Não sei o que vocês acham. Mas, por aqui, Capote está latindo que Bentham, Mill, Schopenhauer, Singer e eu temos toda razão. Segundo ele, graças a Deus.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP.

02/05/2019



01/05/2019



O PEIXE, O ELOGIO E O JUMENTO

Valério Mesquita*

01) Depois de uma manhã exaustiva de trabalho no Tribunal de Contas, o então presidente Romildo Gurgel, lá pelo início da tarde, estava esfomeado. O único conselheiro que ainda permanecia na sede era José Borges Montenegro. Dele aproxima-se Gurgel com aquela voz inconfundível: “Zé Borges vamos almoçar. A Peixada da Comadre nos espera!”. E prá lá rumaram. Acomodados, Romildo consulta o cardápio e ordena imperativo ao garçom: “Menino, traga três peixes, ligeirinho!”. Montenegro conserta o pedido com parcimônia: “Romildo, prá quê três peixes. Só aí são três pratos!”. “Zé Borges, peça agora o seu almoço pois o meu já pedi!”.
02) Noite da Academia de Letras com muito brilho, discursos e saudações. O homenageado era o acadêmico Veríssimo de Melo que seria saudado pelo presidente da entidade, poeta Diógenes da Cunha Lima - amigo fraterno de Vivi - que procurou se desincumbir da missão da melhor maneira possível. “Veríssimo, você é o grande folclorista que sucede Cascudo na pesquisa da arte popular”. Ao lado, baixinho, balbucia Vivi: “É pouco”. “Veríssimo”, continua Diógenes, “você é o autor da inexcedível obra sobre o folclore infantil em nosso país”. “É pouco”, cochicha Vivi. Sem perder o prumo, Diógenes prossegue: “Veríssimo de Melo é o pesquisador notável, o professor da UFRN, o mestre maior da cultura popular do Rio Grande do Norte”. “Muito mixuruca”, sopra de fininho Vivi para provocar o orador. “Veríssimo, vou pedir a proteção celeste para dizer que você é comparável a Jesus Cristo!”. “Assim está melhor”, murmurou Vivi com um maneiroso sorriso.
03) A Nova Cruz bucólica e tranqüila dos anos cinqüenta me restitui a figura de Diógenes da Cunha Lima, pai do nosso poeta e presidente da Academia de Letras. Autodidata, o velho era possuidor de profundo senso filosófico além de espirituoso. Certo dia, conversava com o filho na varanda de sua casa em Nova Cruz chamando a sua atenção para observar um jumento que pastava na rua extraindo a grama miúda nascida entre um paralelepípedo e outro. “Meu filho, veja só como o jumento é mais inteligente que o homem. Digo isso porque ele tem a exata noção da suficiência pastando nesse matinho diminuto. Diferente, pois, do homem que sempre quer mais e não valoriza o pouco que tem!”. Pausadamente como se tivesse ministrando ao filho uma aula de filosofia, continuou: “o jumento é feliz porque não tem memória. Ele é espauderado, chicoteado e esporeado pelo dono e depois esquece tudo, pois não se lembra de nada. Daí eu dizer que é feliz por não ter memória”. Vendo que suas reflexões filosóficas já ganhava auditório, resolveu incluir na platéia sua esposa: “Ô Licinha venha cá. Você sabia que o jumento tem a noção da suficiência e é feliz por não ter memória? Etc.” E foi começando tudo de novo quando dona Licinha, saída da cozinha, cheia de afazeres, botou ordem na casa: “Se você continuar a conversar tolice com o seu filho vai perder o trem para João Pessoa!”. Naquele momento até os filósofos Platão, Sócrates e Kant foram baixar noutro terreiro. Venceu o pragmatismo de dona Licinha.
04) Zé de Papo sempre se distinguiu como uma figura curiosa e querida de Macaíba. Dentre os ofícios que exerceu posso lembrar o de carnavalesco (feiticeiro da tribo de índios do bloco de Zé Batata), músico, garçom, boêmio, gostava de caçar e jogar futebol no velho campo do cemitério de Macaíba, pelo time do Rio Branco. Na atividade esportiva, um fato é lembrado ainda com muito humor. Os calções dos clubes de futebol daquele tempo eram ordinários e não possuíam sunga. Zé de Papo parecia possuir um testículo caído que sempre se apresentava ao público sem que ele o percebesse. Nas manobras bruscas, perna levantada, surgia surpreendente o ovo de papo saudando a galera. “Bota pra dentro Zé! Bota pra dentro!”, gritava a torcida. Ele pensava que era a bola e respondia para o público que não fazia gol porque ninguém lhe dava oportunidade.

(*) Escitor.


O MUDO E ALIANÇA – Berilo de Castro




O MUDO E ALIANÇA –
Nesse pedaço de Nordeste com tantas manobras esquisitas e cheio de maracutaias na política, um causo a mais me é lembrado.
Em uma cidade do interior do Estado, época festiva de campanha eleitoral, momento do tudo ou nada para galgar uma cadeira na Câmara Municipal, tempo caracterizado pelas tentativas mais circenses na busca de votos, os candidatos se debatem, correm de um lado para o outro, na caça incessante de eleitores. Nessa caçada humana, promessas e mais promessas são feitas; algumas inusitadas.
São ofertas de tudo que não se imaginam, em troca por votos: milheiros de telhas cerâmica, telhas de brasilit, de tijolos de oito furos, pagamento de contas de luz em atraso, pagamento de taxas de água e esgoto, IPTU, dentaduras, sacos de cimento, cadeiras de rodas, vestidos de noiva, exames de sangue, RXs, internamentos em hospital na
Capital, óculos de grau e, por aí segue a infindável lista.
Diante de tudo isso, surge um pedido inusitado. Um bom eleitor, bem conhecido na cidade, o único cidadão mudo na região, prestes a se casar, fez o seguinte pedido ao candidato: uma aliança. Joia, que seria usada tão logo o vereador fosse eleito.
O candidato acatou o pedido e seguiu caminho na sua vitoriosa empreitada.
Terminado o pleito, o vereador foi eleito. Cumpriu os seus compromissos de campanha, que foram muitos, com um detalhe todo especial: esqueceu completamente do clamor do eleitor mudo (prática corriqueira no meio).
O votante, se sentindo desprezado no seu justo e sonhado pedido, foi até o vitorioso edil e pediu explicações pelo não cumprimento da entrega da sua aliança. Com a sua linguagem gesticular, lembrou a promessa, fazendo uma imagem circular com o dedo polegar e o indicador da mão esquerda, e, com o dedo indicador da mão direita, apontou e penetrou no orifício com o movimento de entra e sai: an? an? an?. O vereador no seu esquecimento soberbo, vendo aquela cena gesticulada, com certo espanto e bastante curioso, nada entendeu e se questionou: eu já prometi e já fiz doações e mais doações, as mais diferentes e inimagináveis, só não me recordo em momento algum ter prometido dar o c. caso ganhasse a eleição. Será?!


Berilo de CastroMédico e Escritor –  berilodecastro@hotmail.com.br
As opiniões contidas nos artigos são de responsabilidade dos colaboradores

30/04/2019


A cidade de Shakespeare
Há teses – algumas verdadeiras “teorias da conspiração”, posso até dizer – sobre quem teria sido William Shakespeare (1564-1616). Ou melhor, sobre quem teria sido o verdadeiro autor das maravilhosas obras que atribuímos a um tal Shakespeare. Como já disse certa vez aqui (vide a crônica “Shakespeare anônimo”), antes de mais nada, algumas pessoas simplesmente não conseguem acreditar que um filho de artesão, comerciante de luvas, pudesse ter o conhecimento – do mundo clássico, da filosofia e do direito, apenas para ficar em algumas temáticas principais – que, naquelas obras, é transformado no mais puro ouro literário. Como teria um homem de origem simples adquirido todo esse conhecimento? Outras circunstâncias, como os chamados “lost years” (para os quais não se tem registro do paradeiro de Shakespeare) e a ausência de manuscritos autênticos, têm contribuído para a famosa controvérsia autoral. E, como alternativa, outros nomes têm sido apontados como o verdadeiro autor de “Othello” e de “Macbeth”. O grande filósofo e homem público Francis Bacon (1561-1626) é um dos mais fortes candidatos. Bagagem, a este, não faltava. Outro candidato badalado é William Stanley (1561-1642), o 6º Earl de Derby. E até mesmo o escritor Christopher Marlowe (1564-1593), contemporâneo de Shakespeare, é sugerido ao posto. Talento, não resta dúvida, ele tinha. E por aí vai.
De minha parte, seguidor da “Navalha” de Guilherme de Ockham (1285-1347), fico com a explicação mais simples. A oficial. Shakespeare foi William Shakespeare mesmo. Aquele cidadão nascido sob o reinado de Elizabeth I (que foi de 1558 a 1603) na aprazível Stratford-upon-Avon. Por isso, todas as vezes que pude, fui visitar essa comuna das “Midlands”, do coração da Inglaterra, distante cerca de 170 km (de automóvel) de Londres, que, já no tempo de Shakespeare, como registra “The Altlas of Literature” (editor geral Malcolm Bradbury, Greenwich Editions, 2001), era uma “market town” bem estabelecida e próspera. Hoje, para vocês terem uma ideia, Stratford-upon-Avon tem em torno de 30 mil habitantes. Mas recebe coisa de quase 3 milhões de turistas ao ano (bendito turismo!).
Shakespeare nasceu ali, afirmo, em 1564, na famosa casa da Henley Street. Foi depois trabalhar em Londres. Foi ator. Foi poeta e dramaturgo. Foi produtor e empresário. Gozou seu auge, por assim dizer, na grande capital do Reino. Mas Shakespeare voltou à sua terra natal. Em 1611, segundo se registra, já rico e famoso e com o seu brasão de armas. E foi viver em “New Place” até a sua morte.
Atualmente, a cidade Stratford-upon-Avon, claro, gira em torno da vida do grande poeta e dramaturgo que escreveu como nenhum outro – sobre amor e sexo, farsa e violência, direito e filosofia – na língua que costumamos chamar de sua, a inglesa. A única e honrosa exceção talvez seja a “Harvard House”, que foi o lar de uma tal Katherine Rogers, mãe de John Harvard (1607-1638), o instituidor da Harvard University, que, por razões plausíveis, é hoje a proprietária da casa.
