A cidade dos livros
No ano de 2002, acho que era fins de março, passei uma temporada no
Corpus Christi College, na Oxford University. Fui bolsista do British
Council (bendito Conselho!), como representante brasileiro, para
participar do curso “Tackling Corruption and Establishing Standards in
Public Life”. Nesses dias, assistimos a muitas palestras do tipo: “Por
que os sistemas produzem corrupção?”, “Por que o financiamento eleitoral
é uma grande fonte de corrupção?” e “Como nós podemos expor a corrupção
– ideias de um informante”. E participamos de vários outros seminários e
de trabalhos em grupo.
Já faz tanto tempo, agora me dou conta. Estou ficando (…) experiente.
De toda sorte, como passei coisa de dois meses nessa temporada de
estudos e pesquisas no Reino Unido – matriculei-me também numa escola de
inglês em Oxford e ainda dei umas palestras como professor visitante na
University of Northumbria at Newcastle (mas isso é outra história) –,
tive tempo e oportunidade de viajar, nos finais de semana, pelo interior
da Ilha Britânica.
Uma das viagens mais interessantes que fiz,
partindo de Oxford, de carro, dirigindo na mão inglesa (Deus nos
protege!), foi até a cidadezinha de Hay-on-Wye, a “cidade dos livros”
(“The Town of Books”, no idioma da Ilha), já no País de Gales.
No caminho, recordo-me, passei uma tarde inteira na belíssima
Stratford-upon-Avon, a cidade natal de Shakespeare (1564-1616). Mas
isso, em se tratando da vida do autor do Hamlet, merece uma outra – e
exclusiva – crônica. E pernoitei em Ross-on-Wye, uma pequena cidade
mercado das “midlands” inglesas, postada em um penhasco sobre o tal rio
Wye, que reivindica ter sido o berço, em meados do século 18, da
indústria turística na Ilha Britânica. Não sei se é verdade. Mas topei
com um “bed and breakfeast” bom e barato e ali pernoitei. Como eu gosto.
Valeu a pena: Ross-on-Wye é também belíssima.
Cheguei a
Hay-on-Wye – a “cidade dos livros” – no dia seguinte. Ela é simplesmente
minúscula. Coisa de menos de 2 mil habitantes permanentes. E sua
relação com os livros retroage à década de 1960, quando uma livraria foi
aberta ali por um tal Richard Booth (1938-), que, vivendo no Hay
Castle, uma mansão construída no terreno do antigo castelo local, ainda
hoje detém o título honorífico de “Rei da Hay Independente”. Portanto,
para os padrões britânicos, essa relação da cidadezinha com os livros
nem é tão antiga assim.
Mas, como constava do meu já muito
usado “Guia Visual Folha de São Paulo – Inglaterra Escócia e País de
Gales” (PubliFolha, 1998), essa “belíssima cidade fronteiriça nas Black
Mountains [precisamente nos limites do Brecon Beacons National Park]
recebe amantes da literatura do mundo todo. Hay-on-Wye tem mais de 25
lojas de livros usados com milhões de títulos. No começo do verão, a
cidade promove um festival de literatura de muito prestígio [o ‘Hay
Festival of Literature and the Art’]”. É isso mesmo.
De minha
parte, adorei Hay-on-Wye. Pelo que me recordo, cheguei um pouquinho
antes do tal “Hay Festival of Literature and the Art”, que, de fins de
maio para o começo de junho, por dez dias, reúne, na minúscula cidade,
coisa de 100 mil amantes de livros (e a cada ano, desde 1988, vem
crescendo mais). A coisa já estava bem movimentada. Livros, livreiros e
leitores por todo canto. Em prédios, casas, carros e na rua. Muito
colorido e divertido. Tudo fervilhando. Mas limpo e organizado (na
medida do possível, em se tratando de livros). Um mundo à parte. Quase
um parque temático (de livros!). Lindo. E confirmei que Hay-on-Wye faz
mesmo jus ao seu posto de mais famoso centro literário/livresco
britânico, em virtude do seu festival e desses seus muitos (para lá de
três dezenas, hoje, com certeza) comércios de livros, tanto novos como
usados, alguns até, para os cultores da bibliofilia (o que não é bem o
meu caso), raros e muito valiosos.
Tempos depois, ao adquirir o
meu precioso “The Oxford Guide to Literary Britain & Ireland”
(Oxford University Press, 2008), descobri que não estou só nessa minha
ótima impressão de Hay-on-Wye. Li nesse livrão – quase quatrocentas
páginas, em formato grande, com muitos textos e fotos – que o
ex-Presidente dos Estados Unidos da América, Bill Clinton (1946-),
considerou o “Hay Festival of Literature and the Art” como o “Woodstock
da mente”. Dizem que ele entende dessas coisas.
E me lembro,
por fim, que essa minha visita a Hay-on-Wye foi, também, muito útil.
Comprei ali o que, para mim, foi um achado: “Public Law and Public
Administration” (F. E. Peacock Publishers, 2000), de Phillip J. Cooper.
Um livro do qual, embora sobre direito público, retirei,
reinterpretando-o, boa parte de um capítulo, versando sobre filosofia do
direito, da minha dissertação de mestrado. Foi no dia 5 de maio de
2002. Ele custou 22.50 libras. E agora registro, com certeza, a data da
minha visita a Hay-on-Wye, pois está anotado na folha de rosto do dito
cujo.
Bom, um dia eu ainda volto lá (morar já seria demais). À cidade dos livros.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP