Vai texto de artigo publicado ontem, dia 7 de abril de 2019, no jornal Tribuna do Norte (de Natal/RN):
Avenida Corrientes
Já escrevi aqui, em dois artigos, sobre as livrarias de Buenos Aires.
Mas me lembro muito bem de haver evitado tratar dos comércios de livros –
antigos ou simplesmente usados – da famosa Avenida Corrientes. Achava
que era coisa de “profissional”, esse comércio de livros antigos e
valiosos. E, conhecedor diletante da obra de Ludwig Wittgenstein
(1889-1951), sempre achei que, “sobre o que não se pode falar, deve-se
calar”. Continuo achando. As duas coisas.
Mas de volta a Buenos
Aires bateu mais forte a minha paixão pelos livros. E, apesar das
advertências do clima e da minha mulher, corri, literalmente, para a
Avenida Corrientes. Afinal, segundo constava do meu “Guia Visual Folha
de São Paulo – Top 10 – Buenos Aires” (PubliFolha, 2010), “centro do
bairro dos teatros, esta lendária avenida foi chamada ‘a avenida que
nunca dorme’ nos anos 1940, quando abrigava muitos teatros e cinemas.
Hoje, está um tanto decadente, mas os teatros continuam aqui. Também
está repleta de cafés e livrarias, entre elas excelentes sebos”.
Passaria uma tarde inteira, entrando na noite, por aquelas bandas.
Foi bom e foi ruim.
Os teatros e os cinemas, pelo menos boa parte deles, ainda estão mesmo
lá. O Teatro Metropolitan (no número 1343), o Teatro San Martin (número
1530), o Teatro Gran Rex (número 557) e o Opera Allianz (número 860),
ao menos, pelo que me recordo agora. Entrei nos que pude. Assisti a uma
ou duas pequenas apresentações gratuitas no foyer dessas casas. Saquei
muitas fotos. Dentro e fora deles. E desfrutei de uma beleza
ostensivamente decadente, sabedor, mas conformado, que os dias de glória
nunca mais voltarão.
Fucei, sobretudo, um sem-número de sebos e
livrarias (quase todas as redes de livrarias argentinas têm filiais
ali, registre-se) daquela avenida larga e extensa. Muitos mesmo, às
vezes colados uns nos outros, e perdi as contas dos nomes e dos
endereços. A gente, que ama livros, fica doidinho, correndo deste para
aquele comércio. Alguns são excelentes, tudo limpo e organizado; outros,
bem longe disso. E olhem que gosto do cheiro (e do mofo, segundo minha
mulher) dos livros. Mas não importa. Para quem busca por algo
interessante e barato, o sebo bom é o sebo ruim.
Comprei uma
penca de livros. Muitos mesmo. Dentre eles, se não o melhor, pelo menos o
mais divertido, foi um tal “El mundo de Borges”, que foi publicado,
numa edição especial, dividida em fascículos, pelo diário argentino
Âmbito Financeiro. E já xeretei esses fascículos – “Borges e a
política”, “Borges e seus mestres”, “Borges e o romance policial”,
“Borges e as viagens” e por aí vai – uma porrada de vezes. De toda
sorte, o que mais comprei foram livros de filosofia, geral e até do
direito, todos baratíssimos, sobre os quais, alguns deles, nunca tinha
ouvido falar. Coisa de 10 ou 15 reais cada. Em ótimo estado, quase
sempre. Por exemplo, num tal Edipo Libros (número 1686 da Corrientes),
um dos maiores e melhores sebos que visitei ali, comprei, por apenas 150
pesos, o curioso “Los filósofos españoles de ayer y de hoy: épocas y
autores” (Editorial Losada, 1966), de Alain Guy. Comprei até, mas não me
lembro do nome daquele pequeno sebo, uma “Historia de la filosofía
inglesa” (Editorial Losada, 1951), de W. R. Sorley, filosofia que, em
razão dos 100 pesos gastos, vou ter de estudar em espanhol (aqui a minha
mulher apenas riu. De mim? Será?). E foram tantos outros livros – todos
excelentes e úteis, vou logo avisando, sem brincadeirinhas – que não
ouso aqui sequer imaginar relacioná-los.
O grande problema da
minha aventura na Avenida Corrientes chegou no final. Caiu um dilúvio em
Buenos Aires, que até impediu, naquele dia, a grande final da
Libertadores da América entre River e Boca (quem gosta de futebol, deve
estar lembrado). A Corrientes estava em obras e, de uma hora para a
outra (pelo menos para mim, que estava concentrado pulando de sebo em
sebo), virou uma lama só. Fui pego em cheio na hora de ir embora, com
sacos de livros nas mãos, que protegi bravamente, em detrimento de mim
mesmo e do casaco (não tão novo) que usava. Chamo isso de resiliência.
Minha mulher, que presenciou parte do acontecido, chama de maluquice. Eu
tenho sempre razão, acho.
Bom, voltei para Natal cheio de livros.
Mais uma vez, foi bom e foi ruim.
Coloquei-os (há quem diga que “rebolei-os” nas prateleiras e em cima
do sofá) em um quarto/biblioteca que estou montando vizinho à nossa
suíte de casal. Chamo-a de biblioteca colorida. Minha mulher deu para
chamá-la de Avenida Corrientes. Ela está me irritando deveras. E eu
tenho sempre razão. Acho.
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP