A noite dos museus
Em 2007, quando passei uma temporada de estudos na Espanha (Madrid e
Barcelona, sobretudo), como bolsista do programa “Aula Iberoamericana
del Consejo General del Poder Judicial Español”, tive a oportunidade de
curtir, na capital do país, uma “Noche em Blanco”. Esclareço logo: é um
evento cultural que ocorre anualmente em cidades da Europa
(primeiramente em Paris, desde 2002) em que museus, casas de cultura e
outras instituições locais importantes, espaços públicos ou privados,
abrem suas portas, gratuitamente, durante toda a noite, para o público
em geral. Paralelamente, outras atividades culturais e artísticas –
shows, concertos, essas coisas – são realizadas dentro e ao derredor dos
prédios mui iluminados. E você sai a pé, pulando de local em local, de
show em show, mui amimadamente. Se não me engano, aquele ano, 2007, era o
primeiro ou o segundo em Madrid. E foi tudo excelente.
Passados
tantos anos, tive a oportunidade de repetir a experiência, agora em
Buenos Aires, no que eles chamam, os portenhos, de “La Noche de los
Museos”. Foi no dia 10 de novembro de 2018. Nesse dia, a partir das 20
horas, segundo informava o próprio Chefe de Governo da Cidade Autônoma
de Buenos Aires, 280 espaços culturais abririam “suas portas à noite e
gratuitamente para que os moradores [e os turistas, como era o meu caso]
desfrutassem da arte que se respira em cada bairro da Cidade”. Haveria
“atividades e exposições para todas as idades e gostos”. E, nessa
edição, “as obras falariam do futuro, incorporando as novas tecnologias e
abordando debates centrais para os anos vindouros, como o papel da
mulher, o cuidado com o meio ambiente e a integração entre os povos”.
E já tem quinze anos que esse tipo de evento é realizado na capital
argentina, segundo registra a brochura que guardei comigo (cronista
precavido é assim!). Eu não sabia.
Foi bom (muito) e foi ruim (um
pouquinho). E, quem leu a minha crônica da semana retrasada, já deve
intuir o porquê. Nesse fatídico 10 de novembro, choveu aos cântaros em
Buenos Aires. Não tanto à noite como choveu de dia, é verdade. Mas chuva
é chuva.
De toda sorte, aproveitamos bastante. Começamos nossa
perambulação coisa de 21 horas. Concentramos a aventura numa tal Área 1
(a cidade estava dividida em cinco regiões), em torno dos bairros de
Monserrat, de San Telmo e do Microcentro, tudo muito perto do pequenino
Two Hotel Buenos Aires (Calle Moreno, 785), onde estávamos hospedados.
Fizemos tudo a pé. Mui animadamente, quase sempre. Voltamos pela enésima
vez ao interessantíssimo “Museo Histórico Nacional del Cabido de Buenos
Aires e de la Revolución de Mayo” (Boliviar, 65). Minha mulher já não
aguenta mais. Visitamos a gigantesca sede do “Banco de la Nación
Argentina”, onde funciona um museu histórico e numismático. Belíssima. E
uma apresentação de coral de música sacra me encantou deveras. Fomos a
um tal “Museo de Minerales” (Julio A. Roca, 651). O show de rock na
porta, regado a uma cervejinha, nos interessou mais do que o acervo.
Fomos ao prédio da “Legislatura de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires”
(Julio A. Roca, 575). Também belíssimo. Talvez mais do que isso. E
visitamos a sede e a editora do “Consejo de la Magistratura de la Ciudad
Autónoma de Buenos Aires”. Ganhei um bocado de livros. Gostei mais do
que muito. E esses são apenas alguns dos prédios públicos dos quais
lembro termos visitado.
Tivemos algumas frustrações, claro. A
“Casa Rosada” (Calle Balcarce 50, dominando a Plaza de Mayo) foi uma
delas. Não me lembro de já haver visitado o badalado palácio
presidencial. Era uma ótima oportunidade. Entramos na fila, ainda
pequena. Mas choveu. Minha mulher desistiu. Falou algo do cabelo, acho.
Mais uma vez ela não acompanhou o que eu chamo de minha resiliência (na
ocasião, ela chamou de outra coisa, iradamente). Teremos outra
oportunidade, seguramente.
Mas a maior das decepções foi nos ter
sido vedado o acesso a certas áreas de uma tal “Manzana de las Luces”
(Calle Perú, 272), ao belo claustro jesuítico e aos famosos túneis, em
especial. Segundo retrata o meu “Guia Visual Folha de São Paulo – Top 10
– Buenos Aires” (PubliFolha, 2010), no “coração histórico da cidade, a
Manzana de las Luces é um complexo de edifícios governamentais e
jesuíticos que datam de meados do século 17. Entre eles, está a Igreja
de San Ignacio, a mais antiga da cidade, construída em 1668, o claustro
do antigo Colégio dos Jesuítas, a Sala de Representantes e o Colégio de
Buenos Aires. Sob os prédios correm os túneis construídos na década de
1690 para ligar o local à Plaza de Mayo”. Já é bem a terceira vez que
vamos a Buenos Aires, e eu me programo, tento, mas não consigo conhecer
certas partes da velha “manzana”. Simplesmente, virou uma questão de
honra. Tomamos mais chuva. E nada. Fomos barrados a certa altura. Não
sei se foi o cabelo ou se não gostaram do meu – digamos, impuro –
castelhano de Salamanca.
Por sorte, terminamos a noite, já
entrando pela madrugada, ali pertinho, na “Librería de Ávila” (Calle
Adolfo Alsina, 500), sobre a qual eu já escrevi nas crônicas “Minhas
livrarias em Buenos Aires (I) e (II)”. Um comércio de livros cheio de
história, que ocupa o local onde outrora funcionou a famosa “Librería
del Colegio”, oficialmente aberta em 1830 e tida como a primeira
livraria da cidade. Com a sua atmosfera propositadamente decadente,
declarada “Lugar Histórico Nacional”, a “Librería del Colegio/de Ávila” é
realmente imperdível.
E ali enfrentei, com a minha velha resiliência, uma certa frustração, a chuva e, sobretudo, o cabelo e a ira da minha mulher.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP