O PEIXE, O ELOGIO E O JUMENTO
Valério Mesquita*
01) Depois de uma manhã
exaustiva de trabalho no Tribunal de Contas, o então presidente Romildo Gurgel,
lá pelo início da tarde, estava esfomeado. O único conselheiro que ainda
permanecia na sede era José Borges Montenegro. Dele aproxima-se Gurgel com
aquela voz inconfundível: “Zé Borges vamos almoçar. A Peixada da Comadre nos
espera!”. E prá lá rumaram. Acomodados, Romildo consulta o cardápio e ordena
imperativo ao garçom: “Menino, traga três peixes, ligeirinho!”. Montenegro
conserta o pedido com parcimônia: “Romildo, prá quê três peixes. Só aí são três
pratos!”. “Zé Borges, peça agora o seu almoço pois o meu já pedi!”.
02) Noite da Academia
de Letras com muito brilho, discursos e saudações. O homenageado era o
acadêmico Veríssimo de Melo que seria saudado pelo presidente da entidade,
poeta Diógenes da Cunha Lima - amigo fraterno de Vivi - que procurou se
desincumbir da missão da melhor maneira possível. “Veríssimo, você é o grande
folclorista que sucede Cascudo na pesquisa da arte popular”. Ao lado, baixinho,
balbucia Vivi: “É pouco”. “Veríssimo”, continua Diógenes, “você é o autor da
inexcedível obra sobre o folclore infantil em nosso país”. “É pouco”, cochicha
Vivi. Sem perder o prumo, Diógenes prossegue: “Veríssimo de Melo é o
pesquisador notável, o professor da UFRN, o mestre maior da cultura popular do
Rio Grande do Norte”. “Muito mixuruca”, sopra de fininho Vivi para provocar o
orador. “Veríssimo, vou pedir a proteção celeste para dizer que você é
comparável a Jesus Cristo!”. “Assim está melhor”, murmurou Vivi com um
maneiroso sorriso.
03) A Nova Cruz
bucólica e tranqüila dos anos cinqüenta me restitui a figura de Diógenes da Cunha
Lima, pai do nosso poeta e presidente da Academia de Letras. Autodidata, o
velho era possuidor de profundo senso filosófico além de espirituoso. Certo
dia, conversava com o filho na varanda de sua casa em Nova Cruz chamando a sua
atenção para observar um jumento que pastava na rua extraindo a grama miúda
nascida entre um paralelepípedo e outro. “Meu filho, veja só como o jumento é
mais inteligente que o homem. Digo isso porque ele tem a exata noção da
suficiência pastando nesse matinho diminuto. Diferente, pois, do homem que
sempre quer mais e não valoriza o pouco que tem!”. Pausadamente como se tivesse
ministrando ao filho uma aula de filosofia, continuou: “o jumento é feliz
porque não tem memória. Ele é espauderado, chicoteado e esporeado pelo dono e depois
esquece tudo, pois não se lembra de nada. Daí eu dizer que é feliz por não ter
memória”. Vendo que suas reflexões filosóficas já ganhava auditório, resolveu
incluir na platéia sua esposa: “Ô Licinha venha cá. Você sabia que o jumento
tem a noção da suficiência e é feliz por não ter memória? Etc.” E foi começando
tudo de novo quando dona Licinha, saída da cozinha, cheia de afazeres, botou
ordem na casa: “Se você continuar a conversar tolice com o seu filho vai perder
o trem para João Pessoa!”. Naquele momento até os filósofos Platão, Sócrates e
Kant foram baixar noutro terreiro. Venceu o pragmatismo de dona Licinha.
04) Zé de Papo sempre
se distinguiu como uma figura curiosa e querida de Macaíba. Dentre os ofícios
que exerceu posso lembrar o de carnavalesco (feiticeiro da tribo de índios do
bloco de Zé Batata), músico, garçom, boêmio, gostava de caçar e jogar futebol
no velho campo do cemitério de Macaíba, pelo time do Rio Branco. Na atividade
esportiva, um fato é lembrado ainda com muito humor. Os calções dos clubes de
futebol daquele tempo eram ordinários e não possuíam sunga. Zé de Papo parecia possuir
um testículo caído que sempre se apresentava ao público sem que ele o
percebesse. Nas manobras bruscas, perna levantada, surgia surpreendente o ovo
de papo saudando a galera. “Bota pra dentro Zé! Bota pra dentro!”, gritava a
torcida. Ele pensava que era a bola e respondia para o público que não fazia
gol porque ninguém lhe dava oportunidade.
(*)
Escitor.