Sobre Jean Bodin (II)
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP
Como dito no nosso artigo da semana passada, Jean Bodin (1530-1596)
forma, ao lado de Nicolau Maquiavel (1469-1527) e de Thomas Hobbes
(1588-1679), a denominada “trindade do absolutismo”. Mas quais foram as
principais ideias desse francês, que é considerado um dos fundadores –
e, portanto, um dos seus gigantes – da ciência política?
Antes
de mais nada, é preciso contextualizar a vida e a obra de Bodin. Ele
viveu numa época de transição do antigo feudalismo, do poder disperso
nas mãos de vários “senhores”, para a era dos estados centralizados. Ele
presenciou a consolidação de direitos, tais como o da propriedade
privada, hoje tão caros para nós. Ele sofreu com a anarquia espiritual
causada pelas guerras religiosas na França a partir da segunda metade do
século XVI. Ele sobretudo viveu numa França em plena afirmação
inexorável – e certamente independente da sua vontade – da monarquia
absoluta, que ele compreendeu, aceitou e, mais do que isso, justificou.
Assim, como fiel súdito do rei da França e pensando na unidade e no
sucesso do seu Estado, ele, ao mesmo tempo, retrata e formata as ideias
absolutistas de então. Bodin, portanto, assim como Maquiavel (e com mais
sucesso do que este, sob o ponto vista da sobrevivência política no
regime vigente), é também fruto do seu tempo.
Bodin acreditava
haver três formas para o exercício do poder estatal: a monarquia, a
aristocracia e a democracia. Bodin, com inteira razão, abominava a
desordem e o desgoverno. E, para combater esses males, ele faz uma opção
clara pela monarquia, fundamentando seu pensamento na história dos
povos, na autoridade de grandes pensadores e na crença de que é
impossível governar dando ou recebendo ordens de iguais. Para ele,
apenas na monarquia absoluta, a soberania – conceito importantíssimo
para Bodin, do qual trataremos mais tarde – poderia ser exercida na sua
completude e perfeição.
Bodin faz uso, em prol do Estado
absolutista francês (que, séculos depois, com a Revolução Francesa,
restará também conhecido como o “ancien régime”), da antiga doutrina da
origem ou do direito “divino” dos reis. Como explicam os autores de “O
livro da política” (publicado pela Editora Globo em 2013), “para Bodin, a
fonte da legitimidade do soberano era a lei natural e o direito divino
dos reis – o código moral da sociedade e o direito do monarca de
governar, ambos vindos direto de Deus. Nisso, Bodin se opunha ao
conceito de que a legitimidade soberana viria de um contrato social
entre o governante e seus súditos, uma ideia mais tarde desenvolvida
pelos pensadores iluministas como o filósofo francês Jean-Jacques
Rousseau”.
Entretanto – e aqui vai um ponto marcadamente
favorável a ele, se comparado a Maquiavel –, para Bodin existiam algumas
limitações ao poder do monarca absoluto, impostas pelo que ele chama de
leis naturais e leis divinas, anteriores ao próprio soberano, uma vez
já existentes na natureza ou criadas por Deus (no caso, o Deus cristão).
Se o monarca é o primeiro servo de Deus, “todos os príncipes estão
obrigados pelas leis divinas, não podendo contrariá-las, sob pena de
incorrer em crime de lesa majestade e mesmo em guerra contra seu Deus”,
diz Bodin, mais ou menos com essas palavras, em conhecido trecho de “Da
República” (“De Republica”, 1586). Apesar de Bodin não apreciar a ideia
de democracia (como regime político ou como forma de governo), ele
discordava da concepção maquiavélica de que o soberano podia tudo,
governando sem limites. Para Bodin, os monarcas, para governar,
precisavam ter o poder absoluto, mas teriam, entretanto, de prestar
contas a Deus e à natureza das coisas. E a obediência ou não a essas
leis naturais e divinas é que faz a diferença entre um justo poder
monárquico e a tirania.
Assim, como afirma Kurt Schilling, em
“História das ideias sociais” (Zahar Editores, 1974), “Bodin não mais
fez príncipes absolutos, isentos de tutela, puros déspotas e tiranos.
Onde em Maquiavel o novo pensamento político de uma regeneração da vida
do povo se verifica por meio de grandes objetivos em política externa e
interna e onde o caminho se acha aberto para o Estado nacional, em Bodin
somente se encontra uma reminiscência cristã-humanista bastante débil
do direito natural. Recusou expressamente o maquiavelismo, isto é, a
doutrina segundo a qual o monarca a serviço do Estado deve poder até
cometer injustiças. Entendia ele que o poder legislativo e o poder
autoritário absolutos dos príncipes deviam estar subordinados à razão e
ao direito natural. Mas, para tanto, baseou-se simplesmente na religião;
na religião, é verdade, enquanto assunto pessoal, que ocupa um lugar
diminuto na doutrina da soberania de direito divino dos Estados
temporais isentos de toda tutela”.
Ponto para Bodin, definitivamente.
No mais, em sua obra, Jean Bodin dedicou grande atenção à ideia de
soberania, que seria “o cimento das relações sociais”, estando
intimamente relacionada ao absolutismo e à perpetuidade do poder.
Todavia, especificamente sobre a soberania, na visão de Bodin, nós só
conversaremos na semana que vem.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP