Viajando com a amiga (V)
Na nossa conversa da semana passada, aqui, eu disse que conhecia duas
formas de aproveitarmos as andanças de Agatha Christie (1890-1976) mundo
afora. Minha amiga, como sabemos, fez muitas viagens, na vida e em
literatura.
Uma dessas formas, que taxei de mais tradicional e
sobre a qual já tratei, é simplesmente fazer um turismo literário
baseado na obra ou na vida da Rainha do Crime.
A outra é mais
poética e considero até uma invenção minha, num tempo em que, estudante
de PhD numa fria Londres, alternava dias muitos felizes com uma vontade
imensa de voltar a Natal e rever meus entes queridos nas esquinas da
minha infância.
Foi com essa mistura de sentimentos que descobri
uma forma de ter como fundamental – imperiosa, posso dizer – aquela
minha estada em Londres. E não era a necessidade de assistir às aulas e
aos seminários no King’s College London – KCL, onde fazia meu doutorado.
Na verdade, descobri que, somente por me achar no Reino Unido, eu teria
a oportunidade de ler os muitos romances da minha amiga Agatha
Christie, que tanto me encantaram na adolescência, estando, no momento
da leitura mesmo, nos locais onde se passam as suas estórias,
saboreando, em tempo real e deveras encantado, a atmosfera dos lugares
descritos por minha amiga.
Recordo-me de haver descoberto isso
em Russell Square, mesmo no coração do bairro universitário (e
alegadamente intelectual) de Bloomsbury. A vizinhança estava sendo
citada em um dos romances de Agatha Christie, que ali eu lia numa tarde
de verão. Curiosamente, já não me lembro qual deles. Mas é uma
recordação que sempre me volta, gostosa, quando penso em Christie e em
Londres. Não sei precisar a razão disso. Talvez seja porque morei
muitíssimo perto dali, numa residência estudantil na vizinha Woburn
Place. Talvez porque eu tenha estudado, dias e mais dias, na Biblioteca
do Instituto de Estudos Jurídicos Avançados (“Institute of Advanced
Legal Studies Library”) da Universidade de Londres, que fica no número
17 da tal Russell Square. Talvez porque, em dias de sol, o que eu mais
adorava era ler sentado nos seus bancos, vendo a vida passar. Talvez
seja simplesmente porque foi ali que eu tive essa minha epifania.
O fato é que descobri simplesmente algo maravilhoso para fazer.
E, a partir daí, rodei muito por Londres levando a minha amiga Agatha
Christie a tiracolo. Juntos vinham Hercule Poirot e Miss Marple (esta,
confesso, bem menos). Assim como, sempre que podia, viajei de trem, pelo
interior da Inglaterra, com as mesmas companhias. No meu matulão tinha
sempre algo como “The Mysterious Affair at Styles” (1920), “The Murder
of Roger Ackroyd” (1926), “Lord Edgware Dies” (1933), “Murder on the
Orient Express” (1934), “The ABC Murders” (1936), “Murder in
Mesopotamia” (1936), “Death on the Nile” (1937), “Hercule Poirot’s
Christimas” (1938), “Evil under the Sun” (1941), “The Mirror Crack’d
from Side to Side” (1962) e por aí vai.
Lembro-me, por exemplo,
de ter transitado e corrido entre locais como Piccadilly, Covent
Garden, Sloane Square, Regent’s Park e Grosvenor Square, apenas por
antever, quando da leitura de “Lord Edgware Dies” (“A morte de Lorde
Edgware” ou “Treze à mesa”), que essas paragens seriam cenários desse
típico policial “agathiano” londrino. E continuava a deliciosa leitura
do romance “in loco”.
Lembro-me, também, de ter ido algumas
vezes ler em frente aos prédios da Scotland Yard – especialmente aquele
mais antigo, hoje conhecido como “The Norman Shaw Buildings” e usado
pelo Parlamento britânico, onde ficava a Polícia Metropolitana de
Londres no tempo de Christie –, toda vez essa famosíssima força policial
era citada nos romances de minha amiga, como, por exemplo, estou certo,
em “The ABC Murders” (“Os crimes ABC”).
E se não pude fazer
isso com todos os romances de Agatha Christie – “Murder in Mesopotamia”
(1936) e “Death on the Nile” (1937), obviamente, são dois exemplos
característicos –, descobri uma forma de remediar essa minha
impossibilidade de estar, ao lado do meu amigo Hercule Poirot, no Iraque
ou no Egito, quando ele desvendava, para mim, os mistérios dessas
histórias. Simplesmente, eu fui ler esses romances em pleno British
Museum, tomando um café e me protegendo do frio. Me punha ali a admirar
as estátuas gigantes do palácio de um tal Sargão II, mesmo sem saber se a
Mesopotâmia de Agatha Christie era a mesma do grande rei assírio. Sem
qualquer preocupação em compreendê-la, dava uma olhada na Pedra da
Roseta, espiava também os muitos sarcófagos vazios e imaginava-me
descendo o grande rio Nilo. Mas voltava sempre para o enorme salão
principal do Museu, cheio e iluminado, onde o gosto do café com leite,
ao lado da minha amiga, adormecia os (poucos) demônios da minha alma.
Pensando bem, tudo isso era mais que uma viagem, em um tempo e por um tempo que não voltam mais.
Marcelo Alves Dias de SouzaProcurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
Mestre em Direito pela PUC/SP