O ponto mais alto de qualquer visita a Stratford-upon-Avon é, seguramente, o local de nascimento de Shakespeare (“Shakespeare’s Birthplace”), na Henley Street. A casa de Shakespeare foi adquirida pelo poder público em 1847 e devidamente reformada para retornar ao estilo elisabetano original. Deu muito certo. E, como bem descreve o meu “The GreenGuide – Great Britain” (da famosa Michelin, 2014), hoje ela é “em parte museu (incluindo a exibição dos objetos mais valiosos da família do dramaturgo e uma edição do Primeiro Fólio de suas peças) e em parte santuário, outrora visitado por [gente como] Dickens, Keats, Scott e Hardy. As peças do poeta são encenadas pela própria trupe de atores profissionais da casa, com performances ao vivo todos os dias”.
Mas a romaria por Shakespeare não para por aí. Lembro-me muito bem da “Mary Arden’s Farm”, a casa da mãe de Shakespeare, da “Anne Hathaway’s Cottage”, a casa da família da mulher de Shakespeare, onde este, jovem, cortejou a amada e de “New Place & Nash’s House”, conjunto formado pela casa onde o poeta gozou seus anos de aposentadoria e pela casa de uma neta sua, hoje belamente restaurada.
De Stratford, recordo-me, também, com saudades, do passeio às margens do Avon, que empresta seu nome à cidade. Da travessia do rio através da bela e antiga “Clopton Bridge” (de 1497), o que, imagino, também deve ter sido feito pelo Bardo, muitas vezes, naquele seu tempo. Do moderno “Royal Shakespeare Theatre”, também às margens do rio. Da visita à “Holy Trinity Church”, ali pertinho, onde foi batizado e está enterrado o próprio William Shakespeare (muito embora essa bela Igreja mereça uma visita por si só). Da caminhada pela Henley Street, com suas muitas lojinhas de souvenires, indo e voltando da Brigde Street.
Finalmente, não sei o porquê, toda vez que penso em Stratford-upon-Avon, lembro-me insistentemente de dois estacionamentos (de carros) da cidade. Um fica (ficava, pelo menos, quando da minha última visita) perto de um cinema; o outro, da estação de trens. Eles não têm nada de especial. Mas são recorrentes, num tipo de associação qualquer, na minha lembrança da cidade de Shakespeare.
E o que isso quer dizer? Algum mistério entre o céu e a terra com que devo gastar a minha vã filosofia? Teria ele, Shakespeare, estado ali no passado? Deles – falo dos tais estacionamentos – emana alguma intuição sobre a verdadeira identidade do autor do “Hamlet” e do “King Lear”? Alguma outra teoria conspiratória qualquer?
Não. Nada disso. Talvez tenha sido apenas o esforço feito para guardar o local onde havia estacionado o carro recém-alugado. Talvez seja, inconscientemente, a lembrança da bela moça que estacionou ao meu lado, seguramente nem megera nem domada. Sei lá. Simplesmente a memória nos prega muitas peças. E, portanto, não façamos “muito barulho por nada”, como diria aquele que foi o maior conhecedor da alma humana.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

24/04/2019

A noite dos museus
Em 2007, quando passei uma temporada de estudos na Espanha (Madrid e Barcelona, sobretudo), como bolsista do programa “Aula Iberoamericana del Consejo General del Poder Judicial Español”, tive a oportunidade de curtir, na capital do país, uma “Noche em Blanco”. Esclareço logo: é um evento cultural que ocorre anualmente em cidades da Europa (primeiramente em Paris, desde 2002) em que museus, casas de cultura e outras instituições locais importantes, espaços públicos ou privados, abrem suas portas, gratuitamente, durante toda a noite, para o público em geral. Paralelamente, outras atividades culturais e artísticas – shows, concertos, essas coisas – são realizadas dentro e ao derredor dos prédios mui iluminados. E você sai a pé, pulando de local em local, de show em show, mui amimadamente. Se não me engano, aquele ano, 2007, era o primeiro ou o segundo em Madrid. E foi tudo excelente.
Passados tantos anos, tive a oportunidade de repetir a experiência, agora em Buenos Aires, no que eles chamam, os portenhos, de “La Noche de los Museos”. Foi no dia 10 de novembro de 2018. Nesse dia, a partir das 20 horas, segundo informava o próprio Chefe de Governo da Cidade Autônoma de Buenos Aires, 280 espaços culturais abririam “suas portas à noite e gratuitamente para que os moradores [e os turistas, como era o meu caso] desfrutassem da arte que se respira em cada bairro da Cidade”. Haveria “atividades e exposições para todas as idades e gostos”. E, nessa edição, “as obras falariam do futuro, incorporando as novas tecnologias e abordando debates centrais para os anos vindouros, como o papel da mulher, o cuidado com o meio ambiente e a integração entre os povos”.
E já tem quinze anos que esse tipo de evento é realizado na capital argentina, segundo registra a brochura que guardei comigo (cronista precavido é assim!). Eu não sabia.
Foi bom (muito) e foi ruim (um pouquinho). E, quem leu a minha crônica da semana retrasada, já deve intuir o porquê. Nesse fatídico 10 de novembro, choveu aos cântaros em Buenos Aires. Não tanto à noite como choveu de dia, é verdade. Mas chuva é chuva.
De toda sorte, aproveitamos bastante. Começamos nossa perambulação coisa de 21 horas. Concentramos a aventura numa tal Área 1 (a cidade estava dividida em cinco regiões), em torno dos bairros de Monserrat, de San Telmo e do Microcentro, tudo muito perto do pequenino Two Hotel Buenos Aires (Calle Moreno, 785), onde estávamos hospedados. Fizemos tudo a pé. Mui animadamente, quase sempre. Voltamos pela enésima vez ao interessantíssimo “Museo Histórico Nacional del Cabido de Buenos Aires e de la Revolución de Mayo” (Boliviar, 65). Minha mulher já não aguenta mais. Visitamos a gigantesca sede do “Banco de la Nación Argentina”, onde funciona um museu histórico e numismático. Belíssima. E uma apresentação de coral de música sacra me encantou deveras. Fomos a um tal “Museo de Minerales” (Julio A. Roca, 651). O show de rock na porta, regado a uma cervejinha, nos interessou mais do que o acervo. Fomos ao prédio da “Legislatura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires” (Julio A. Roca, 575). Também belíssimo. Talvez mais do que isso. E visitamos a sede e a editora do “Consejo de la Magistratura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires”. Ganhei um bocado de livros. Gostei mais do que muito. E esses são apenas alguns dos prédios públicos dos quais lembro termos visitado.
Tivemos algumas frustrações, claro. A “Casa Rosada” (Calle Balcarce 50, dominando a Plaza de Mayo) foi uma delas. Não me lembro de já haver visitado o badalado palácio presidencial. Era uma ótima oportunidade. Entramos na fila, ainda pequena. Mas choveu. Minha mulher desistiu. Falou algo do cabelo, acho. Mais uma vez ela não acompanhou o que eu chamo de minha resiliência (na ocasião, ela chamou de outra coisa, iradamente). Teremos outra oportunidade, seguramente.
Mas a maior das decepções foi nos ter sido vedado o acesso a certas áreas de uma tal “Manzana de las Luces” (Calle Perú, 272), ao belo claustro jesuítico e aos famosos túneis, em especial. Segundo retrata o meu “Guia Visual Folha de São Paulo – Top 10 – Buenos Aires” (PubliFolha, 2010), no “coração histórico da cidade, a Manzana de las Luces é um complexo de edifícios governamentais e jesuíticos que datam de meados do século 17. Entre eles, está a Igreja de San Ignacio, a mais antiga da cidade, construída em 1668, o claustro do antigo Colégio dos Jesuítas, a Sala de Representantes e o Colégio de Buenos Aires. Sob os prédios correm os túneis construídos na década de 1690 para ligar o local à Plaza de Mayo”. Já é bem a terceira vez que vamos a Buenos Aires, e eu me programo, tento, mas não consigo conhecer certas partes da velha “manzana”. Simplesmente, virou uma questão de honra. Tomamos mais chuva. E nada. Fomos barrados a certa altura. Não sei se foi o cabelo ou se não gostaram do meu – digamos, impuro – castelhano de Salamanca.
Por sorte, terminamos a noite, já entrando pela madrugada, ali pertinho, na “Librería de Ávila” (Calle Adolfo Alsina, 500), sobre a qual eu já escrevi nas crônicas “Minhas livrarias em Buenos Aires (I) e (II)”. Um comércio de livros cheio de história, que ocupa o local onde outrora funcionou a famosa “Librería del Colegio”, oficialmente aberta em 1830 e tida como a primeira livraria da cidade. Com a sua atmosfera propositadamente decadente, declarada “Lugar Histórico Nacional”, a “Librería del Colegio/de Ávila” é realmente imperdível.
E ali enfrentei, com a minha velha resiliência, uma certa frustração, a chuva e, sobretudo, o cabelo e a ira da minha mulher.

Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP

22/04/2019



CINQUENTENÁRIO DE FALECIMENTO

Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com

Dia 12 de abril passado fez cinquenta anos do desaparecimento do maior líder político municipal da terra de Auta de Souza. Uma vida pública exercida ao longo de mais de quarenta anos impossível ser memorizada de uma ou duas vezes. Quase sempre fatos isolados ou esquecidos emergem e são lembrados, aqui e acolá, por mentes privilegiadas que ajudam a moldar o perfil de quem já se foi, mas que deixou inesquecíveis lições de vida. Assim foi Alfredo Mesquita Filho, ex-prefeito de Macaíba (três vezes) e ex-deputado Estadual, também por três legislaturas, que nasceu em 23 de maio de 1901.
O traço predominante de sua personalidade era o despreendimento, o despojamento de bens materiais ou vantagens que lhes fossem, porventura, oferecidas. Esse legado grandiloquente de sua vida tive poucas chances de narrá-lo em várias notas biográficas que produzi, principalmente por ocasião do seu centenário de nascimento.
01) Integrava uma prole de seis irmãos herdeiros de um rico patrimônio em fazendas, rebanhos, lojas de tecidos e dinheiro quando sobreveio a morte do seu pai. Como não poderia deixar de ser, ocorreram inúmeras discussões e disputas entre os irmãos pelo espólio. Ao receber o seu quinhão percebeu que dois dos seus irmãos litigavam pessoalmente e na justiça, insatisfeitos pelo que lhes coubera. Numa atitude inusitada, ofereceu “de mão beijada” a sua parte na Loja Natal Modelo aos dois contendores e com isso sepultou a dissensão dos manos José e Vicente Mesquita.
02) De outra feita, lá pelo final dos anos quarenta, presenciou a firma Santos e Cia Ltda, pertencente ao seu grande amigo José dos Santos, atravessar seriíssimas dificuldades de crédito, além de outros problemas que inviabilizavam a organização. Desfrutando de excepcional prestígio político e pessoal nos governos pessedistas de José Varela, no Rio Grande do Norte, e de Eurico Gaspar Dutra, Presidente, através de Georgino Avelino e João Câmara, conseguiu no Rio de Janeiro, capital da República, a recuperação econômica da empresa, tornando-se credor da gratidão e do profundo reconhecimento da família Santos. Seu José, português, homem honrado e líder do grupo, convidou Mesquita para ser sócio da firma. “Não posso ser sócio se não tenho capital nem ações para tal objetivo”, foi a sua resposta.  “O que você fez é bem mais do que todos esses papéis”, retrucou o velho José dos Santos. “Mas não posso aceitar”, concluiu Alfredo Mesquita e encerrou o assunto. Creio que Geraldo Ramos dos Santos e José dos Santos Filho conhecem o episódio.
03) No plano político, menores não foram os exemplos do seu desapego às ofertas ou benesses que pudessem lhe trazer vantagens ou significar se curvar aos poderosos. Lembro-me que no governo de Aluízio Alves, em 1965, recebeu uma missão chefiada pelo economista Roosevelt Garcia com o fito de oferecer-me um cargo de fiscal de rendas, em troca do abrandamento de sua atuação política no município para beneficiar a candidatura do Monsenhor Walfredo Gurgel. A resposta só não foi truculenta em respeito ao emissário, que era um dos seus sobrinhos prediletos. E assim perdi a missão de arrecadar tributos.
Testemunhei todos os percalços do seu itinerário político. Presenciei traições, acompanhei revoltas mas nunca vi seus olhos marejados indicando sofrimento. Vi uma vez, duas lágrimas escorregando no seu rosto. Foi em 1964. Quando criminosamente ousaram derrubar a casa onde havia nascido Auta de Souza. Era como se visse um pedaço do seu passado jogado no lamaçal da história.
Neste dia comecei a ver nos olhos de “seu” Mesquita, um mundo novo que invadiu o meu destino. E que ensinava Jesus Cristo: “os olhos são as janelas da alma”.
Naquele dia meu pai abriu uma nova janela que hoje possui o nome de gratidão e o sobrenome de saudades.