Sobre Jean Bodin (III)
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
No finzinho do artigo de domingo passado, eu prometi, para hoje,
tratar da questão da soberania, segundo a ótica de Jean Bodin
(1530-1596). De fato, Bodin dedicou muita atenção à soberania,
relacionando-a ao absolutismo e à perpetuidade do poder, sendo por isso
considerado o idealizador dessa categoria jurídico-política. E a noção,
hoje por todos defendida, de que os Estados são – ou, pelo menos,
deveriam ser – soberanos em seu próprio território deve ser creditada,
em grandíssima proporção, na conta de Jean Bodin e dos seus “Os seis
livros da República” (“Les six livres de la République”, 1576) e sua
posterior versão em latim, com o título “Da República” (“De Republica”,
1586).
A ideia de soberania foi realmente uma grande sacada do
pensador francês, sobretudo se levarmos em conta o contexto histórico de
então. Vivia-se já o declínio do Sacro Império Romano-Germânico após a
Reforma Protestante. Guerras religiosas pipocavam pela Europa (na
França, durante toda a segunda metade do século XVI, entre católicos e
protestantes huguenotes, em particular). A Guerra dos Trinta Anos
(1618-1648) estava por vir. As lutas entre a Igreja Católica, os
protestantes, os nobres e os monarcas, uns contra os outros, com os
muitos súditos no meio, levavam, com frequência, a desordens e à guerra
civil. E, como lembra Kurt Schilling, em sua “História das ideias
sociais” (Zahar Editores, 1974), “já não havia mais instância eficaz que
pudesse, como o papa anteriormente, limitar realmente a soberania do
Estado e de seu representante. A religião não podia mais, no Direito
Público, ter precedência sobre os Estados; nessa época de reivindicações
papais feitas ao poder temporal, isso teria significado a ingerência de
uma potência estrangeira e destruído a soberania dos Estados”.
A
separação entre a Igreja e os Estados, de forma a evitar muitos desses
conflitos, já havia sido defendida pelo reformista alemão Martinho
Lutero (1483-1546), entre outros. Pensadores posteriores, como o
filósofo inglês John Locke (1632-1704), os badalados iluministas
franceses e o “found father” americano Thomas Jefferson (1743-1826)
laboraram no mesmo sentido. Mas Bodin sobretudo achava que um poder
monárquico soberano – centralizado, forte, absoluto, perpétuo – era
precisamente a solução para assegurar a prosperidade e a paz entre os
países, interna e externamente.
A ideia de soberania precede a
Jean Bodin, claro. Mas ele foi o primeiro a cuidar do tema de forma
sistemática. Para Bodin, consoante afirmado em seus “livros da
República” (de 1576 e, em latim, de 1586), a “soberania é o poder que
acima de si, afora Deus, não admite outro e que, por natureza, é em si
mesmo ilimitado e permanente”. E aqui confesso haver feito uso, para
expor a definição de Bodin, da excelente tradução de Cabral de Moncada,
constante de sua “Filosofia do Direito e do Estado” (vol. 1, Arménio
Amado Editor Sucessor, 1955).
A concepção de soberania de Bodin
está relacionada à sua crença de se concentrar totalmente o poder, para
o bem do Estado, nas mãos do seu governante. O povo ou o órgão
legislativo representativo é assim despojado de suas potestades em prol
do monarca absoluto, que a esse poder faz jus por direito divino (e não
porque foi investido por outrem). Internamente e temporalmente, a
soberania é, por princípio, um poder ilimitado e perpétuo. Mas Bodin,
homem de vastíssima leitura e conhecimento universal, rendeu suas
homenagens ao direito natural e a um ideal próprio de justiça: sua
soberania encontra (apenas) limitações na lei divina e na própria
natureza das coisas, devendo o soberano, para o bem do Estado, agir
livremente, embora observando os limites estabelecidos por essas leis (a
de Deus e as da natureza).
Doutra banda, curiosamente, a
concepção da soberania por Bodin parece estar também à frente do seu
tempo levando em consideração as posteriores ideias positivistas de
gente como John Austin (1790-1859), com o seu “comando do soberano”, e
Hans Kelsen (1881-1973), com a sua “norma fundamental”. De fato, como
registra o já citado Kurt Schilling, “o princípio jurídico fundamental
do novo Estado, no qual se baseia sua pretensão à força e ao direito, é a
soberania. Bodin coloca-o no centro dos seis livros de sua República. O
império medieval foi no plano jurídico um entrelaçado de direitos e de
privilégios criados por um contrato vitalício mantido indissoluvelmente
pelos vínculos de vassalagem. Se se entendesse isso como uma construção
de Estado puramente temporal, os direitos e os privilégios dos membros
independentes da comunidade, fixados de uma vez por todas, freariam
naturalmente o Estado em seu florescimento, na solução de seus problemas
internos e externos. A noção de soberania inverte portanto a
interpretação geral do direito dos Estados. A soberania, na sua
qualidade de característica essencial do Estado, coloca desde o começo e
a cada momento de sua existência a preponderância do próprio Estado em
face de todas as leis e de todos os direitos. Por isso o direito
torna-se uma lei promulgada e ab-rogada por uma instância política
superior à lei e livre em face dela. Em Bodin essa instância política é
naturalmente o príncipe”. Essa constatação em Bodin, da mistura de
direito natural com rudimentos de positivismo, é, no mínimo, invulgar.
Sem dúvida, Bodin foi muito pragmático – e feliz, pode-se dizer –
levando em consideração as necessidades de seu tempo. Em seus tratados
(“Os seis livros da República” e a versão em latim “Da República”), ele
reiteradamente defendeu que a soberania, para ser eficaz,
necessariamente deveria ser absoluta e perpétua. Somente assim se teria,
como nos tempos modernos, uma autoridade central efetivamente forte
sobre o território do país, limitando a independência de seus grandes
vassalos, das cidades e das muitas corporações medievais. Esse Estado
centralizado far-se-ia forte também no plano externo, enfrentando a
Igreja e o Sacro Império Romano-Germânico. Deu certo. E foi precisamente
essa insistência de Bodin na necessidade de soberania absoluta que
formou o pilar intelectual essencial para a ascensão e consolidação das
monarquias absolutistas por quase toda a Europa.
Bom, mas
passados tantos anos (alguns séculos, na verdade) desde sua época, qual
balanço que se pode fazer hoje de Jean Bodin, o homem e o pensador? A
resposta a essa questão eu tentarei dar na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP