DUAS RAPOSAS INDOMÁVEIS
Valério Mesquita*
Zé Bomba: apelido comum
que podia estar associado ao do Posto de Gasolina ou ao popular soltador de
traques juninos das ruas e das praças. Não. Zé Bomba era alcoólatra contumaz
que vagava por Macaíba proferindo discursos de esquina em esquina. Os temas
eram comuns, mas a entonação de voz parecia com a de Aluízio Alves e chamava a
atenção dos ouvintes, nos anos sessenta e setenta, acostumados à sonoridade
vocal do ex-governador. Mesmo sem dizer nada, falando vago, vazio e vadio, Zé
Bomba foi um boêmio sem freios, orador e plantonista de todos os dias e noites,
às vezes, sozinho, falando às estrelas.
Seu pai era vendedor
ambulante, baixinho, de olhos miúdos e malaios. Sofria com a bebedeira do filho
e algumas vezes o vi chegar ao centro da cidade para pôr fim à fanfarra de
José. Mas, orador que se preza ou se menospreza, tem o seu contraditório.
Quando vaiado ou expulso dos bares, Zé Bomba apelava para o destempero verbal.
E em tom discursivo, ofendia até à quinta geração dos provocadores. Esse
comportamento lhe valeu, por vezes, algumas detenções. Curada a carraspana, do
xilindró saía direto para o bar e, em seguida, renovava o seu repertório de
alocuções piegas e frases de efeito das campanhas políticas da Cruzada da Esperança.
No aceso dos períodos
eleitorais, Zé Bomba vestia-se de verde para caracterizar melhor a sua
performance oratória. Nas passeatas carregava imensos galhos verdes com os
quais gostava de parar em frente à casa das “araras”. Na maioria das ocasiões,
quando não saia agredido, levava um banho completo de águas poluídas. No final
dos anos oitenta a saúde de Zé Bomba começou a emitir sinais de fraqueza.
Emagrecida, a patativa macaibense recolheu-se a sua casa à rua Dr. Pedro Matos
(Aliança). A voz já não atendia mais os impulsos do orador candente e cadente.
O álcool devorava-lhe o fígado velho de guerra. O guerreiro ensarilhou as
armas: aguardentes, nunca mais. Aposentou-se. Jovem gastara a saúde, o físico e
o tempo.
Hoje, no silêncio da
noite, quando a voz errante de um ébrio triste ecoa nos becos, quem está em
casa relembra Zé Bomba, o discurso que ficou, o boêmio que se fez ouvir.
Outra figura emblemática
era Antenor Borges, preto, magro, chapéu branco de massa, morava no Gondelo,
periferia de Macaíba. Gostava de falar difícil e sempre fazia, numa roda de
amigos, prevalecer as suas opiniões e ditos. Todos os dias empreendia o
percurso entre o mercado público, “cinco bocas” e o seu sítio Gondelo. Assunto preferido:
política. Bacurau do pé roxo, Antenor nunca perdia uma passeata ou comício de
Aluízio, Henrique, Mônica, MDB ou PMDB. Foi um soldado fiel de suas hostes,
nunca faltando no frontispício de sua casa e dos filhos a bandeira verde das
paixões, quer fosse período eleitoral ou não. Ser um bacurau para ele era um
permanente estado de espírito.
Certa vez, tive com o seu
filho Zé Borges, motorista do Colégio Agrícola de Jundiaí, um tira-teima.
Prometi ao povo, em determinada campanha, que a estrada que liga a BR (próxima
à antiga fábrica da Famosa) até Jundiaí seria asfaltada. Zé Borges, crítico e
zombeteiro igual ao pai, por onde passava lançava dúvidas e invectivas à minha
promessa política. Chegou a divulgar insistentemente que se tal serviço fosse
realizado, ele, Zé Borges, percorreria de joelhos todo o trecho, ida e volta.
Era Diretor do DER o coronel Hélio Rocha que havia me passado, antes, a
informação da experiência de um novo tipo de asfalto e o percurso escolhido
seria aquele. Quando a obra foi executada, reuni o povo e fui inaugurar o
melhoramento. Na hora de discursar, resolvi dar o troco às provocações de Zé
Borges com o refrão em cada período da oratória: “Alô, Alô, Zé Borges, da promessa
ninguém foge!”. Infelizmente, essa parte litúrgica não se cumpriu. Antenor
dissuadira o filho.
Antenor Borges foi
companheiro leal de Paulo Cúrcio Marinho, sobre o qual já me referi em outra crônica.
Ambos metiam medo pela língua ferina. Era nitroglicerina pura. Quando avistados
na rua, ninguém deixava escapar o comentário: “Lá vão Jararaca e Ratinho”. Apesar
da postura xiita na política, sempre recebi dele um cumprimento cordial, que
era devolvido em dobro, na esperança de conquistá-lo. Certa vez, consentiu em
me receber em sua casa no Gondelo. Lá fui com a certeza de que iria acolher a
sua adesão. Depois de muita conversa e rodeios, Antenor, duro na queda, me
pediu uma coisa inusitada na política: que lhe conseguisse os seis volumes da
coleção do “Livro Médico”, edição dos anos trinta. O velho Antenor estava me
embromando. Queria fazer comigo era uma gincana. Uma senhora raposa política,
difícil de capturar.
(*) Escritor
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